ACORDARES
Sons vindos
de longe. Um, dois, três, quatro. Uma vaga consciência que
emerge do nada, uns ruídos, uns pássaros que cantam do outro
lado da janela fechada, as sensações que aparecem lentamente,
mãos, peito, um remexer, acordar.
Que esta história não é sincronizada,
digo-vos eu. O corpo é como várias peças autónomas
que conspiram cada uma para seu lado, na esperança duma autonomia
dispersiva que nos deixaria em frangalhos. Até que uma Ordem,
vinda da "Res Cogitans" vocifera sem dó nem piedade:
--- "Aí! Cãozoada. . . Ninguém
mexe sem eu dizer. OUUU! OUPA! ! ".
A matéria vil, apavorada pelo Espírito,
encolhe-se, mete a viola no saco e, milagrosamente, a gente levanta-se
da cama "como um só", sem se desfazer imediatamente.
Chegam então os sabores, o Tchh, Tchhh, da boca
empastelada com pedras, o fungo dos narizes, os tropeções
do chinelo, as escadas, esses Himalaias que me conduzem ao Tombuctu do
quarto de banho. Rituais mecânicos, abrir persianas pesadas como
os portões do inferno, gramar a chapada de luz com a alma ainda
nas trevas, descobrir o milagre da pasta de dentes o que, no meu caso,
é algo de contraditório nos termos, pois melhor seria dizer
"pasta de dente", que praticamente só tenho um,
derradeiro mastodonte duma catástrofe estomatológica que
cedo me demonstrou que todos os homens são mortais. . .
Pequeno almoço em pé, na cozinha. Um chá,
um queque, um pensamento de engorda: "Ora 1 queque por dia, vem a
ser 365 queques por ano, 3. 650 queques em 10 anos! ". Isto vai acabar
mal.
Sentar-me na sala de jantar, o 1º cigarro, olhando
o quintal pela fresta das cortinas. O chorão, os pássaros,
o céu, como vai estar o dia. Diabos. Céu aberto, Sol, lá
vem a canícula.
Arrasto-me para as abluções. Olhar os
focinhos no espelho, cabelo desgrenhado pelas lutas com os fantasmas da
noite, aspecto dos irmãos Metralha. Pincel, creme de barbear, a
cara como um postal de Natal, branca de espuma, um pensamento reaccionário:
"Que sorte têm as mulheres! Que isto de fazer a barba todos
os dias é uma boa porra! ! ".
A gilette traça caminhos, áreas depenadas
que vão da orelha ao queixo, do pescoço ao nariz. Que lindo
que eu estou! E se agora faltava a água? Ando numa linda vida! É
que não tenho feito "nenhuma". . . Isto vai ter que mudar.
Pronto. Acabei. Enfiar-me no chuveiro, sabões,
espumas, águas, uma ideia negra: "É preciso cuidado
com as quedas no banho, um escorregão, um traumatismo craneano,
um gajo a ficar para ali com os cornos num feixe! ! ". Bolas. A toalha
está longe. . .
PIM, PIM, PIM, PING, PING, PING! Pronto, já cá
está.
Fazer a "risca" com um pente a que faltam
dois dentes. Tenho de comprar uma porcaria destas. Vestir. Finalmente sair.
A correr para um café, um "cimballino", já. Abrir
o caderno preto, um caderno novo em folha e começar a escrever.
Sem saber ainda o quê. Logo se vê.
28. 06. 92