O AERÓSTATO
A vantagem de escrever é resistir ao tempo e ao esquecimento, as
ideias que pousam e passam sem as deixarmos crescer, olha que engraçado,
depois isso vê-se! E não se vê nada, se não as
agarrarmos com a doce escravidão da escrita pois, como dizia o pobre
Salmon Rushdie, elas estão mergulhadas no "mar das histórias"
e é preciso mergulhar nessas marés, abrir as grutas. ouvir
os búzios, para escutar o segredo que sempre começa por "Era
uma vez . . . ".
A escrita é, por conseguinte, uma longa paciência,
uma espera, um navegar com a mão na água. Se nada acontecer,
se nem um parágrafo, um advérbio, um "que", vier
à tona, fica-se pelo menos com a mão lavada e passou-se o
tempo cultivando a alma, essa substância mais preciosa que todas
as outras e que, como o Pai Natal, só existe se acreditarmos nela!
Ninguém escreve a não ser por admiração
e por destino. Quero dizer, admiração de si e do mundo, do
espectáculo insólito da Natureza, desse bulício universal,
fervilhar de sóis, leis da física, migrações
de pássaros. Admiração dos outros, também.
Daqueles que são melhores que nós e que nunca alcançaremos,
pois nunca se viu uma galinha voar nos céus de falcão.
Esses "espíritos do alto", conheço-os
bem, há muitos anos. Olho-os dias e dias com um misto de inveja
e espanto, como Leonardo da Vinci perscrutava os turbilhões dos
rios e o voo das aves. Albert Camus, nas "Noces", Steinbeck na
"Pérola", Boris Vian na "Espuma dos dias", "Poesias"
de Alberto Caeiro, Eça de Queiroz, Virgílio Ferreira, põem-me
a pão de pedir.
Como aqueles alunos dos pintores italianos do "Quattrocento",
enfio-me no atelier, pego na caixa de tintas e observo cada gesto, cada
toque na tela, cada iluminação súbita, na crença
imbecil de que a perfeição se aprende. Mas não, não
é verdade. Regresso a casa ao entardecer, cheio de papéis
e de orelha murcha. Aquilo é um dom, uma graça. Nunca mais
lá chego.
Depois, na manhã seguinte, lá vou outra
vez juntando os cacos do desastre anterior, pé ante pé, teimoso,
obstinado, persistente. Ora bem, se me lançar do cimo daquela colina,
esperar um vento bom, sair a 45 graus e bater com força as asas,
a coisa não falha. Não será propriamente com a elegância
do Concorde, mas talvez flutue como a passarola de Bartolomeu de Gusmão.
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11. 08. 92