SENHORA DA LUZ
Continuam
as obras na R. Senhora da Luz, junto ao mar, 10 metros abaixo do convés
matinal desta mesa onde escrevo. Há 2 anos que isto anda assim,
pandemónio municipal de fiscais, "catterpillars", gajos
do S. T. C. P. aparafusando carris com umas enormes verrumas onde se enfiam
rebites em barrotes de apoio aos trilhos, saneamentos, águas pluviais,
valas para trincheiras na previsão dum desembarque turco, eu sei
lá!
O muro de Berlim caiu, a URSS desfez-se, criaram-se
os países bálticos, foram aos focinhos ao Hussein do Iraque,
os Bósnio-Herzegovinos andam à lambada, a Alemanha reunificou-se,
demitiu-se o Gorbatchev. Coisa menor, claro! As obras da R. Senhora da
Luz prosseguem visando a perfeição mística, a verdadeira
execução na história municipal do Mito de Sísifo.
Todavia, não são verdadeiramente impopulares, no sentido
mais profundo do termo, para os reformados da Foz, grupos que se reunem
à esquina da Távi para aproveitar a sombra, ou fugir à
nortada da tarde, ou espantar as geadas de Inverno.
Claro que vociferam, erguem imprecações
medonhas.
--- Isto é uma choldra!
--- O que eles querem é "mamar"!
--- Isto não está bem feito!
--- Olha-me para aqueles manguelas!
--- E a gente a pagar isto tudo!
Perscrutam, dão palpites, medem a olho a largura
da vala, prevêem o desabar dum boeiro, anunciam a ruína universal.
O pior é que acho que têm razão. Um dia destes vou
informar-me dos requesitos necessários para aderir à confraria.
Como começou a época de banhos e os que
quiserem ir para a "Praia dos Ingleses" não podem deixar
de atravessar as obras, às 10 h. da manhã o cenário
é digno da "Roma" de Fellini, dos painéis de Hyeronimus
Bosch ou de Brueghel, o Velho.
Lixeiros cor-de-laranja com tira fosforecente desatarracham
as papeleiras nos postes; peixeiras descabeçam sardinha e chicharro
pequeno na berma do passeio que vai da Farmácia da esquina ao Café
Moreira; um empregado de padaria que parece vir dum sonho mau de Vulcano,
arrasta cestas de pães para o o armazém da Padouro; magarefes,
porque é 5ª feira, transportam aos ombros meias carcaças
de porcos e bois para o Talho, bata branca ensaguentada com facturas a
sair dos bolsos; uma vendedeira de meias p'ra senhora, artigos de praia,
toalhas, baldes e pás, faz balcão num desnível do
passeio onde, em fogareiro a petróleo, coze umas batatas para o
almoço; criançada aproveita para dar cambalhotas nus montes
de areia que servem para deitar entre os carris do eléctrico, a
fim de assentar os paralelipípedos; um gato siamês preso com
trela sai duma loja que não sei a que ramo de comércio pertence,
mas que tem um gajo lá dentro, ar de doente, no meio de grande balbúrdia;
o dono da "FontLuz", a tabacaria-papelaria-loja de electrodomésticos
onde compro o jornal, ameaça com barragens de camião com
pedra o Presidente da Câmara, esse malandro socialista do Gomes,
que nos tira a pele, mas ele não sabe com quem se mete! ! Misturo-me
com aquele confusão primordial, encosto-me a uma parede, apanhando
os nevoeiros que hoje chegaram e, estupefacto, observo aquilo tudo.
É extraordinário, meninos. Extraordinário.
TLIM! TLIM! TLIM! . . . TLIM! TLIM! TLIM! !
Um eléctrico das obras, todo aberto e negro de
fuligem, antecedido duma carreta enorme, só rodas com dois carris
em cima, aproxima-se.
À frente da carreta, sentado em cima da banda
superior desse mastodonte mecânico, um tipo com um ferro na mão,
bate numa campânula oscilante com a alegria e ferocidade dum sátiro.
TLIM! TLIM! TLIM! TLIM! !
Saiam da frente. Nós somos as obras . . .
09. 07. 92