JOGATINAS
Comprei
uns óculos de sol e pareço o Stevie Wonder. Isto é,
ou está mesmo Sol ou não vejo nada. Pronto. Servem-me para
conduzir nos dias de luz excessivamente intensa ou nos raros passeios de
Verão.
Mas as cores, aquela tonalidade do mundo que nos
acompanha desde sempre é inigualável. Na frescura, no brilho,
nos contrastes, na clareza duma esquina, duma sombra, dum pedaço
de jardim.
Ainda por cima não tenho
onde os meter, desorganizaram-me a bolsa com os "necéssaire",
instituiram um cataclismo nas minhas arrumações. Carteira,
carta de condução, livro de cheques, chaves, canetas. Paguei
dezasseis contos e seiscentos e dizem-me que foi bom preço. O caraças.
Parece que estou em Marte ou nas noites de Los Angeles na antevisão
de "Blade Runner". . .
Já agora, que estamos em maré oftalmológica,
declaro que descobri, ao ler na cama, que as letras dos livros andam a
esconder-se na neblina e que a nitidez só aumenta quando seguro
a literatura em cima do umbigo. Dizem-me que é "vista cansada".
Talvez uns oculuzinhos resolvam a coisa. E por que não uma bengala,
para completar o "hardware" das próteses?
O meu corpo é um estado de carência,
uma espécie de C. E. I. anatómica onde faltam coisas e só
não há bichas. Apêndice, vértebras, discos da
coluna, dentes, são paulatinamente precipitados no indiscernível.
Para um mecanicista laico isto é teoricamente muitíssimo
inconveniente, pelo que se exigem medidas de "upgrade" filosófico
em direcção às grandes religiões, ao culto
dos Santos, a rezar pela saúdinha, para que não saltem peças
com a trepidação das tosses, das digestões eternas,
da falta de músculo.
Eis a questão. O músculo. Que a gente
deve olhar-se ao espelho com parcimónia e sem a arrogância
atlética de antanho, em que se enchia o peito de ar, se contraíam
os bíceps e se atravessavam os dias em estado de alerta máximo,
com o "cabedal" a reluzir! As defesas espectaculares dos desafios
de futebol, o mergulho desnecessário mas heróico aos pés
do adversário, o "braço de ferro" que nos deixava
vermelhos como malaguetas com a pressão mantida à custa de
palavrões! E tudo passava com uma noite de sono.
Os jogos violentos, o "aperta-azeite" em que
um desgraçado era encostado entre um grupo de matulões do
7º ano, impiedosos e brutais para com os putos e se dizia:
--- "Aperta azeite! ! "
Aquela escumalha comprimia a gente contra uma parede,
um portão, a única safa era um gajo gritar:
--- "PESSANGAS!!!", "PESSANGAS!!! ",
que talvez fossem escolher outra vítima. Creio que se hoje meço
1, 76 mt. de altura, se deve a esses apertões cataclísmicos
que me forneceram os 10 cm. extra que não estavam previstos no A.
D. N.
E o "caia"! Ah. . , o "caia"
era assim. Um tipo era escolhido para ficar no meio de 10 ou 11 mânfios
que tinham a prerrogativa de nos dar estalada e sopapo no cachaço
e cabeça durante 10 ou 15 segundos até se dizer "caia!
". A partir dessa altura todos tinham de ficar absolutamente imóveis,
as mãos a milímetros do nosso nariz, orelhas e costados.
A hora do contra-ataque era chegada! Mas tínhamos
de ver quem nos batia, pois no meio desse círculo virávamo-nos
rapidamente, o que não impedia de apanharmos mais alguma pelas costas.
. . Mas se dissessemos: "Vi-te! Foste tu! " e tal fosse
corroborado pela matilha, esse estupor ia para o meio, e então "CAIA!
! ". Era a nossa vez de arrear. E assim sucessivamente, até
que o toque da campaínha nos chamava para a aula das 10, 30 h. e
um precário cessar-fogo de 50 minutos.
Pior, só ser "levado à árvore"!
Era o terror absoluto dos mais pequenos. Arrastados por uma legião
de brutos em direcção a uma árvore, abriam-nos as
pernas em "V" e espetavam-nos contra a árvore, dizendo:
--- "Vais ficar sem colhões! ".
Um gajo podia fazer três coisas. A 1ª era
berrar com força; a 2ª era berrar com mais força ainda;
a 3ª era planear a sua vida futura partindo do princípio que
ia ficar sem "colhões". . .
Como se pode ver, o mundo infantil e juvenil não
está propriamente dentro da "Carta dos Direitos do Homem"
do U. N. U. Ah! Quem se recusasse a isto, ou fugisse (por onde?), era considerado
"paneleiro" ou "menina" o que, para efeitos sociológicos
de inserção na tribo, era praticamente a mesma coisa.
20. 06. 92