Intelectuais e racismo no Brasil

MATTHEW SHIRTS

 

De algumas semanas para cá, vem-se discutindo na imprensa a possibilidade de instituir cotas para alunos negros nas universidades do País, pelo menos nas instituições públicas.

A idéia é seguir o modelo americano de "ação afirmativa", se não me engano, e vincular as verbas educacionais do Estado à manutenção de um número mínimo de estudantes de cada minoria racial.

Assim é nos Estados Unidos. No Brasil, cogita-se a criação de cotas apenas para os negros, até onde sei.

Se vier a ocorrer, será um grande passo no caminho da americanização do País. Meus amigos esquerdistas me acusam de entreguista, apenas porque me rendo à tentação imperialista do Big Mac de vez em quando, não mais de duas vezes por semana. Mas alguns deles defendem cotas raciais nas universidades - e aí, duvido eu que poderia existir uma medida mais americana.

O melhor pensamento racial no Brasil - Gilberto Freyre, Jorge Amado - sempre pregou a indefinição racial através da miscigenação como uma solução para o racismo nacional. Que saudades dos tempos em que os intelectuais brasileiros desfrutavam a autoconfiança necessária para se inspirar na originalidade do seu próprio país. Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, escreviam, aqui as diferentes raças se gostam, se encontram e se misturam. O racismo que sobra dessa relação é muito menos violento que o americano, sinto muito, e ninguém vai me convencer do contrário. Conheço bem os dois países.

Cotas raciais vão na contramão da tradição brasileira, estimulando uma definição racial mais nítida. É preciso determinar a cor de cada aluno em potencial para saber quem deve ser beneficiado pela ação afirmativa, afinal.

Essa discussão toda me deu saudades do meu querido guru Richard Morse, que morreu no primeiro semestre do ano. Dr. Morse entendia da história das relações raciais no continente americano como nenhuma outra pessoa que li ou conheci na vida. Assistir a um seminário seu sobre o assunto era sempre um privilégio, para não dizer um tesão.

Certa vez ouvi uma história a seu respeito que revela um pouco da sutileza do seu pensamento. No início dos anos 80, na universidade Stanford, na Califórnia, onde lecionava, Morse foi pressionado para aceitar uma jovem de origem mexicana como aluna de pós-graduação na faculdade de história. Ele foi contra, argumentando que a moça não reunia condições para enfrentar a vida acadêmica naquela instituição, que é uma das melhores do mundo. Mas acabou sendo voto vencido. A aceitação da aluna, representante de uma minoria racial, significava financiamento para a instituição e, diante dos dólares do governo federal, o comitê da faculdade resolveu dar-lhe uma chance.

Com esse tipo de atitude, Morse ganhava a fama de reacionário na universidade, ou pior, racista (apesar de ser casado com uma negra haitiana, a Emy). Os professores "progressistas" não perdoavam sua heterodoxia.

Após um ano de estudos na pós-graduação, a moça de origem mexicana ia mal nos estudos, confirmando a previsão do Morse, e um outro comitê da faculdade determinou que ela fosse convidada a encerrar o curso de doutorado, sem levar o diploma.

Nesse momento aconteceu o inesperado. Numa reunião de todos os professores da faculdade, Morse pediu a palavra, subiu ao palco do auditório e desenvolveu uma longa e apaixonada defesa da moça. Lembrou que havia se colocado contra sua admissão desde o início do processo, mas agora que fora convidada a se dedicar aos estudos em Stanford não poderia ser mandada embora daquele jeito, sem mais nem menos.

Ela era, afinal, uma pessoa e não um número. E aí Morse passou a insinuar que racistas eram os professores progressistas que tratavam as minorias como se fossem gado, usando-as para preencher suas cotas raciais e descartando-as logo em seguida.

Essa posição de Morse trazia embutida muita inspiração brasileira. Foi lendo gente como Gilberto Freyre e, sobretudo, Sérgio Buarque de Hollanda, que o doutor passou a pensar assim e a dar um valor grande para o lado profundo e humano do personalismo.

É isso, enfim, que acho das cotas para negros na universidade. Seria uma pena o Brasil abrir mão de sua rica história de pensamento racial em prol de uma solução americana - um dos países mais racistas da história.

O grande problema do Brasil não é o racismo, mas a miséria. É justamente o contrário dos Estados Unidos, que combinam riqueza com ódio racial. O Brasil, aliás, é uma espécie de imagem invertida do grande país do Norte.

Como se fosse a imagem dos EUA refletida num espelho. É o espelho de Próspero, diria Richard Morse.

 


O Estado de São Paulo, 10 de setembro de 2001


     

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