PORTUGAIS
É o Dia da
Portugal. O dia de Camões, da Raça, agora dito "de Camões e das Comunidades",
mais os Palop's e o que estará para vir! Céus, como tudo muda e como o pobre poeta do
século XVI, que andou de Anás para Caifás serve para tanta coisa. Para o filme a
"preto e branco" do Brun do Canto (será esse o nome? ! ) que há tantos anos vi
na TV, no tempo da outra senhora, com o episódio fulcral do olho perdido em Ceuta e de
Camões a nadar agarrado ao manuscrito dos Lusíadas lá para os lados de Macau.
Luís Vaz de Camões o que é, para mim? Um trauma de
infância, esse que nos diziam ser o génio português por excelência, com os 10 cantos
dos Lusíadas, enormes, cheios de deuses e mitos, de português arrevesado e que, no
antigo 5º anos dos Liceus, serviam para "dividir orações".
Meu Deus, um poeta esfrangalhado em
"concessivas", consecutivas" e "integrantes". Sujeito na 1ª
estrofe, predicado na 4ª, complemento directo 2 cantos depois. . . E a gente a suar, a
negativa à vista, um Poeta a ser assassinado pela Pedagogia.
Por isso, então, odiei Camões e partilhei esse ódio com
milhares de vítimas a que o estro nada dizia, a não ser uma selva de perigos na guerra
da análise morfológica e sintáctica. O homem salvava-se porque nos dava um Feriado, o
10 de Junho, o Hoje.
À minha frente, num café de Matosinhos, simbolicamente
cognominado de "Império" (de quê, de quem, de quando? ! ), cavalheiros lêem o
jornal diário, "Notícias", "Comércio", o "Público",
vêem o que dá na TV para logo e pronto!
Que Camões esquecido estamos a comemorar. Matamo-lo pobre,
triste, abandonado. Depois de morto procuramos-lhe as ossadas e enfiamo-lo nos Jerónimos,
obrigando chefes de Estado amarelos, vermelhos, pretos, cinzentos a atirarem-lhe flores,
enquanto discretamente consultam o relógio do protocolo antes de partirem para a
almoçarada em Queluz.
E até o José Hermano Saraiva, num programa da TV da era
marcelista, fez um psicodrama à Sherlock Holmes que me deixou aterrorizado quando, pela
calada da noite e com voz cava, apontando para o túmulo dos Jerónimos e dizendo:
"Aqui jaz o Poeta! ", concluía disparando esbugalhadamente: "É falso!
Estes ossos são anónimos. . . ". Não se pode provar que a tíbia ou o fémur
tenham identidade própria!
Quem sabe se não estaremos a homenagear uma carcaça de
frango nos Jerónimos? Que até tenham perdido o maior poeta de sempre, como perdemos
tudo, as memórias, os papéis, as fotografias, esta merda de repartição pública
mascarada de País! Aliás, como nas repartições, nunca se perde nada, só se sabe que
não se sabe muito bem onde as coisas param. Portanto, calma! Camões não se perdeu, que
o País não tem buracos, Camões está por aí, atrás dum armário, num silvado, numa
arrecadação de centro comercial, num apartado postal. Porra, não se perde um Homem. Só
não sabemos onde está.
Por convenção, como na "Tabela Periódica de
Elementos" de Mendeleiev, acordou-se que, para fins político-simbólicos, está nos
Jerónimos, tumba 33, corredor 2, recanto 4B! "Alma minha, gentil que te
partiste/Tão cedo desta Vida/Docemente/Repousa lá no Céu eternamente/E viva eu cá na
Terra sempre triste/".
10. 06. 92