VENTOS
Chegou a Nortada. Senti logo mal me levantei, abri as portas que
dão para o quintal, olhei lá longe para os lados do mar e o abafado tinha desaparecido.
O fresco regressara!
Nos intervalos de mar que se espreitam enquanto levo o carro por
"Marechal Saldanha" é visível em todo o horizonte a sucessão de cristas
brancas, espuma das ondas, os "carneirinhos", como é uso chamar-se por estas
bandas. É o sinal do "Norte" a levantar-se e a crescer enquanto a manhã
avança. E tudo fica limpo, a gente respira, a alma lava-se, a camisa não se pega, os
toldos das lojas vibram como velas e no exacto sítio onde mar e céu se encontram, no
longe, os dois azuis esbatem-se numa bruma donde era possível aparecer a Fada Morgana ou
a passagem secreta para Avalon. .
Que querem? Sou sensível aos ritmos do mundo, às chuvas, aos
nevoeiros, aos calores e a este corpo gigantesco sobre o qual vivemos presos pelos pés e
pelas leis de Newton, às plantas, pedras, árvores, bichos, à minha saudade dum paraíso
que nunca vi, mas existe porque o inventamos sem lá ter ido, na literatura, no cinema,
nas histórias de lobos e princesas, no espírito do lugar. E a doçura destas horas em
que pensamos assim, tão raras, tão preciosas, tudo está bem, não há dores de cabeça,
o corpo está calado, funcionando, digerindo, respirando, o coração bate e a gente não
dá por ela e sabemos que isso é o círculo mágico da felicidade.
E, se fôr possível, ter ideias, dar-lhes vida num papel, num quadro,
desmultiplicar a alma e o sonho, criar. Não para se ser célebre, para aparecer nos
jornais, ganhar prémios, mas porque isso é bom e nos dá a paz, esse acordo íntimo e
precário entre nós e o mundo.
Saborear um café aromático numa manhã fresca, o prazer de fumar um
cigarro e regressar à escrita sem saber o que vamos dizer a seguir, certos de irmos ao
encontro de aparições, pequenos nadas, restos de gestos, ruídos, vozes, visões como o
veleiro de sonho do "Deserto Vermelho" de Antonioni.
Falava de vento, do poético vento, aquela boca farta e cheia que
"bufa" nas pinturas do "quattrocento", dos vestidos floridos de
Botticelli, do monstro Adamastor das capas de papelão dos livros de leitura da primária,
da história do vento e do sol que fazem uma aposta a ver quem tira o casaco a um rapaz, o
vento invisível mas real de Anaximenes. Vento que bate a chuva, abana as portas nas
noites de invernia, zune nas esquinas, assobia e geme por cima das janelas brancas de
A-Ver-O-Mar da Luísa Dacosta.
Do vento erótico, inconveniente, que areja as saias e aguça o olho,
vento suburbano de Nova Iorque em tempo de canícula, com a Marilyn Monroe de vestido
branco sobre um "respiro" de Metropolitano no "Pecado mora ao lado"!
Nortada das praias da Foz a Matosinhos, de Leça ou Vila do Conde,
aquela que desaustina o areal, nos pica o corpo, invade cabelos e orelhas e, sem exagero,
chegava a entrar para os dentes, onde se "terrincava", verbo horrível mas
extraordinário no arrepio que provoca a sua simples evocação. . .
E o "Monte dos Vendavais", naqueles anúncios de papel
desenhado a cores fortes que se punham nos átrios dos cinemas de há muitos anos, a
colina nua com árvores desfolhadas, uma mansão em ruínas, uma heroína desgrenhada de
paixão e mistério. Ou a cortina que esvoaça nas imagens iniciais dum quarto aberto para
o mar e o céu do "Cinema Paraíso", tão belo e doce que até é pecado falar
nele. O prosaico vento das "definições" da Geografia, essa coisa física e
mecânica, o "ar em movimento".
E, vá lá! O estupor do vento que me deita abaixo as maçãs Star King
do quintal, esse arremedo de agricultura urbana que, já que estamos em maré de sonho,
persisto em acreditar me permitirá um dia autonomizar o abastecimento de fruta, assim me
libertando para os séculos dos séculos das garras do "Euromarché"!
22. 06. 92