MANTEIGA DE CACAU
Chega a época das praias. Dos calções às palmeiras,
T-Shirts da feira de Espinho, do balde e pá, dessa singular espécie
que é o veraneante. Etimologicamente, "aquele que não
está quieto durante o Verão" (Dicionários Escolares),
chinelo donde emergem com palidez romântica as pernas dos portugueses.
Com e sem pêlo, atléticas e lingrinhas, atarracadas, todas
elas saindo da escuridão a que foram condenadas pelas trevas invernais,
antecipam o horror do Juízo Final quando, todos em bicha e nús,
preenchermos no "guichet" da Eternidade os formulários
que hão-de levar ao ajuste de contas. . .
Porque, meninos, isto agora não é como
dantes, em que os ricos alugavam barraca ao mês e deixavam as tralhas
no banheiro e os pobres vinham no 16 e 17, os eléctricos do Castelo
do Queijo e Matosinhos, toalha enrolada no braço e pronto.
Agora, ir às praias é expedição
digna dum Brito Capelo ou da subida do Anapurna. Roupa pluricromática,
toalhas, óculos de mergulho, barbatanas, radio-cassette com colunas
destacáveis, guarda-sol, lancheira frigorífica, guarda-vento,
bolas e raquetes, bronzeadores e óculos de sol.
Quem usa manteiga de cacau? Aquelas "tablettes"
de cor branca, cuja fórmula tanto podia conter banha de porco, como
unto de golfinho ou restos de rojões comprimidos nos altos fornos
da Siderurgia Nacional!
Era assim. A gente aquecia os lombos ao Sol durante
meia hora; quando as costelas estivessem quentes, um parente, em regra
do sexo feminino que estava vestido e de piquete nos terrenos difusos que
iam do interior da barraca à área sombreada demarcada pelo
toldo, gritava:
--- "Anda cá, menino! Ainda apanhas um escaldão.
. . Vamos pôr manteiga de cacau. ".
Vínhamos, porque senão um bofetão
homérico era-nos assente nas ventas à hora do lanche, que
aquelas harpias femininas, mães, tias, senhoras amigas, não
eram adeptas de Summer Hill ou das conversas de Montesori. Então,
besuntavam-nos os pescoços, os costados, os focinhos com aquela
coisa que derretia e deixava um cheiro doce e enjoativo, mas pacificava
as fúrias e as consciências para o resto da tarde. Os efeitos
terapêuticos eram duvidosos, mas ninguém pensava nisso. Talvez
que a única diferença entre pôr e não pôr
manteiga de cacau, fosse a nuance que ia do vermelho-lagosta no 1º
caso, ao vermelho-lavagante, na hipótese contrária.
Jogava-se ao prego e ranhozava-se sobre a hora do banho.
--- Olha que ainda não fizeste a digestão!
--- E se fôr só molhar os pés?
--- Tornas a falar nisso uma vez que seja e nunca mais
vem para a praia, seu malcriadão, insolente!
--- Ai que esta canalha é o piorio! !
O banho, finalmente às 5 horas. As canelas geladas
com os vagalhões que vinham directamente do Árctico para
a "Emília Barbosa", o sonho dum mergulho como o Tarzan
que era o Johny Weissemuller dos filmes do Carlos Alberto, e a gente a
dizer "Já nado!Já nado! ", enquanto discretamente
colocávamos um pé no chão e esbracejávamos
como se possuídos pelo Demo.
No limite da espuma, os parentes com toalha no braço,
olho na catraiada, saia puxada com um nó até ao meio da coxa,
deixando ver o bi-cromatismo castanho-branco que demarcava a fronteira
entre as partes expostas e as carnes ocultas para todo o sempre.
Mais ordens:
--- Sai-me daí, menino! Estás a ficar
transido!
--- Olha que apanhas "uma"! (Neste caso, "uma"
era uma doença e não um puxão de orelhas. Mas também
podia ser as duas coisas. . . )
Vínhamos. Eramos friccionados da cabeça
aos pés. Irra, que aquilo doía. A pele a ferver, a areia
misturada com a manteiga de cacau, os olhos injectados com as experiências
de tentar ver debaixo d'água, criavam uma espécie
de tontura que o lanche atenuava. Café com leite saía de
termos, pães com queijo e marmelada, um pêssego ou uma pera
D. Joaquina. Talvez um bolo, daquelas mulheres que andavam com uma caixa
de folheta azul onde, em letras brancas, se anunciava o nome da pastelaria.
Percorriam as praias, ajoelhavam-se junto das barracas, abriam a tampa
e, milagre dos milagres, em andares sucessivos acumulavam-se as bolas de
Berlim, os mil-folhas, os "éclairs", os jesuítas.
--- Pronto! Escolhe lá um e não digas
que vais daqui!
Atirava-me sempre ao mil-folhas, que tinha 5 cm. dum
creme que se puxava com a língua a toda à volta e sabia muitíssimo
bem.
O ritual prosseguia durante toda a época. Fizessem
ventos ou nevoeiros, chuva ou Sol, praia era praia. Eram precisos os iodos
para afugentar as maleitas de Inverno e ninguém arrebitava cachimbo.
Com o fim de Agosto e as marés-vivas, o fim chegava. Primeiras chuvas,
o equinócio, despedidas.
--- Até ao ano! Até ao ano!
05. 07. 92