Capa
Este número da revista Veritas
apresenta um conjunto de trabalhos articulados à linha de pesquisa
Formação,
Trabalho, Instituição , reunindo as principais descobertas
de investigações em andamento que se têm interessado
pela reconstituição do processo de formação
do cidadão produzido através de inúmeros meios,
estratégias e agentes sociais, em especial no decorrer do século
XX.
Formação, cidadão e cidadania constituem as principais categorias de análise dos textos expostos neste número, sendo a cidade o espaço privilegiado para a produção de agentes sociais. O impresso (texto escolar e não escolar) é aqui priorizado por incidir de forma decisiva nas relações que dinamizam a produção social, desde o seu surgimento. Verifica-se, especialmente nas últimas décadas do século XIX, que o impresso exerce uma função pedagógica significativa por ser um importante meio de acesso a saberes indispensáveis não só à formação do habitante da cidade, mas também para a formação do habitante da Terra, já que mais recentemente a concepção de cidadão e, conseqüentemente, a de cidadania extrapolam ou independem de qualquer limite geográfico, em decorrência da complexificação do social.
A presente revista está organizada de acordo com os resultados obtidos pelas investigações desenvolvidas sobre a temática proposta, a partir de:
* subprojetos em andamento (bolsistas de Iniciação
Científica, mestrandos e mestres);
* projeto integrado URBANIDADE E CIDADANIA
(pesquisadores e bolsistas da PUCRS, UFRGS e UNISINOS);
* projeto TEXTOS ESCOLARES E NÃO ESCOLARES
IBERO-AMERICANOS
(pesquisadores de países ibero-americanos, cuja maioria integra
a equipe, constituída em 1996, a convite de pesquisadores vinculados
ao Banco de dados sobre manuais escolares da Espanha (MANES), ligados
à Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED). Já
foram realizados dois congressos internacionais sobre o tema - em Madri
(1996) e em Buenos Aires (1997);
* projeto EMMANUELLE, (Banco de dados
sobre manuais escolares da França, de 1798 até os nossos
dias, criado em 1980, cujo protótipo já vem sendo
utilizado por mais de dez países);
* considerações sobre cidadania
e movimentos sociais (pesquisadores convidados);
Vale frisar que os propósitos anunciados em números anteriores - v. 41, n.º 162, junho/1996 e v. 42, n.º 2, junho/1997-, continuam vigorando no presente número. Primeiramente, aposta-se na idéia de que a pesquisa e o próprio pesquisador constituem-se, antes de tudo, como processo e não como algo acabado, supondo assim uma formação que, gradativamente, possibilite a instrumentação do futuro profissional com as ferramentas exigidas para o desempenho de tal métier. Essa perspectiva explica os diversos graus de aprimoramento dos textos aqui publicados, pois seus autores têm experiências que variam em termos de tempo de formação e, em conseqüência, de nível de competências, indo da condição de bolsista de Iniciação Científica até a de professor-pesquisador, com reconhecimento nacional e/ou internacional.
Em segundo lugar, mas igualmente importante, espera-se que esse material divulgado constitua "um capital produtivo que se investe na pesquisa para produzir resultados" (Pierre Bourdieu), podendo assim instaurar rupturas na lógica de formação, a qual tem insistido em tratar o saber científico como algo a ser tão somente contemplado. Afinal, "as representações da ciência em nossa sociedade deslocam-se progressivamente em direção à prática científica, distanciando-se da ciência feita" que era o centro de gravitação do paradigma anterior que, além de venerar mais do que investir os conhecimentos científicos disponibilizados, pouco se interessava em "suscitar uma demanda social em torno das pesquisas" que produzia e quase nunca se preocupava com a "produção social dos fatos científicos" (Bruno Latour).
Com o intuito de apresentar algumas das condições que envolvem a produção do discurso científico divulgado neste número temático, menciona-se que tal processo foi construído num dado tempo - de 10/97 a 10/98 - a partir de convites formulados a pessoas que dispõem de saberes que apresentam uma estreita vinculação com o propósito desta publicação - no que se refere à Formação, Cidadão, Cidadania. Por motivos diversos, ligados às condições e possibilidades dos próprios articulistas convidados , alguns deles não integram este número, o que certamente daria uma maior densidade às idéias aqui expostas.
O interesse e o empenho dos articulistas, da direção
do IFCH, do diretor da Veritas, dos bolsistas e técnicos,
possibilitaram a concretização deste trabalho. Expresso a
todos o meu sincero reconhecimento, com a esperança de que os textos
divulgados, sob a responsabilidade de seus autores, contribuam para aumentar
a qualidade da ciência que se faz, agilizada pela busca da demanda
social à produção dos fatos científicos.
INTRODUÇÃO
No final do século XIX e durante todo o século XX, novas técnicas instalam-se em Porto Alegre, em ritmo intenso, complexificando significativamente as relações sociais nessa cidade. Em outros termos, as formas de ver, viver e agir do habitante da capital gaúcha são desestabilizadas de maneira continuada, por várias iniciativas e agentes. Conforme Pierre Lévy, "basta que alguns grupos sociais dissiminem um novo dispositivo de comunicação, e todo o equilíbrio das representações e das imagens será transformado". E, em tais circunstâncias, "estratégias inéditas e alianças inusitadas tornam-se possíveis".
Nessa perspectiva, reconstituir processos de formação do cidadão que têm contribuído para a produção da sociedade rio-grandense, instaurados por várias instituições e agentes sociais, através de vários dispositivos, no decorrer do século XX, constitui o principal objeto de investigação das diversas pesquisas aqui publicadas.
Dentre os propósitos que envolvem esse empreendimento, pretende-se:
- evidenciar o sistema de relações
sociais (interativas e conflitivas) que têm configurado e sustentado
a formação do cidadão voltada especialmente para os
segmentos populares, bem como o conjunto de saberes, interesses e parcerias,
desencadeado no âmbito de tais processos;
- resgatar e difundir a memória social
para, desse modo, coletivizá-la no tocante às práticas
de formação do cidadão nesse período. Espera-se,
assim, ao potencializar essas iniciativas, qualificar as condições
do próprio cidadão, bem como as possibilidades de construção
social futura, projetadas a partir do passado e do presente;
- estabelecer intercâmbios em busca de
integração com outros grupos de pesquisadores, em âmbito
regional, nacional e internacional, que privilegiam investigações
correlatas e/ou análises comparadas;
- formar estudantes através de atividades
de pesquisa, ensinada e aprendida no próprio ato de pesquisar, com
o intuito de instaurar competências voltadas à produção
de novos saberes científicos, tão necessários à
construção e aprofundamento da cidadania.
Formação é a categoria central de análise utilizada pelos vários projetos que se integram, de algum modo, à linha de pesquisa Formação, Trabalho, Instituição, porque condensa e melhor expressa a dinâmica que instaura a construção dos agentes sociais, no decorrer do tempo. Por isso, tal categoria está sendo aqui concebida não só como uma ação que visa transmitir conhecimentos gerais e especializados, mas também como um conjunto de ações, de orientação, de iniciativas e de processos que constituem a sociedade.
Até a década de 60, formação associava-se mais diretamente com qualificação profissional, instaurada especialmente em espaços comprometidos com atividades de cunho pedagógico, referindo-se a saberes priorizados pelas especialidades em treinamento. Destacam-se as seguintes dimensões que perpassam o processo de formação, nesse período:
* relações sociais primárias;
* controle social permanente e restritivo;
* práticas realizadas sob um rígido
controle do tempo e do espaço, a partir de relações
verticalizadas, em que se priorizavam os saberes práticos associados
ao trabalho.
Nos ano 70, formação assume maior expressão quando se afirma a centralidade da atividade social de transmissão e aquisição de saberes, comportamentos e atitudes, até então mais reservados à instituição escolar. Assim, expressa a ampliação dos espaços em que se desencadeia esse processo, envolvendo várias outras categorias, tais como: aprendizagem, reciclagem, aperfeiçoamento, promoção social, formação profissional, empregabilidade, educação popular, formação contínua, educação permanente, inserção profissional, etc.
Na década de 80, formação enquanto categoria de análise vincula-se à noção de competência, que consiste na capacidade de resolver eficazmente um problema em uma situação dada. Tal processo é inseparável da ação, e os resultados teóricos, técnicos e/ou práticos são utilizados de acordo com a capacidade de executar as decisões que ela (a ação) sugere. Dentre as principais dimensões que configuram o processo de formação, destacam-se:
* relações sociais secundárias;
* controle social extensivo e diversificado;
* práticas realizadas em múltiplos
tempos e nos mais variados espaços, a partir de relações
horizontalizadas, em que se busca uma articulação mais sistemática
entre os inúmeros tipos de saberes, associando-os a trabalho e não-trabalho.
Os textos dos vários projetos em andamento, de acordo com suas especificidades, procuram contemplar as dimensões que configuram a categoria formação, construída socialmente, no decorrer do século XX. Sendo assim, vale mencionar as principais dimensões que fundamentam as pesquisas apresentadas a seguir, independentemente do período privilegiado pela investigação. Formação é concebida como um processo que:
* resulta de inúmeras formas de relações
de poder;
* realiza-se em diversos lugares;
* acontece em tempos com durações
muito variadas;
* supõe a articulação de
uma multiplicidade de saberes;
* contrói-se pela experiência (pela
prática), sendo ou não planejada;
* atinge o formando enquanto ser integral.
As demais noções associadas ao processo de formação de agentes sociais, enquanto categorias de análise construídas socialmente, assumem igualmente novas concepções de acordo com o período em análise, ou seja, no século passado e em parte deste século, a condição de cidadão estava diretamente associada ao seu lugar de moradia - a cidade. Em conseqüência disso, instauravam-se medidas, formas e saberes entendidos como os mais adequados ao aprofundamento da cidadania, que estava espacialmente determinada.
Mais recentemente, a noção de cidade definida pela densidade, é o único indicador que continua válido. Uma evidência disso está no fato de que todo interesse em relação à cidade, hoje, refere-se à sua capacidade de aproximar e expor os indivíduos ao máximo de contatos possíveis, exatamente porque ela dispõe de uma densidade de população e atividades incomparáveis.
Nessa medida, "a cidade é por excelência o lugar das interferências, o lugar onde se faz a experiência das diversas formas de proximidade". Ela responde à necessidade contraditória que impulsiona o indivíduo das sociedades modernas: um desejo de mobilidade e, ao mesmo tempo, de enraizamento. Enfim, a cidade de que se está falando é aquela que condensa em dado tempo, em determinado espaço, um conjunto complexo de relações sociais, constituindo assim em lugar privilegiado para formar o cidadão.
Também é importante indagar quem é considerado cidadão hoje, pois, em função da mobilidade resultante do desenvolvimento tecnológico, os padrões da cidade - espaço particular exigindo um habitante particular: o cidadão - são estendidos para outros espaços. Isto faz com que o cidadão passe a ter uma denominação que engloba o habitante de todo e qualquer lugar, deixando de ser um termo aplicável somente aos habitantes da cidade.
Na realidade, a concepção de cidadão é a que apresenta maior margem de indefinição, exatamente porque, na atualidade, "a vida cotidiana pode ser tratada independentemente da dimensão espacial. Hoje, um mesmo cidadão aparece em outros espaços além daquele em que vive; pertence a vários grupos sociais, que se localizam em diversos territórios ou itinerários. Isso, sem considerar que numerosas atividades tendem a se deslocar constantemente".
O fato de o termo cidadão designar, mais recentemente, qualquer pessoa independentemente do local em que ela habita, além de outras implicações, destaca-se o nível de complexificação da cidade. Disso resultam novas, inúmeras necessidades e exigências às iniciativas interessadas em constituí-la num lugar de formação do cidadão - através de seus agentes, instituições e organizações sociais -, já que as características dos seus habitantes são múltiplas e diferenciadas em vários aspectos, sem deixar de considerar que a tendência, cada vez mais, é a de que apareçam dissociadas de suas procedências geográficas.
Desde meados da década de oitenta, vem-se indagando sobre formação enquanto bem universal. Nesse contexto, cidadania assim como cidadão, igualmente concebidos hoje em dimensão planetária, tendem a incorporar na mesma medida, senão com mais ênfase, a perspectiva glocal que está na base da construção dessas categorias. Isso implica concepções e práticas sociais que procurem dar conta de tais rupturas e decorrentes ambigüidades, bem como novas possibilidades de emancipação da humanidade que essa complexa injunção social tende a projetar.
Nesse contexto, o impresso ocupa uma posição privilegiada enquanto meio de formação, sendo aqui concebido como a materialização de um "trabalho da leitura" que possibilita a "construção de nós mesmos, construção sempre a refazer, inacabada", ou seja, "o espaço do seu sentido não preexiste à leitura. É percorrendo-a, cartografando-a que nós o fabricamos". Através desse tipo de trabalho que supõe a inflexão sobre si mesmo, "produzindo assim a sua relação consigo mesmo, sua vida autônoma, sua aura semântica, remetemos o impresso também a outros discursos, a imagens, a sentimentos, a toda a imensa reserva flutuante de desejos e de signos que nos constituem".
O impresso como categoria de análise pode melhor dar conta do movimento desencadeado pelo conjunto de dispositivos associados ao surgimento da impressão, quando ocorre o avanço das "formas de conhecimento teóricas e hermenêuticas sobre os saberes narrativos e rituais das sociedades orais". As "tecnologias auxiliares" denominadas "aparelho de leitura artificial", contribuem para intensificar e ao mesmo tempo diferenciar os processos de "criação e recriação do mundo de significações", que constituem todo agente social.
O texto (lido ou escrito) raramente permite que o leitor reorganize de maneira drástica "o bolo misturado de representações e de emoções que o constitui", enquanto que "aquele que participa na estruturação do hipertexto, no traçado pontilhado das possíveis pregas do sentido, já é um leitor. Simetricamente, aquele que atualiza um percurso ou manifesta este ou aquele aspecto da reserva documentária contribui para a redação, encontra momentaneamente uma escrita interminável". Alteram-se então os papéis da escritura e da leitura, já que "toda leitura é uma escritura em potencial" a partir do hipertexto, sendo os seus dispositivos e as redes digitais quem mais desterritorializa o texto .
Nessa perspectiva, ao optar pela categoria impresso, as investigações relacionadas com textos ou manuais escolares podem ser significativamente potencializadas, pois se articulam à problemática mais ampla que tem envolvido a comunicação nos últimos séculos, sem desconsiderar a significatica ruptura que ocorre nesse processo, a partir da segunda metade deste século. Desse modo, assegura-se a possibilidade de melhor expressar a dinâmica desse fenômeno social que desempenha, cada vez mais, um papel decisivo na produção da sociedade.
Os trabalhos sobre essa questão publicados nesta revista referem-se a pesquisas em andamento, o que possivelmente explica o fato de as dimensões relacionadas com a abordagem mencionada anteriormente ainda não estarem tensionando integralmente tais processos de investigação. No entanto, iniciativas e ações priorizadas pelas várias equipes de pesquisadores, como a construção de bancos de dados informatizados - visando resgatar a memória coletivae instigar análises comparadas -, indicam que o seu interesse pela função exercida pelo impresso no passado associa-se diretamente às atuais e futuras possibilidades que esse meio está podendo oferecer "em direção a uma maior democracia em relação ao saber".
Na sociedade virtual em construção, onde "o conhecimento é o fundamento do poder" e "a capacidade de aprender e de inventar sustenta o poder econômico", esse tipo de empreendimento pode constituir uma das formas não-excludentes de relação de saber", a ser desenvolvida de acordo com Pierre Lévy, contribuindo assim para a instauração do que ele denomina de "inteligência coletiva", que visa a ampliação de espaços voltados à construção da democracia.
Essa busca também supõe o interesse
do pesquisador no aprimoramento das principais disposições
que o constituem enquanto profissional, para mais facilmente renunciar
"à tentação de se servir da ciência para intervir
no objeto, para se estar em condições de operar uma objetivação.
Dentre os procedimentos que essa postura implica, destaca-se a necessidade
de se explicitarem as condições de produção
do discurso científico. Desse modo, ampliam-se as possibilidades
para a instauração de novos espaços à democratização
e aprofundamento da cidadania.
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