MANHÃS
Agora, a hora mágica é sempre a manhã, a sensação boa de sair de
casa, a frescura, o aroma do 1º café, o jornal que ainda não parece um esfregão,
descer a rua que vai dar ao mar, mirar as eternas obras camarárias com um olho português
tipo-reformado, dar uns palpites, dizer cá para mim:
--- "Isto é uma pouca-vergonha! Olha-me para esta ladroagem a
ir-nos aos bolsos!" Depois, sentar-me a escrever perto da porta da gelataria, donde
vem sempre uma brisa que os meus amigos persistem em classificar como
"corrente-de-ar". Que querem, sou claustrófobo.
A época é de exames e por aqui pára gente de Direito, da Católica,
dos ISAGS e quejandos! Vejo "Códigos Civis", inchados de tanto sublinhar com
marcadores de várias cores, artigos e mais artigos que legiferam as nossas pobres
existências com multas, coimas, impostos, regulamentos, prescrições, o Diabo. Mas, se
calhar, a alternativa era andarmos todos diariamente ao soco. E lá se me iam os poucos
dentes que me restam para os Campos Elíseos. . .
Para que conste, compro os vícios diários, cigarros e jornal, numa
lojeca da R. Senhora da Luz, misto de tabacaria e loja de electrodomésticos, chamada
"FontLuz". É um prédio antigo onde há de tudo um pouco. Lá vivem por trás
de um balcão dono e 2 senhoras de idade indefinível, que vendem miudezas, pequenos
porta-chaves, cadernos, cromos para a "canalha", bilhas de gás, televisores
"muito bons", fogões, fitas para embrulhos de aniversário, toda a
parafernália do micro-mundo das coisas incidentais e acidentais.
Mas o mais interessante é que o dono, que me vai conhecendo pelo
convívio diário de alguns anos, me confessou há dias que "percebia" de
televisores e electrodomésticos, mas que agora com "a cor", já não vale a
pena. Que desmontava tudo no tempo do "preto-e-branco", lâmpadas, díodos,
condensadores. Agora já não. A evolução tecnológica é muito rápida e não dá para
ter "stock" de sobresselentes, nem ele já tem paciência.
Desses tempos heróicos resta, porém, uma extraordinária relíquia.
Numa montra situada no 1º andar da casa, bem por cima da porta da loja, numa espécie de
varanda fechada com vidro, como eu imagino estarem as "pegas" na Reperbahn de
Hamburgo ou de Amsterdam, exibe-se um velho televisor Philips, atarracado, preto-e-branco,
com botões amarelo-marfim de rodar e comutador de canais como os dos fogões eléctricos
Leão! Por trás, uma cortina com um pó digno de Frankenstein. Esse velho TV é uma
imagem da melancolia, duma era jurássica do mundo industrial, com a sua caixa de madeira
castanha de cantos arredondados, écran côncavo como um cesto de fruta, só lhe faltando
uma renda por cima com a imagem da Santa Filomena.
Ah! Porque eu lembro-me disto tudo. Do começo da televisão, dos
cafés chamarem a clientela porque tinham essas caixa que começava a emitir ao fim da
tarde e dava "variedades" em directo, o conjunto de Mário João ("Ó Rocha
empresta a borracha, tira a borravha da caixa! "), o Boletim Meteorológico era feito
com giz num quaqdro preto, o Artur Agostinho fazia concursos e o Desporto, o Henrique
Mendes lia o Tele-Jornal e era considerado um galifão. Os cantores, Madalena Iglésias,
António Calvário, Fernando Farinha, teatro, "A Dama das Camélias", Gil
Vicente, séries americanas patrocinadas pelo pneu "Dual traid JetAir" da Mabor,
"Os quatro homens justos", os dramas de tribunal, o Perry Mason, o "Lucy
Show", Mister Ed, o cavalo que falava e ria, Badaró e as suas gracinhas, concursos
de sabedoria "Quem sabe,sabe!", as mensagens de Natal dos soldados das Áfricas,
Angola, Guiné, Moçambique, "Daqui Manel Farias a falar para seus pais, namorada,
tios, primos e restante família. Deseja Bom Natal e Feliz Ano-Novo cheio de
'propriedades'! ", e lá continuava a bicha desses desgraçados lá longe e a
família talvez ouvisse e lhes mandasse um Bolo-Rei. E a Supico Pinto mais as senhoras da
Cruz Vermelha que davam livrinhos à tropa.
E as glórias do futebol?! O campeonato do Mundo de 1966, transmitido
em directo de Londres, os "Magriços", que me iam matando, o Eusébio, Simões,
Coluna, o Zé Augusto, o Costa Pereira, o Jaime Graça, que jogavam como loucos e marcavam
golos de todas as maneiras e feitios. É a altura em que o Eusébio passou a ser a
"pantera negra" e dava chutos que arrasavam estádios. Então, no jogo com a
Coreia do Norte, nos quartos-de-final, o país ia morrendo! Os amarelos corriam como
possessos. Aos 20 minutos, perdíamos por 2-0. Mas o milagre aconteceu e no fim
matámo-los por 5-3.
No café, após o jogo, a malta estava "branca", lívida,
suada e dizia palavrões medonhos. Foda-se! Ia-mo-nos fodendo! Estou com os nervos em
tiras.
O pior foi a meia-final com a Inglaterra. Perdemos por 2-1 porque,
país pequeno, julgávamos ter desafiado demasiado os deuses, ido mais longe que o nosso
dever. E não fomos Final. Fiquei como a noite. E apesar de termos vencido a URSS para o
3º lugar, perdemos tudo! Porque, nestas coisas, ninguém se lembra dos que ficam abaixo
do 1º!
Nunca mais acreditei, como nesse fim de adolescência, em milagres. Já
não é mau mantermo-nos em jogo.
12. 06. 92