OS SAPATOS DO 27
Estreei hoje uma camisa, de micro-quadrados azul-claro e branco, a minha
única fraqueza em matéria de trapos! Quanto ao resto, detesto
roupas novas, sapatos novos, calças, o diabo. Só me sinto
bem em coisas deformadas, largas pelo uso, segundas peles agarradas à
carcaça, que provocam comentários efervescentes da Isabel
acerca do meu aspecto de parente próximo dum esfregão de
cozinha. Que querem? Sinto-me mal perante o novo, a coisa a estrear,
as "provas" nas lojas de roupas, quando está prestes a
rebentar uma tempestade conjugal em casa e eu dobro a cerviz perante as
forças cósmicas do "visual" para um jantar, um
casamento, um baptizado.
Lembro que o NOVO era matéria de punição
imediata nos rituais de liceus e escolas, quando eramos miúdos.
Então ter sapatos novos era uma catástrofe. A coisa era assim:
a mãe e a tia iam comigo à R. de Santo António, o
eco-sistema das sapatarias, não me sendo solicitada para a função
qualquer espécie de quereres ou não quereres. Espreitavam-se
as montras, entrava-se, vinha uma pilha de caixas, a gente sentava-se num
sofá e o empregado numa espécie de caixote com rampa, onde
colocávamos o pé.
Com a ajuda duma calçadeira, a pata lá
entrava na masmorra de calfe e sola onde reina a escuridão perpétua,
como no Inferno de Dante! No outro pé, enfiava-se outro modelo de
sapato e então, a gente punha-se em pé a ver se gostava e
se dava bom andar. Tudo isto em frente a um espelho e a um cochichar
das autoridades femininas.
Nunca dava bom andar, confesso! Uma espécie de
tenaz no pé, apertava, comprimia, atarrachava o dedo, o calcanhar.
A medo, dizia:
--- "Parece-me um bocadinho apertado! Talvez
um número acima. . . ".
O empregado, quase sempre, retorquia:
--- "Ah! Isto com o andar vai ao sítio.
"
A prová-lo, o teste final. Um apertão
no exterior do calfe, junto à biqueira, diagnosticava a posição
do dedo grande do pé e concluia:
--- "Isto aqui há espaço que chegue!
Olhe que depois ficam-lhe 'largueirões'. . . ".
Discutia-se então o mínimo preço
e se não houvesse acordo, o que à primeira sempre acontecia,
partia-se para outra sapataria repetir o ritual de sofrimento. Ao fim da
tarde, se os deuses que presidem ao pé estivessem para aí
virados, regressávamos a casa com uma caixa onde reluziam os sapatos
novos, a estrear em ocasião festiva.
Nesse dia, todos davam por nós! A sala chiava,
CRICC, CRICC, CRICC, o pé fervia, fazia bolhas, esfoladelas. Ai,
que os sapatos magoam-me! Solução: enchê-los de pó
de talco ou passar-lhes meio litro de alcool. Experimente agora. CRACC,
CRACC, CRACC! Parece que estão um bocadinho melhores, mas ainda
me dói muito. Se não passasse a dôr, havia a derradeira
solução: regressarem à sapataria e serem metidos
na forma, um pé de madeira para sofrer em vez de nós,
que esticava os cabedais durante três ou quatro dias.
Quando finalmente se recebia autorização
do Conselho de Família para levar os sapatos novos para o liceu,
restava ainda a tortura dos colegas. Eramos denunciados pelo brilho da
graxa, pelo TCHICCC, TCHICCC, TCHIIIC, nos corredores! Corria a nova: o
27 tem sapatos novos! ! Vamos estrear essa merda. . . Não adiantava
protestos, ludíbrios, disfarces, mentir. Toda a turma nos vinha
em cima e calcava com quanta força tinha os estupores dos sapatos!
Palavrões, impropérios, mas os dados
estavam lançados. Marcas de tacões, pó, riscos, assinalavam
o vendaval que nos caía em cima. Depois, uma grande paz, como sempre
acontece após todos os bombardeamentos. O milagre acontecia. Com
a pancadaria, pé e sapato estabeleciam finalmente tréguas,
um pacto de cumplicidade estava aberto entre ambos. Tu não me magoas,
eu não te engraxo! As solas deixavam de escorregar, como quando
nos tapetes da sapataria quase andávamos de patins no encerado de
fábrica.
E como era preciso proteger o investimento, o sapateiro
da esquina acrescentava a prego e martelo uns "protectores",
espécie de micro-ferraduras de metal que se punham em frente e aos
lados da sola e nos transformavam os pés em cascos, espécie
de Fred Astaires à força. Tinham todavia a vantagem, se raspados
com força no granito, de fazer faíscas. O que era
muito apreciado por toda a turma.
27. 06. 92