A ANATOMIA DOS CÉUS
---Sobre "O
MENSAGEIRO DAS ESTRELAS " de Galileu
Nota:
este texto está baseado, no que diz respeito às citações do "Mensageiro das
Estrelas" de Galileu, na edição francesa de 1992, traduzida do Latim por Fernand
Hallyn.[GALILEO GALILEI, «Le Messager des Étoiles", Seuil, Paris,
1992].Traduzimos para para português as passagens da obra de Galileu que estão presentes
neste artigo, respeitando tanto quanto possível o estilo, a pontuação e a construção
da frase. Este artigo encontra-se publicado na "Revista da F.L.U.P.", série de
Filosofia, (2ª série), nº 12, Porto, 1996.
(. . . ) Só de vez em quando os seus
pensamentos perdiam-se num nevoeiro de suave melancolia. Acontecia quando pensava no culto
secreto ligado aos originais dos textos que tinha à sua frente, nos milagres que haviam
emanado deles, emocionando milhares de seres humanos que, devido à grande distância que
os separava dele, lhe pareciam seus irmãos, ao passo que as pessoas ao seu redor, às
quais via com todos os pormenores, pareciam-lhe desprezíveis. (. . . ) ".
ROBERT MUSIL, "O Jovem Torless"
1 - O ANO DO MENSAGEIRO
Eis-nos em 1610, o tempo em que
Galileu começa a publicar os textos que ultrapassam o pequeno-grande círculo de amigos e
adversários e que o lançam numa aventura de escrita que praticamente, só terminará com
a morte. A personalidade está formada, o essencial dos objectivos apresentam-se com
suficiente clareza, os defeitos e virtudes prestam-se a atingir o esplendor.
Posta em dúvida a formação aristotélica dos verdes anos, já
contrariada pela aposta em Arquimedes e na admiração do heliocentrismo de Copérnico,
trata-se de dar um passo decisivo que derrubará, a prazo, a "Teoria dos 2
Mundos", tão pacientemente elaborada ao longo de quase dois milénios. Não será um
tratado gigantesco que disso se encarregará, mas uma sucessão de admiráveis obras, quer
do ponto de vista científico, quer literário, que abrirão as portas à ciência
moderna.
É justo deixar aqui, desde já, uma ressalva no que à matéria
astronómica e cosmológica diz respeito. Galileu é mais feliz e acutilante nos assuntos
de "física terrestre" do que em "física celeste", mantendo por
enquanto uma divisão conceptual de sabor aristotélico que só desaparecerá
completamente com o triunfo de Newton, século e meio mais tarde. É verdade que defende
Copérnico e nisso é anti-aristotélico e anti-ptolomeico. É verdade que aceita e
descobre novidades nos céus, por essência imutáveis e perfeitos. Mas é verdade
também, um pouco surpreendentemente, que não é sensível à brilhante argumentação de
Kepler, cuja obra conhecia, mas sem a sagacidade de a valorizar como é devido e que,
porventura, o levou ao seu maior erro cosmológico, na incapacidade de ultrapassar o dogma
do movimento circular e uniforme dos astros copernicianos.
De certa maneira, esse último vestígio de "aristotelismo
celestial" foi sustentado por Galileu até ao fim. Neste particular, as portas da
modernidade foram abertas por Kepler, um pouco contra vontade e na nostalgia das harmonias
pitagóricas, sempre presentes por entre a alucinante perfeição das suas 3 Leis.
Digamos, portanto, que Galileu ficou a um passo da unificação global da Física, mas
não chegou nunca a encarar o movimento planetário como um caso complexo da "queda
dos corpos".
Posto isto, regressemos ao primeiro livro de Galileu. Um pouco em
oposição à lógica dos grandes tratados para eruditos, carregados de metáforas,
redundâncias e circunlóquios, a obra atinge-nos na pressão fulgurante da escrita, na
brevidade e precisão da argumentação, na ânsia de apresentar novidades, um estilo
quase jornalístico, novo, alegre, dir-se-ia mesmo, profundamente feliz por lhe ser dado
narrar tantas e tão maravilhosas coisas!
Sente-se, sem dúvida, o prazer duma inteligência na sua plenitude, o
gosto de se saber ser o primeiro, um clima de euforia que não deixa de ser
contagiante para o leitor contemporâneo. E também uma certa "pressa de dizer",
de ser breve, de não perder tempo, talvez devido ao contentamento natural do mensageiro
de boas-novas, mas também porque soubesse que outros lá poderiam chegar, se providos de
meios técnicos análogos.
Esta hipótese deve ser doseada com a anterior, pois Galileu não gosta
de deixar méritos próprios por mãos alheias e mantém sempre no seu perfil
comportamental uma dimensão de auto-satisfação e auto-elogio que nem sempre lhe
consentiriam dar-nos o melhor de si próprio, e serão, em parte responsáveis pelas
inúmeras peripécias que acompanham a sua biografia pessoal e científica.
"O Mensageiro das Estrelas" é, obra breve, 56
páginas e pronto! Para se ler dum fôlego, quase dos domínios dum artigo extenso de
revista científica contemporânea, delimitando bem os temas, dizendo o que tem a dizer,
acumulando provas, fazendo desenhos e esquemas, anunciando futuros desenvolvimentos.
Estamos, no pleno sentido do tema, perante um "relatório científico", apoiado
na observação, na repetição de experiências, revelando a construção e uso dos meios
técnicos utilizados, um texto que "diz" sem ambiguidades e reserva lugar a
novidades que se adivinham ao virar da esquina.
Se ainda hoje este clima é patente para o leitor actual, imagine-se o
que seria o seu impacto na altura da publicação e o alvoroço que provocou nos
espíritos ávidos de inovação na alvorada deste notável séc.XVII. Resultado: os
quinhentos exemplares da edição foram imediatamente vendidos, bem ao contrário do
fracasso editorial em que caiu o texto de Copérnico, editado 67 anos antes.
É, como já se disse, uma "obra de observação" que depende
dum instrumento novo, ou quase novo, cuja invenção é, por vezes, atribuida a Galileu.
"O Mensageiro das Estrelas" e a luneta astronómica formam um corpo
único, disso não restam dúvidas. Em 1610, em matéria astronómica, estas coisas são
factos novos. Tanto mais se nos lembrarmos que a famosa "revolução
heliocêntrica" de Copérnico é produzida praticamente sem observações originais e
inovadoras, vivendo cientificamente do património acumulado pela tradição
aristotélica, ampliada e reformulada pelos astrónomos alexandrinos e pela curiosidade
árabe. É conhecida a reserva de Copérnico em passar noites a tiritar com as brumas e
geadas bálticas, espreitando astros que toda a gente sabe onde estão, no desconforto
gélido dum torreão desabrigado de Frauenburg!
A obra de Copérnico é uma re-equacionação mais elegante dos dados
pré-existentes, de natureza geométrico-matemática, sob a inspiração de Aristarco e
bem menos simples que as imagens poéticas que dela nos são dadas.
Investigação que comporta observações novas é a de Kepler, mas
esse património deve-se mais a Tycho Brahe que ao autor de "Astronomia Nova",
que estava financeiramente impedido de construir os espantosos instrumentos de
observação precisa que a coroa dinamarquesa resolveu ceder ao seu singular astrónomo.
Mas mesmo estes instrumentos de Tycho Brahe, a que Kepler teve acesso,
eram um prolongamento da precisão da vista humana, visando a medição de desvios nos
movimentos dos astros, de ângulos e graus pacientemente anotados, noite após noite, no
horizonte dos céus. Mas nem Copérnico, nem Tycho Brahe, nem Kepler, podiam "ver
mais ou mais longe" que um sacerdote babilónio, um astrólogo egípcio, ateniense,
alexandrino, árabe ou azteca.
É exactamente aqui que Galileu leva vantagem. A luneta efectivamente
amplificava as limitações naturais dos sentidos humanos, permitindo vislumbrar o
"nunca visto", abrindo a possibilidade, por aumento de potência e resolução
óptica, de tornar presente o invisível até escalas que, devido ao progresso
tecnológico, é arriscado antecipar.
A invenção da luneta não se deve a Galileu! Quando muito, a sua
extraordinária habilidade técnica e os seus conhecimentos de óptica e geometria,
permitem-lhe desenvolver uma ideia-base de origem italiana (1590) ou holandesa (1604), de
tal forma que o instrumento que tem ao seu dispôr permite capacidades de resolução
manifestamente superiores que, todavia, não tardarão a ser divulgados pelos círculos
científicos da época. Talvez esteja aqui a razão da urgência da publicação, sob pena
de outros, possuindo tecnologia análoga ou superior, virem a obter o mesmo tipo de
resultados!
Diga-se que a tecnologia dos "vidros de aumentar" tem um
longo passado que remonta aos finais do séc. XIII, com utilizações ligadas à
correcção de defeitos visuais, quer utilizando lentes convexas como, mais tarde, lentes
côncavas, para compensações da miopia. A combinação dos dois tipos de lentes, por
sobreposição, e com um correcto distanciamento, é algo de vagamente conhecido, mas
pouco explorado, antevendo-se maravilhosas potencialidades, mas que ficavam mais no
domínio do sonho e da magia natural do que na sistemática procura teorética e prática
que visasse a observação dos astros.
É verdade também que este instrumento foi, de início, submetido a
uma pressão de mistério e segredo, nomeadamente por razões de tipo estratégico e
militar, para além das conjuras de silêncio explicáveis por motivos comerciais da
responsabilidade dos produtores holandeses, que pretendiam um monopólio de fabricação.
Contudo, não tardou muito que tal segredo fosse desvendado, quer por
ofertas régias entre casas reais europeias, quer por permuta entre militares. Segundo os
historiadores, em 1609, um ano antes da publicação de "O Mensageiro das Estrelas",
na altura em que Galileu ensinava em Pádua, a luneta está à venda em Paris, nas
oficinas especializadas. Nesse mesmo ano, Galileu tem conhecimento do facto e decide
lançar-se à empresa de construção de modelos mais aperfeiçoados, na sequência duma
paixão mecânica que já o tinha levado à invenção dum antepassado do termómetro, o
"termoscópio", e do "pulsilogium", instrumento clínico que servia
para medir os batimentos cardíacos no pulso do paciente.
As tentativas sucedem-se, desde uma primeira versão que aumentava
"três vezes", até ao modelo acabado no Verão de 1609, que já atinge um poder
de aumento de "nove vezes".
Com a habilidade estratégica e diplomática que o caracterizam,
Galileu resolve fazer uma demonstração ao Senado de Veneza, a partir do campanário de
S. Marcos, que originou grande espanto e sucesso, quer para fins terrestres, como para
marítimos. Segundo as palavras de Fernand Hallyn, "(...) via-se distintamente a
cúpula e fachada da Igreja de S. Justino de Pádua, a trinta e cinco quilómetros, e os
navios que se aproximavam do porto eram visíveis duas horas mais cedo que à vista
desarmada. (...)".
Sabendo do interesse do Grão-Duque Cosme II de Médicis pelo tema e
aproveitando a tecnologia sofisticada dos vidreiros de Florença, Galileu constrói uma
versão ainda mais poderosa, com um poder de ampliação de "vinte vezes", com a
qual, no Inverno de 1609, se dedica a uma exploração sistemática dos céus que o
levará, em breve à publicação de "O Mensageiro das Estrelas".
Uma carta de 7 de Janeiro de 1610, provavelmente enviada a António de
Médicis, irmão do Grão-Duque, dá conta dos primeiros resultados da observação da
Lua.
"(...) vê-se que a Lua não tem uma superfície igual, lisa e
polida, como muitas pessoas a julgam ser, assim como os outros corpos celestes, mas pelo
contrário que ela é rugosa e desigual e que, em suma, se mostra tal que, com um
raciocínio são, não se pode concluir doutra forma senão dizendo que está cheia de
eminências e cavidades, parecidas, ainda que muito maiores, com os montes e vales que
estão disseminados sobre a superfície da Terra. (...)".
O espanto das descobertas precipita-se durante os primeiros meses de
1610, de tal forma que a autorização de publicação é dada a 1 de Março, uns dias
antes da última observação de Júpiter, que data do dia seguinte, 2 de Março. Por aqui
se confirma a urgência de dar a conhecer as novidades, nesta simultaneidade entre as
observações e os usuais procedimentos burocráticos e inquisitoriais do "Conselho
dos Dez", sob os auspícios do Senado de Veneza. Esta precipitação, bem ao estilo
de Galileu, há-de repetir-se mais tarde, na altura da edição do "Diálogo sobre
os dois Grandes Sistemas do Mundo" mas, desta feita, envolvida em peripécias que
o levarão ao triste processo que o espera!
2 - GRANDES E ADMIRÁVEIS ESPECTÁCULOS
A obra tem título longo,
descritivo, revelando o entusiasmo e auto-satisfação de Galileu. Tem também fins
estratégicos que visam directamente a família dos Médicis, junto da qual o prestígio
de Galileu é crescente e que lhe permitirão uma autonomia de "investigação
livre" que o afaste dos compromissos mais duros com a república veneziana. Senão,
vejamos:
O MENSAGEIRO
DAS ESTRELAS
QUE REVELA GRANDES E
ADMIRÁVEIS ESPECTÁCULOS
E para os quais propõe se
elevem os olhos
a cada um, mas sobretudo, em
verdade,
aos FILÓSOFOS e aos
ASTRÓNOMOS; por
GALILEU GALILEI
PATRÍCIO FLORENTINO
Matemático titular da
Universidade de Pádua
EFECTUADOS GRAÇAS A UMA LUNETA
Por ele recentemente concebida,
estas observações dizem
respeito à FACE DA LUA, a INUMERÁVEIS ESTRELAS FIXAS,
à VIA LÁCTEA, às ESTRELAS
NEBULOSAS,
mas antes de mais sobre
QUATRO PLANETAS
voando à volta da Estrela de
JUPITER a intervalos e períodos irregulares,
duma celeridade maravilhosa;
estes planetas, até hoje de nenhum homem conhecidos,
ultimamente o autor
descobriu-os em primeiro lugar; por outro lado,
ASTROS MEDICEUS
FOI O NOME QUE DECIDIU
DAR-LHES.
Como frontispício de livro, não
está mal! E como operação de "marketing", melhor ainda. . . Tão extensa
designação foi vulgarizada sob duas referências essenciais: "Medicea Sidera"
("Astros Mediceus") e "Sidereus Nuncius" ("O
Mensageiro das Estrelas"). As duas versões de título salientam dimensões dos
aspectos mais importantes da obra. A primeira, recobre uma operação de
"charme" junto do Grão-Duque da Toscana, Cosme II de Médicis, a quem a obra é
dedicada num prefácio de tom laudatório e grandiloquente; a segunda, dá a Galileu um
papel mediador de "mensageiro de novidades" sobre o mundo dos astros, acentuando
a descoberta mais espantosa que o livro contém, ao relatar à comunidade científica,
pela primeira vez, a existência dos quatro satélites de Júpiter.
Argumentando em linguagem encomiástica, Galileu refere no "Prefácio"
que os nomes das Estrelas e Planetas se reportam a heróis e deuses, que assim encontram
no reino da Natureza "objectos" dignos da sua eternidade. Infelizmente, o
número de astros tem-se mantido constante, nada havendo de equiparável para elogiar a
bondade e magnificência dos Médicis. . .
"(. . . ) Emigrando para o céu, nos orbes assim marcados para
a eternidade das mais brilhantes Estrelas, impôs como sinete o nome daqueles que, pelas
seus feitos extraordinários e quase divinos, pareceram dignos de usufruir, em conjunto
com os Astros, duma vida eterna. Eis a razão pela qual a glória de Júpiter, de Marte,
de Mercúrio, de Hércules e dos outros heróis que dão os seus nomes às Estrelas, não
será jamais obscurecida até que se extinga o próprio esplendor dos Astros. (. . . )
Nesta assembleia, em vão a piedade de Augusto tentou fazer admitir Júlio César; com
efeito, uma Estrela nasceu na sua época, daquelas que os gregos designam «cabeleiras» ;
o príncipe teria querido baptizá-la «Astro Juliano», mas ela desvaneceu-se bem
depressa, frustrando a esperança duma tal ambição. Pois bem, pelo contrário, são de
longe mais verdadeiras e mais felizes, Príncipe Sereníssimo, os sucessos que podemos
augurar para a tua Alteza, pois mal as imortais belezas do teu espírito começam a
fulgurar sobre a Terra, eis que nos Céus se oferecem à vista astros brilhantes
que, tais como vozes, poderão dizer e celebrar para sempre as tuas virtudes altamente
eminentes. Eis pois quatro Astros reservados para o teu glorioso nome; não sairam do
rebanho nem do número menos insigne daqueles que não «erram», mas da ordem ilustre dos
vagueantes ; estes Astros, vê tu, descrevem entre eles movimentos desiguais à volta da
Estrela Júpiter, a mais nobre de todas, como se fossem a sua autêntica progenitura,
realizando as suas trajectórias e seus círculos a uma velocidade maravilhosa, (. . . )".
Feito este exórdio, Galileu lembra as lições de Matemática dadas em
Florença, durante o Verão, ao actual Grão-Duque Cosme II e, reivindicando o(. .
.)direito de baptismo" que cabe àquele que descobre novos objectos celestes, decide
utilizá-lo para o engrandecimento da família real Toscana. "(. . . ) Quis Deus,
Muito Bom e Muito Grande, que eu não fosse julgado indigno pelos teus Sereníssimos Pais
de consagrar o meu zelo a ensinar à tua Alteza a ciência Matemática, o que certamente
fiz nos últimos quatro anos que acabam de passar, na estação do ano onde é costume
repousar dos estudos mais severos. (. . . ) Pois se assim é, pois se é sob o teu
Auspício, Cosme Sereníssimo, que explorei essas Estrelas desconhecidas de todos os
Astrónomos precedentes, é de pleno direito que decidi imprimir-lhes a marca do muito
Augusto nome da tua Raça. Porque, se fui o primeiro a descobri-las, quem terá o direito
de me criticar se lhes imponho um nome e as chamo ESTRELAS MEDICEIAS, na esperança que
tanta glória recaia sobre estes Astros, como aquela que as outras trouxeram aos outros
Heróis. (. . . ) Recebe pois, Príncipe Muito Clemente, esta glória gentílica que te
reservaram os Astros, e as divinas mercês, que te chegam menos das Estrelas que do
artesão e Moderador das Estrelas, Deus, e delas possas usufruir o maior tempo possível.
(. . . )".
O prefácio termina com a delicadeza e formalidade usuais, utilizando
um processo de datação arcaico, ainda vigente nestes rituais de cerimónia. "(.
. . ) Pádua, 4º dia antes dos Idos de Março, 1610/De tua Alteza/o muito dedicado
Servidor/Galileu Galilei. (. . . )".
Uma observação final, que creio ser notada pelo leitor atento destas
passagens. Diz respeito ao tratamento por "tu", dirigido ao Grão-Duque Cosme
II, bem contrário aos nossos hábitos linguísticos na abordagem da realeza, onde o
normal seria a utilização da "2ª pessoa do plural". Segundo Fernand Hallyn,
tal formulação é típica do estilo humanista partilhado por Galileu, por contraponto ao
relacionamento distante e cerimonioso do período medieval. Claro que é um pormenor
secundário, uma vez que, tirando essa aparência de familariedade e igualdade que tal
escrita sugere, a verdade é que o prefácio contém explícita e implicitamente uma
relação de desigualdade e submissão, que não escapa à consciência moderna!
3 - A URGÊNCIA DE FALAR
Os primeiros seis parágrafos da
obra fazem uma espécie de resumo das principais descobertas que serão posteriormente
desenvolvidas ao longo do livro, sempre chamando a atenção para a importância do
instrumento de observação que possibilitou tal feito. Os temas são quatro: observação
da Lua, Estrelas Fixas, Galáxia e Nebulosas e os 4 satélites de Júpiter.
Tudo isto é precedido do único título extenso do livro, para além daquele que consta
da capa, que diz:
A MENSAGEM
ASTRONÓMICA
que contém e esclarece
OBSERVAÇÕES RECENTEMENTE
EFECTUADAS
graças a uma Nova Luneta e
dizendo respeito à face da Lua,
à Via Láctea e às Nebulosas,
inumeráveis Estrelas fixas,
assim como sobre
quatro Planetas baptizados
ESTRELAS MEDICEIAS
jamais apercebidos até hoje.
A partir de agora, neste início
do livro, a linguagem utilizada abandona o tom barroco do prefácio e encaminha-se para um
clima manifestamente mais objectivo e consentâneo com um relatório científico. Mesmo
assim, é manifesta a auto-satisfação, perfeitamente compreensível quanto às novidades
que descreve, na certeza de estar a abrir um novo mundo, no exacto local onde tudo levava
a crer que estaríamos perante um heterónimo do imutável e eterno!
A alegria reflecte-se no uso de vocábulos afectivamente
significativos, como "grande", "magnífico", "agradável",
"belo", "encantador", "maravilha", entre outros.
"(. . . )Sim, verdadeiramente grande é a tarefa de aumentar a numerosa multidão
de Estrelas fixas, que por faculdade natural puderam ser apercebidas até hoje, e de
expôr abertamente aos olhos astros inumeráveis, jamais antes apercebidos e que
ultrapassam mais de dez vezes em número aqueles que são de há muito conhecidos. (. . .
)".
Anote-se a preocupação quantitativa sempre presente em Galileu,
ao tentar dar a escala de grandeza dos acontecimentos, contrapondo à expressão
"inumerável", um número tanto quanto possível exacto, por comparação com as
anteriores observações e conhecimentos. "(. . . ) É magnífico, e muito
agradável à vista, poder observar o corpo lunar, que está afastado de nós quase
sessenta diâmetros terrestres, como se não fosse distante senão de duas dessas medidas;
a tal ponto que o diâmetro desta mesma Lua aparece quase trinta vezes maior, a
superfície novecentas vezes maior, o volume vinte e sete mil vezes maior que quando se
olha simplesmente a olho nú. Retirando daí a certeza da experiência sensível, qualquer
um poderá compreender que a Lua não está de todo revestida por uma superfície lisa e
perfeitamente polida, mas antes duma superfície acidentada e desigual, e que ela é, como
a própria face da Terra, coberta por toda a parte com enormes protuberâncias, crateras
profundas, e rugosidades. (. . . )".
Eis, em poucas linhas, pela via da observação, completamente posta em
cheque a concepção aristotélica da diferenciação essencial entre a imperfeição
terrestre e a imutabilidade geométrica das perfeições planetárias. Lua e Terra são
seres convulsivos e irregulares. . .
Segue-se de imediato a referência ao tema das Galáxias e Nebulosas,
bem como ao facto central dos satélites de Júpiter, sempre dirigindo o discurso aos
Astrónomos e Filósofos. "(. . . ) Por outro lado, ter eliminado as
controvérsias que diziam respeito à Galáxia ou Via Láctea, ter revelado a sua natureza
aos sentidos como à inteligência, eis o que parece não dever ser considerado como um
acto de pouco peso; e mais ainda, será agradável e muito belo apontar com o dedo a
substância das Estrelas que até agora todos os Astrónomos chamaram Nebulosas, e mostrar
que ela é muito diferente daquilo que se acreditava até ao presente.
Mas em verdade, o que de longe ultrapassa todo o tema de
encantamento, e que, em primeiro lugar, nos compeliu a informar todos os Astrónomos e
Filósofos, é o facto, evidentemente, de ter descoberto quatro Estrelas errantes, que
não foram conhecidas nem observadas por nenhum dos nossos predecessores; é à volta duma
Estrela notável dentre aquelas que são conhecidas, que da mesma forma que Vénus e
Mercúrio em torno do Sol, elas cumprem as suas revoluções e tanto a precedem, como a
seguem, sem jamais se afastarem dela para lá de certos limites. Todos estes fenómenos,
uma Luneta que concebi sob a iluminação da graça divina, permitiu-me, há poucos dias,
descobri-los e observá-los. (. . . )".
É conveniente notar que nesta passagem Galileu utiliza o
vocábulo "Estrelas" em duas acepções completamente distintas, cuja tradição
remonta à cosmologia grega. A primeira designação, "Estrela errante", deve
entender-se como sinónimo de "Planeta" e, desta forma, pode falar nas
revoluções de "quatro Estrelas errantes"; a segunda designação,
"Estrela Fixa" ou, simplesmente, "Fixa", deve associar-se ao sentido
contemporâneo de "Estrela", entendida como astro relativamente imóvel!
4 - UM ESTRANHO TUBO DE CHUMBO
Galileu, de acordo com uma boa
metodologia, pretende informar o leitor sobre os instrumentos e técnicas de observação
que o levaram à obtenção dos resultados. Esta atitude manifestamente de acordo com o
espírito científico moderno, visa não a utilização de argumentos de autoridade, mas a
partilha de informações e meios tecnológicos com a comunidade dos investigadores que
podem e devem reconstituir a observação, de forma a confirmarem os resultados. De
certa maneira, abre-se aqui a ideia de "consenso da comunidade científica",
como critério de aceitabilidade e veracidade das teorias e factos sobre o mundo natural.
Confirma, como já referimos, ter tido notícia da "luneta"
há menos de um ano, por referências oriundas dos Países Baixos e de Paris, o que o
levou a dedicar-se à investigação necessária para a construção dum aparelho similar,
através dum estudo apoiado na Teoria da Refracção da luz. "(. . . ) Há volta
de dez meses, chegou aos nossos ouvidos que um habitante das Províncias dos Países
Baixos tinha fabricado uma Luneta graças à qual os objectos visíveis, mesmo situados
longe da vista do observador, podiam ser nitidamente discernidos, como se estivessem
próximos; deste facto certamente maravilhoso relatavam-se alguns testemunhos, aos quais
uns davam fé, mas que outros negavam. Esta notícia foi-me confirmada poucos dias depois,
por uma carta enviada de Paris pelo fidalgo françês Jacques Badovere; isto teve como
consequência que eu me dedicasse inteiramente à pesquisa dos princípios assim como à
concepção dos meios pelos quais poderia chegar à invenção dum Instrumento semelhante;
esta invenção, pouco depois, realizei-a, apoiando-me sobre a teoria da refracção. (. .
. )".
Seguidamente, descreve esquematicamente a construção da Luneta , as
diferentes versões que foram produzidas, o tipo de lentes utilizadas e o seu poder de
aumento, bem como as correcções necessárias para medir com rigor os tamanhos e
intervalos entre as Estrelas fixas. Ficamos a saber que era constituida por um tubo de
chumbo, na extremidade do qual foram adaptadas duas lentes de vidro, planas dum lado e,
respectivamente, convexas e côncavas do outro. A vista era encostada à lente côncava,
daí resultando uma ampliação de "três vezes", quanto à distância dos
objectos, e "nove vezes", quanto ao seu volume, por comparação com
observações análogas feitas à vista desarmada.
Verdade seja dita que tal descrição é muitíssimo sumária, pois
não nos são dados quaisquer pormenores sobre polimento, construção e afinação das
lentes, bem como das respectivas distâncias focais e técnicas de utilização! Galileu
levanta exclusivamente uma ponta do véu, sem dar aos Astrónomos e Filósofos a quem tão
benignamente se dirige a possibilidade de construirem um equipamento igual, por mera
aplicação das instruções patentes no seu livro. . .
"(. . . ) Em primeiro lugar fabriquei um tubo de chumbo nas
extremidades do qual adaptei duas lentes de vidro, ambas planas dum lado, mas uma
esfericamente convexa e a outra côncava do lado oposto; em seguida, aproximando a minha
vista da lente côncava, vi os objectos suficientemente grandes e próximos; de facto,
apareciam três vezes mais próximos e nove vezes maiores do que se fossem somente
observados a olho nú. Depois, construí um outro Instrumento, mais preciso, que
representava os objectos mais de sessenta vezes aumentados. Por fim, não olhando nem ao
trabalho, nem a despesas, cheguei a construir um Instrumento duma qualidade tão grande
que as coisas vistas através dele apareciam quase mil vezes maiores, e mais de trinta
vezes mais próximas do que se fossem olhadas pelos únicos meios naturais. (. . . )".
Informa-nos então sobre o processo de confirmar o poder de resolução
da luneta, isto é, de como saber com certeza qual a capacidade de ampliação. Para o
caso da observação dos astros, é necessário que seja capaz de ter um poder de
"vinte vezes", o que levanta o problema de encontrar um teste empírico que
assegure tal capacidade. Sugere um método simples que consiste em construir dois
círculos ou dois quadrados de papel, em que um seja quatrocentas vezes maior que o outro,
bastando para isso que o lado do 2º quadrado ou o diâmetro do 2º círculo seja vinte
vezes maior que o lado do 1º quadrado ou o diâmetro do 1º círculo.
Encostam-se os dois quadrados ou círculos a um muro situado a uma
distância razoável e, enquanto um dos olhos utiliza a luneta para observar o objecto
mais pequeno, o outro observa o objecto maior. Quando a imagem através da luneta fôr
igual à da vista desarmada, isto é, os objectos parecerem iguais, é porque a luneta
efectivamente tem a resolução de "vinte vezes". É um teste simples,
eficiente, e elegante, como o são quase sempre as boas ideias!
"(. . . ) Em primeiro lugar, com efeito, é necessário que
fabriquem uma Luneta de grande precisão, que possa representar os objectos brilhantes,
distintos, e sem qualquer escurecimento; é necessário que esta mesma Luneta aumente pelo
menos quatrocentas vezes, porque então mostrará os objectos vinte vezes mais próximos;
com efeito, se o Instrumento assim não fôr, tentar-se-á em vão a observação sobre
todos os fenómenos que apercebemos nos céus e que serão enumerados mais adiante. Para
se assegurar sem grande esforço do poder de ampliação do Instrumento, traçar-se-ão
dois círculos ou dois quadrados de papel em que um seja quatrocentas vezes maior que o
outro, o que será o caso quando o diâmetro do maior tiver vinte vezes o comprimento do
diâmetro do outro. Em seguida, olhar-se-ão simultaneamente de longe as duas superfícies
fixadas na mesma parede, observando a mais pequena com uma vista aplicada à Luneta e a
maior com o olho que ficou livre (isto pode fazer-se facilmente, ao mesmo tempo, com os
dois olhos abertos): então, com efeito, as duas figuras aparecerão com a mesma grandeza,
se o Instrumento ampliar os objectos segundo a proporção desejada. (. . . )".
Finalmente, chama a atenção para o facto da refracção dos raios
luminosos oriundos dos objectos muito distantes originarem distorções quanto ao seu
tamanho real, que deve, por isso, ser compensado através duma tabela que corrija esse
desvio. Galileu tem consciência de não ter revelado a totalidade dos dados relativamente
à cabal construção e utilização da Luneta, anunciando para uma outra ocasião uma
explicação mais detalhada. Por enquanto, aceitemos que não se revelem todos os trunfos.
"(. . . ) Que seja suficiente, por agora, ter abordado ligeiramente estas
questões, e delas ter saboreado como quem aflora os lábios; pois publicaremos numa outra
ocasião a teoria completa deste Instrumento. (. . . )".
5 - O ESPANTO DA LUA
A primeira série de
observações diz respeito à Lua, uma vez que é o astro mais próximo da Terra e aquele
que permite discernir detalhes cuja precisão é única com a utilização da Luneta. As
novidades que relata são de excepcional relevância, não só pelas extensas
considerações feitas a tal propósito, que ocupam aproximadamente 30% de todo o livro,
mas sobretudo porque até então a Lua era considerada como fronteira dum mundo de
"nobreza astral", tida como esfera perfeita, de superfície completamente lisa e
totalmente regular, compartilhando com os restantes planetas e estrelas um estatuto que
impedia quaisquer ligações com as imperfeições, movimentos e mudanças típicas da
Terra.
De tudo isto nos dá conta nas primeiras linhas que tratam da questão
lunar, logo após referir que, para além das conhecidas "manchas" que a sua
superfície apresenta e que eram conhecidas desde sempre, existem muitas outras, por
ninguém antes observadas, que se encontram disseminadas na parte mais luminosa do astro.
"(. . . ) É da face da Lua que está voltada para o nosso olhar que falaremos em
primeiro lugar. Para facilitar a compreensão, distinguirei aí duas partes, uma mais
clara e outra mais obscura. A mais clara parece rodear e infiltrar todo o hemisfério,
enquanto que a mais obscura, como uma espécie de nuvem, sombreia a própria face e
impregna-a de manchas. Estas manchas, são visíveis para todos, e todos os tempos as
aperceberam; é por isso que as chamaremos de grandes ou antigas manchas, por oposição a
outras, de menor grandeza, mas de tal forma numerosas que polvilham toda a superfície
lunar, e sobretudo a parte mais brilhante. Estas, em verdade, não foram observadas por
ninguém antes de nós. Do seu exame abundante vezes reiterado, deduzimos que podíamos
discernir com certeza que a superfície da Lua não é perfeitamente polida, uniforme e
muito exactamente esférica, como foi sustentado por um exército de filósofos, quer
sobre ela quer sobre os outros corpos celestes, mas pelo contrário desigual, acidentada,
constituida por cavidades e protuberâncias, não diferentemente da própria face da
Terra, que é marcada, dum lado e doutro, pelos picos das montanhas e as profundezas dos
vales. (. . . )".
Num fôlego o essencial está dito em linguagem acessível, objectiva,
sem retórica, argumentos de autoridade, citações de clássicos. Ver para crer é o lema
do "Mensageiro das Estrelas". E como quem não deve, não teme, Galileu
inclui na obra uma série de desenhos cuidadosamente elaborados que revelam ao leitor os
pormenores mais inovadores das observações feitas. São cinco as representações da Lua
que acompanham esta fase da investigação, explicitando visualmente a ruptura com
as antigas concepções.
Daqui para diante, a argumentação visa demonstrar em detalhe as teses
centrais desde logo inequivocamente expostas, começando Galileu por tornar claros dois
factos. O primeiro diz respeito à irregularidade da linha que separa a parte luminosa da
parte sombria da Lua; o segundo pretende eliminar a distinção absoluta entre a zona
clara e a zona escura, nelas estabelecendo cambiantes que sugerem uma interpenetração
que carece de ser explicada.
Qual o interesse de insistir sobre a irregularidade da linha que separa
a "parte clara" da "parte obscura"? Obviamente que, se assim fôr, a
superfície lunar não é uma esfera absolutamente regular, como era suposto, pois nesse
caso essa fronteira luz-sombra teria de ser perfeitamente oval. Se a experiência
desmentir essa convicção, simultaneamente bloqueia a tese da esfericidade perfeita dos
astros! "(. . . ) No quarto ou quinto dia após a conjunção, quando a Lua
se nos oferece com os seus cornos brilhantes, o limite que separa a sua parte obscura da
sua parte luminosa já não se estende uniformemente segundo uma linha oval, como
aconteceria num sólido perfeitamente esférico; mas corresponde a uma linha desigual,
acidentada e sinuosa, como é visível na figura ao lado. (. . . )".
Quanto ao pôr em questão a distinção absoluta entre as duas zonas,
a obscura e a clara, revelando a existência de micro-regiões luminosas na parte escura e
de análogos locais obscuros na zona luminosa, Galileu pretende relacioná-los com a
posição relativa da Lua face ao Sol dentro do modelo coperniciano e fazer uma analogia
com fenómenos idênticos na Terra quando, ao nascer do Sol, há uma sucessão de
cambiantes luz-sombra, se observarmos tal fenómeno numa região em que existam montanhas
e vales profundos.
Isto é, Terra e Lua têm natureza semelhante, e os factos nelas
ocorridos implicam "causas" análogas, como convém à consciência
universalizante da física moderna. "(...)Com efeito, várias excrecências
brilhantes, por assim dizer, estendem-se para a parte obscura, para além da fronteira
entre a luz e as trevas e, em contraposição, partículas tenebrosas infiltram-se por
entre a luz. Mais ainda, uma grande abundância de pequenas manchas sombrias, inteiramente
separadas da parte obscura, espalham-se por quase toda a extensão já inundada por todos
os lados pela luz do Sol, com excepção daquela parte que tem as grandes e antigas
manchas. Notamos, por outro lado, que as ditas pequenas manchas têm todas e sempre isto
exclusivamente em comum, a sua parte mais escura virada para o Sol, mas são coroadas, do
lado oposto ao Sol, com extremidades mais claras, como arestas duma espantosa brancura.
Ora, temos uma paisagem inteiramente semelhante sobre a Terra, no momento do nascer do
Sol, quando lançamos o nosso olhar sobre os vales que ainda não estão banhados pela
luz, e sobre as montanhas que os rodeiam do lado oposto ao Sol e que, daí a um instante,
resplandecerão com um fulgurante brilho; e, assim como as sombras das cavidades
terrestres diminuem à medida que o Sol sobe, da mesma forma estas manchas lunares perdem
também as suas trevas à medida que a parte luminosa aumente. (...)".
Daqui para a frente, Galileu maravilha-se com outros pormenores que,
sem trazerem nada de essencialmente novo a estas espantosas afirmações iniciais, de
qualquer forma confirmam os princípios estabelecidos. A Lua tem montanhas, vales, golfos,
crateras e a sua imagem varia com as horas do dia e com o ciclo das órbitas
copernicianas.
"(. . . ) Não deixarei em silêncio um facto digno de
atenção, que observei quando a Lua de encaminha para a primeira quadratura e de que o
nosso desenho da página precedente oferece igualmente uma imagem. Um enorme golfo
tenebroso, com efeito, situado próximo do corno inferior, insinua-se na parte luminosa.
Este golfo sombrio, observei-o durante muito tempo e vi-o inteiramente mergulhado
na obscuridade. Finalmente, após à volta de duas horas, um pouco abaixo do meio da
cavidade, uma espécie de pico luminoso começou a surgir. (. . . ) Há também um facto
que não deixarei no esquecimento e que notei não sem grande encantamento: quase no meio
da Lua, um local é ocupado por uma cavidade maior que todas as outras e duma forma
perfeitamente redonda. Apercebi-a próximo das duas quadraturas e representei-a tão
fielmente quanto possível no segundo dos desenhos da página seguinte. Oferece, quanto ao
obscurecimento e iluminação, o mesmo aspecto que teria na Terra uma região parecida com
a Boémia, se estivesse fechada por todos os lados com altas montanhas, dispostas sobre a
circunferência dum círculo perfeito. Sobre a Lua, com efeito, a cavidade está
fortificada com picos tão elevados que o bordo exterior da parte tenebrosa da Lua aparece
banhado com a luz do Sol, antes que a fronteira entre luz e sombra atinja o meio do
diâmetro da própria figura. (. . . )".
Chegado a este ponto, perante a acumulação de factos de observação,
Galileu resolve levantar uma dificuldade teórica eventualmente presente no espírito dos
seus opositores para, ao resolvê-la, antecipar por seu próprio mérito argumentativo uma
vitória que sabe não lhe escapar.
Consiste no seguinte: se a Lua tem tão grandes vales e montanhas, se
não é rigorosamente esférica e lisa, por que motivo a circunferência luminosa que a
delimita e que atinge o seu esplendor na altura da Lua-Cheia não é apercebida como
irregular e sinuosa? "(. . . ) Se, com efeito, esta parte da superfície lunar que
reflecte os raios solares duma maneira mais esplendorosa está cheia de irregularidades,
quer dizer de protuberâncias e fundos inumeráveis, por que motivo, quando a Lua cresce,
a extremidade da circunferência virada para Ocidente e, quando ela diminui, a outra
semi-circunferência, a oriental e, quando há lua-cheia, toda a periferia, por que razão
não as apercebemos como desiguais, acidentadas e sinuosas, mas perfeitamente redondas,
traçadas a compasso, e em nada devastadas por protuberâncias e cavidades? (. . . )".
Galileu propõe de imediato uma dupla explicação. Por um lado,
argumenta em termos analógicos sobre fenómenos semelhantes na Lua e na Terra; por
outro, sugerindo uma curiosa teoria física sobre certas propriedades da Lua.
No primeiro caso, a justificação fundamental apoia-se na distância
enorme entre o observador e o objecto observado. Se na Terra, um observador situado numa
zona montanhosa, contemplar ao longe uma outra cordilheira, não avista os vales que entre
as montanhas longínquas se sucedem, dando-lhe a ideia que os picos dessas serras
afastadas parecem dispôr-se de acordo com uma superfície plana. Fenómeno análogo
acontece se observarmos à distância um mar tempestuoso, em que as cristas das ondas mais
violentas, vistas de longe, parecem organizar-se segundo um plano horizontal, ainda que,
entre elas, existam muitas outras ondas de menores dimensões e os respectivos desníveis,
de tão grandes que são, poderem ocultar da vista navios de grande porte.
Ora, com a Lua, passa-se um fenómeno análogo e de efeito ainda mais
potenciado, devido à enorme distância que nos separa desse astro. Como a nossa vista
está aproximadamente no mesmo plano das montanhas mais elevadas da Lua, nada de espantar
que a circunferência luminosa que as delimita nos apareça como uma linha perfeitamente
regular! "(...)Com efeito, os intervalos entre os montes dispostos sobre o mesmo
círculo, ou na mesma cordilheira, são ocultados pela interposição doutras eminências
colocadas noutras zonas, sobretudo se a vista do observador estiver situada no mesmo plano
que os cumes das ditas eminências. Da mesma forma, sobre a Terra, os picos de montanhas
numerosas e compactas aparecem dispostos numa superfície plana, se o observador estiver
afastado e colocado a uma altitude igual. Da mesma forma, quando o mar está agitado, as
cristas mais elevadas das ondas parecem estender-se sobre o mesmo plano, ainda que, entre
as vagas, se acumulem em grande número abismos e cavidades tão profundas que os navios
mais altos vêem não somente as suas quilhas, mas também as popas e velas aí
desaparecerem. Portanto, uma vez que existe sobre a própria Lua, e à volta do seu
perímetro, uma combinação complexa de eminências e cavidades, e uma vez que a vista,
olhando duma grande distância, está colocada aproximadamente sobre o mesmo plano que os
seus cimos, ninguém deve espantar-se que estes se ofereçam, ao raio visual que os rasa,
segundo uma linha igual e nada tortuosa. (. . . )".
O segundo argumento é particularmente curioso pois supõe que à volta
da Lua existiria um "orbe vaporoso", feito duma substância mais densa que
o éter e que actuaria como uma espécie de filtro cuja natureza seria simultaneamente
"amplificadora" das largas escalas e "atenuadora" dos pequenos
pormenores.
Galileu devaneia sobre um modelo físico de acordo com a Teoria do
Éter de fundo clássico, acentuando uma argumentação mais qualitativa que quantitativa,
bem característica da fase de fronteira em que se encontra actualmente o seu pensamento.
Tal "orbe vaporoso" seria não só parcialmente transparente,
para absorver e reflectir os raios solares, mas actuaria também de modo análogo a uma
lente que daria à Lua um aspecto maior que aquele que efectivamente tem, impedindo que se
observem as montanhas situadas na periferia da circunferência lunar. Digamos que é uma
ferramenta à escala dos desejos, que não deixa de lançar aos olhos dos seus espantados
leitores alguns dos "vapores" remanescentes desta singular engenharia lunar. . .
" (...) existiria à volta do corpo lunar, como à volta da
Terra, uma espécie de orbe duma substância mais densa que o resto do éter, capaz de
receber e reflectir a irradiação solar, ainda que não esteja provido duma opacidade tal
que possa impedir ( sobretudo quando não está iluminado ) a passagem à vista. Iluminado
pelos raios solares, este orbe restitui e reproduz a imagem do corpo lunar sob o aspecto
duma esfera maior; poderia mesmo limitar a nossa acuidade visual, impedindo-a de atingir o
corpo sólido da Lua, se fosse duma espessura mais profunda; ora, ele é efectivamente
mais profundo à volta da periferia da Lua, mais profundo, digo eu, não de maneira
absoluta, mas relativamente, por relação aos nossos raios visuais, que o cortam
obliquamente. Pode, por consequência, sobretudo quando está luminoso, obstruir a nossa
percepção e esconder a periferia da Lua exposta ao Sol. (...)".
Ao aproximar-se do final das páginas que dedica à Lua, Galileu ainda
relata dois factos particularmente interessantes. O primeiro diz respeito a uma derradeira
observação sobre as montanhas da Lua, cuja existência acabou de revelar, e que entende
serem irregularidades geológicas duma escala bem superior à da Terra, assim se
reforçando o parentesco entre os dois planetas. Tal tarefa é conseguida com uma
argumentação de natureza geométrica, muito do agrado da sua formação platónica,
entrando em linha de conta com o diâmetro da Terra, da Lua, e o Teorema de Pitágoras.
Daí resulta um cálculo que contabiliza em mais de quatro milhas italianas a altura das
montanhas lunares, isto é, aproximadamente 6.000 metros. Segundo ele, nada existe
na Terra que possa ser comparável a tal magnificência de escala!
" (. . . ) Segue-se que, sobre a Lua, a altura AD, que designa
um cume qualquer erguendo-se até à altura do raio solar G-C-D e afastado do ponto C pela
distância CD, eleva-se a mais de 4 milhas italianas. Mas sobre a Terra não existem
montes que atinjam a altura perpendicular de sequer uma milha. Resulta, pois,
manifestamente, que as eminências lunares são mais altas que as da Terra. "
O outro facto que espanta Galileu, vem ao encontro do reforço do
parentesco entre Lua e Terra e a respectiva observação tornou-se mais fácil com o uso
da luneta, apesar de anteriormente à sua utilização, nos confessar o autor já o ter
revelado a um círculo restrito de discípulos.
Que se passa, então? Na altura imediatamente anterior ou seguinte à
Lua-Nova, nos dias em que nos encontramos nos limites do "quarto-minguante" ou
"quarto-crescente", é possivel observar uma espécie de halo luminoso que
circunscreve a parte obscura da Lua, de tal maneira que se distingue uma zona de
transição entre a superfície do astro e a região mais obscura do éter exterior.
"(. . . ) Desejo aqui fornecer uma explicação para um outro
fenómeno lunar digno de espanto. O qual, é verdade, foi observado por nós não
recentemente, mas há vários anos, e mostramo-lo a alguns íntimos e discípulos,
explicando-o e esclarecendo a causa. ( . . . ) Enquanto que a Lua, tanto antes como
depois da conjunção, se encontra não longe do Sol, não somente o seu globo se oferece
à nossa vista do lado em que está ornamentado por cornos brilhantes, mas, para além do
mais, uma periferia ténue, ligeiramente luminosa, parece desenhar o limite da parte
tenebrosa, isto é, desviada do Sol, e separá-la do campo mais obscuro do próprio éter.
(. . . )".
Se melhor observado, este fenómeno estende-se não só aos limites da
circunferência da parte obscura, mas à própria superfície contida para aquém dessa
fronteira. Isto é, Galileu afirma que mesmo a parte escura da superfície da Lua,
reflecte uma certa quantidade de luz que não pode ser originária do Sol, bastando para
tal escolher um ponto para a observação, de tal forma que um obstáculo natural oculte a
parte luminosa típica do "quarto-crescente" ou "quarto-minguante".
"(. . . ) Na verdade, se considerarmos a coisa com mais
atenção, veremos não somente o bordo extremo da parte tenebrosa luzir com uma claridade
incerta, mas também a face inteira da Lua --- quero dizer, aquela que ainda não recebe o
brilho do Sol --- clarear-se de forma não negligenciável. (. . . ) Mas se escolhessemos
uma posição tal que um telhado, ou uma chaminé, ou qualquer outro obstáculo entre a
vista e a Lua (mas colocado longe da vista) oculte os próprios cornos luminosos, e se a
parte restante do globo lunar se mantiver exposta à nossa vista, então descobrir-se-á
que também esta zona da Lua resplandece com uma luz considerável, ainda que esteja
privada da luz do Sol, e isso sobretudo se já, na falta do Sol, o horror nocturno
aumentou. (. . . )".
Assinalado o facto, Galileu parte para a explicação das suas causas,
não sem antes assinalar brevemente outras teses que visavam interpretar tais dados,
declarando de imediato que as refutará sem apelo nem agravo e, ainda por cima, sem grande
esforço! Tais teses agrupavam-se segundo duas vertentes: a primeira, entendia que existia
um "esplendor próprio da Lua", e a segunda considerava que tal luminosidade era
secundária e derivava da reflexão pela Lua da luz proveniente doutros astros, que tanto
podiam ser Vénus, como o Sol, ou como o somatório condensado da luz de todas as
Estrelas.
" (...) Este maravilhoso brilho suscitou nos filósofos uma
grande admiração; para atribuir uma causa a este fenómeno, uns e outros avançaram
diferentes explicações. Com efeito, alguns pretenderam que se tratava dum esplendor
próprio e natural da Lua; outros, que lhe era comunicado por Vénus, ou que lhe vinha de
todas as Estrelas; outros ainda atribuiram-no ao Sol, que penetraria com os seus raios a
profundeza do corpo sólido da Lua.(...)".
Refutadas as posições contrárias, seguindo uma estratégia que
consiste em aceitar as teses opostas e confrontá-las com a observação, de forma a
fazê-las ir ao encontro de paradoxos, espécie de método de "redução ao
absurdo", Galileu está em condições de fazer entrar em cena a sua Teoria.
Em que consiste ela? Num sistema de permuta analógica e compensatória
de factos aparentados. Assim como a Lua, por reflexão da luz solar, ilumina a Terra com o
luar, assim também a Terra devolve à Lua um facto equivalente de sentido contrário,
emitindo para a Lua uma luz reflectida na sua superfície, luz essa que é, obviamente,
proveniente do Sol. "(. . . ) Uma vez que, uma luz secundária deste género não
é nem intrínseca e própria da Lua, nem originária das Estrelas ou do Sol, e dado que,
na imensidade do Mundo não resta nenhum outro corpo a não ser a Terra, pergunto eu, que
deveremos pensar? Que é preciso dizer? Não é verdade que é devido à Terra que o
próprio corpo da Lua ou qualquer outro corpo opaco e tenebroso são inundados de luz?
Porquê espantarmo-nos? Numa permuta justa e amigável, a Terra dá precisamente à Lua
uma iluminação igual à que ela própria recebe da Lua, durante quase todo o tempo, no
mais profundo das trevas nocturnas. (. . . )".
Galileu tem consciência que estas teses têm subjacente um modelo
cosmológico não geocêntrico e anuncia que melhor as desenvolverá em obra posterior,
claramente orientada contra aqueles que sustentam não só a imobilidade da Terra, como a
sua posição degradante e inferiorizada relativamente aos astros perfeitos.
Este comportamento é típico do seu génio polemista, ao sugerir aos
adversários a quem acaba de demonstrar argumentos de peso, que já estão no prelo mais
umas dúzias de razões que arrasarão sem dó nem piedade qualquer arremedo de
contra-argumentação oriunda da parte contrária. . . "(. . . ) Estas breves
palavras sobre tal matéria devem bastar neste local, uma vez que trataremos disso de
forma mais ampla no nosso «Sistema do Mundo», onde, em múltiplos raciocínios e
experiências, a reflexão da luz solar a partir da Terra será muito eficazmente
mostrada, para aqueles que pretendem excluí-la do coro das Estrelas, principalmente
porque seria desprovida de movimento e de luz. Ora, que a Terra seja errante, e que
ultrapasse a Lua em esplendor, longe de ser a latrina dos lixos e excrementos do mundo,
nós demonstrá-lo-emos e confirmá-lo-emos também por meio de inumeráveis razões
naturais. (. . . )".
6 - ESTRELAS AOS MILHARES
Concluídas as considerações
sobre a Lua, é altura de Galileu se debruçar sobre um outro assunto, duma grandeza e
escala manifestamente maior, perante o qual a Astronomia e Cosmologia clássica tinha
tomado posições bem determinadas, com uma ou outra excepção. Trata-se do tema das
Estrelas e da natureza das Nebulosas e da Via Láctea.
As teses fundamentais sobre estes assuntos estabilizaram-se nos modelos
cosmológicos de raíz aristotélico-ptolomeica e entendiam serem estes astros desprovidos
de movimento real, fixados que estavam ao último dos orbes cósmicos, usualmente
designado como "esfera das fixas". O seu movimento diário de Oriente para
Ocidente era tido como aparente, pois resultava da rotação da esfera onde se encontravam
imóveis as Estrelas. O seu número seria constante, a sua natureza perfeita, a
substância que os formava era incorruptível, em contraposição às mutações e
cambiantes das substâncias terrestres, Ar, Água, Terra e Fogo. A esfera das fixas
marcava, para todos os efeitos, o "fim" do espaço físico, o limite para além
do qual só o sagrado e o divino se estendiam incomensuravelmente.
A primeira observação de Galileu revela a consciência da escala de
distâncias com que se confronta ao observar estes astros, pois diz-nos que a Luneta não
permite um poder análogo de ampliação ao da Lua, quando é apontada para as Estrelas
Fixas ou "errantes". É tal o desfasamento, que nos sugere de imediato uma
explicação que atenue este facto.
A visão que naturalmente temos das Estrelas é distorcida pelo brilho
que emitem, sendo esse halo cintilante o responsável parcial pela ilusão visual da sua
grandeza, halo esse que é francamente reduzido quando se utiliza a Luneta. "(. .
. ) exporemos brevemente o que até agora examinamos a respeito das Estrelas Fixas. E
antes de mais, é digno de atenção o facto que as Estrelas, tanto as Fixas como as
Errantes, quando são vistas por meio duma Luneta, não parecem de todo aumentar em
grandeza na mesma proporção em que os outros objectos, e também a própria Lua, são
ampliados. Na verdade, no caso das Estrelas, esta ampliação parece bem menor, a tal
ponto, pensamos nós, que uma Luneta capaz, por exemplo, de aumentar cem vezes os outros
objectos, não ampliaria as Estrelas senão quatro ou cinco vezes. A razão é que os
Astros, quando se observam com a vista natural, não se nos oferecem segundo a sua
grandeza simples e, por assim dizer, nua, mas irradiados com um clarão brilhante e
rodeados duma cintilação em forma de crina, sobretudo quando a noite é já profunda. (.
. . )".
Galileu acrescenta ainda que tal redução de proporções se pode
explicar também devido ao facto das lentes da luneta actuarem como um filtro que reduz a
reverberação luminosa das Estrelas, assim compactando a sua dimensão a escalas mais
realistas.
Após este apontamento inicial, revela uma importante distinção entre
Planetas ("errantes") e Estrelas Fixas, no que à sua forma se refere. Enquanto
que os Planetas aparecem sempre como esféricos, como se fossem luas rodeadas de luz, as
Estrelas não conseguem nunca ser vistas como delimitadas por uma linha circular, pois o
seu brilho intrínseco impede que nos possamos aperceber com exactidão sobre qual será a
sua forma. "(. . . ) Digna de atenção também me parece a diferença de aspecto
entre os Planetas e as Estrelas Fixas. Os Planetas, com efeito, apresentam os seus globos
exactamente redondos e circulares e, semelhantes a pequenas luas inundadas de luz por
todos os lados, aparecem como orbiculares; todavia, jamais se apercebem as Estrelas Fixas
delimitadas por uma periferia circular, mas tomando a forma de luares que dardejam raios
por toda a parte à sua volta e cintilam intensamente; (. . . )".
É então que, apesar destas limitações, a linguagem cresce em
entusiasmo e espanto ao dar a conhecer uma multidão de Estrelas até então invisíveis e
que desmultiplicam o Universo conhecido para além de tudo o que se podia imaginar. Não
se trata de mais duas ou três estrelas, mas de centenas, milhares, que parecer nascer por
toda a parte, rompendo para sempre a pequenez e conforto dum Mundo que se encaminha para
dimensões transfinitas.
Diz-nos que, às seis escalas de grandeza acessíveis à vista
desarmada, se podem acrescentar mais outras seis com o uso da Luneta, de tal forma que a
sétima escala, a que Galileu chama a "primeira das invisíveis", aparece como
mais clara e mais brilhante que uma Estrela de "grandeza dois", observada sem
meios de ampliação. Por outro lado, se utilizarmos a Luneta para as mais pequenas das
Estrelas visíveis (6ª grandeza), o seu aspecto é equivalente a Sirius, a mais brilhante
e espectacular de todas as estrelas do hemisfério Norte.
" (. . . ) são ampliadas ao ponto que uma pequena Estrela de
quinta ou sexta grandeza parece igualar o Cão, quer dizer, a maior de todas as Fixas. Na
verdade, para além das Estrelas de sexta grandeza, levarás o teu olhar, através da
Luneta, junto duma multidão tão numerosa de outras Estrelas que escapam ao olhar
natural, que isso mal é concebível: poderás ver, com efeito, mais de seis outras
escalas de grandeza. As maiores dentre elas, que podemos chamar de sétima grandeza, ou as
primeiras das invisíveis, aparecem, graças à Luneta, maiores e mais claras que os
Astros de segunda grandeza vistos a olho nú. (. . .) ".
As revelações são de tal forma espantosas que Galileu decide
acrescentar dois desenhos, onde representa as Estrelas desconhecidas num enquadramento
relativo a outras que faziam parte do património da Astronomia clássica. Diz-nos que a
sua ideia inicial seria representar toda a constelação de Orion, mas a urgência da
publicação e a complexidade da tarefa levam-no a reservar tal objectivo para uma outra
altura, uma vez que em torno das Estrelas visíveis de Orion e num "arco de
céu" muito reduzido, da ordem dos dois graus de extensão, foi possível detectar
mais de 500 novas Estrelas. "(. . . ) Mas, para que vejas um ou outro testemunho
da sua densidade quase inconcebível, pretendi juntar duas ilustrações, de forma a que
faças uma ideia das outras, graças a este exemplo. Na primeira, decidi representar toda
a constelação de Orion; mas, ultrapassado pela imensa abundância das Estrelas e, por
outro lado, pela falta de tempo, protelei este trabalho para uma outra ocasião. Porque,
em torno das antigas Estrelas, existem, disseminadas no espaço de um ou dois graus, mais
de quinhentas outras. (. . . )".
O segundo exemplo diz respeito ao conhecido agrupamento estelar das
Pleiades, junto das quais Galileu descobre mais de 40 novas Estrelas, nenhuma delas
distando mais de meio grau de qualquer das Pleiades já conhecidas. O desenho é
particularmente cuidadoso e tem a preocupação de distinguir graficamente as antigas e as
novas Estrelas, representando as primeiras com um duplo traço e as segundas com traço
simples, respeitando a respectiva escala de grandeza relativa no conjunto da ilustração.
Segue-se uma reflexão sobre a natureza da Via Láctea e sobre a composição das
Nebulosas. Um e outro assunto tinham merecido amplas considerações da Astronomia
clássica, que tendia a considerar tais fenómenos como consequência de diferenças de
densidade no éter cósmico, que resultava em serem apercebidos como manchas duma
claridade difusa, quando observados à vista desarmada. A Via Láctea ou Galáxia, uma vez
que tais designações eram nesta altura equivalentes, pois não se admitia que a
constituição cósmica pudesse conter uma pluralidade de Galáxias, era entendida
como uma entidade exterior ao sistema solar, o que é, sabemo-lo hoje, manifestamente
falso.
Galileu não tem,por enquanto, consciência de tais factos, mas a
utilização da Luneta permite-lhe sustentar sem margem para dúvida que a Via Láctea é
um aglomerado imenso de Estrelas de diferentes escalas de grandeza, qualquer que seja a
região do céu para que o telescópio se aponte. Uma vez mais, com a satisfação que lhe
é peculiar, contrapõe as opiniões retóricas da tradição com as evidências frias e
neutrais da observação. "(...) O que observamos em terceiro lugar, foi a
essência ou a matéria da própria Via Láctea; graças à Luneta, pode-se contemplá-la
tão bem, que todas as disputas que, durante séculos, torturaram os filósofos, são
destruidas pela evidência da percepção, e eis-nos libertos de discussões orais. A
Galáxia não é, com efeito, nada mais que um conjunto de inumeráveis Estrelas
aglomeradas em pequenos grupos: qualquer que seja, com efeito, a região para a qual se
oriente a Luneta, de imediato uma enorme multidão de Estrelas se oferece à vista, entre
as quais várias parecem bastante grandes e bem visíveis; mas uma multiplicidade de muito
pequenas Estrelas escapa absolutamente à exploração. (. . . )".
Quanto às Nebulosas, a interpretação é análoga, baseando-se no
mesmo princípio da acumulação de Estrelas, cuja pequenez ou enorme distância por
relação a nós, implica um agrupamento de luminosidades individuais de tal forma que só
são apercebidas como superfícies de fronteiras difusas, espécie de "nuvens
cósmicas", irradiando um ténue clarão. Destas observações resultam mais duas
ilustrações, uma relativa à Nebulosa da constelação de Orion e outra à
Nebulosa da constelação de Câncer. Vejamos as suas palavras: " (...) várias
auréolas duma côr idêntica brilham com um ténue fulgor, aqui e além no éter, e se
orientares a Luneta para qualquer uma dentre elas, encontrarás um conjunto de Estrelas
que se comprimem em conjunto.Por outro lado ( o que é mais maravilhoso ainda ), as
Estrelas até hoje chamadas de Nebulosas por todos os Astrónomos, são rebanhos de
pequenas Estrelas semeados de forma admirável.Dado que cada uma delas, por causa da sua
pequenez ou do grande distanciamento de nós, escapa à acuidade do nosso olhar, da união
dos seus raios luminosos surge esta claridade branca que até hoje foi tomada como uma
parte mais densa do Céu, capaz de reflectir os raios luminosas das Estrelas ou do
Sol.Observamos algumas, e decidimos inserir a representação de duas dentre elas.(...)".
Quanto a Galáxias, Estrelas e Nebulosas, nada mais é dito! Temos de
compreender que é um tema por enquanto controverso, muito além dos meios tecnológicos
disponíveis e que obriga, a prazo, a considerar o problema da infinitude do Universo,
questão por enquanto impensável no interior dos quadros de referência em que se move
"O Mensageiro das Estrelas".
7 - A PRODIGIOSA SEMANA
Galileu guarda para o fim aquilo
que considera ser a mais espantosa das descobertas a que teve acesso, isto é, a
revelação dos quatro satélites de Júpiter, os primeiros planetas
"novos" a que o conhecimento humano chegou desde que os astrónomos começaram a
olhar os céus. Esta parte da sua obra é, talvez, a mais significativa no que diz
respeito à objectividade das observações, à metodologia seguida, aos pormenores
quantitativos fornecidos ao leitor, que vão desde as datas e horas, às representações
gráficas, cuidadosamente acompanhadas das medições de ângulos de desvio dos satélites
relativamente a Júpiter.
É também esta análise a mais extensa de todas, pois ocupa
aproximadamente 40% do "Mensageiro das Estrelas". Se atendermos ao
espírito sucinto que demarca toda a investigação, é significativo o cuidado nos
detalhes e a extensão das observações. Galileu está efectivamente convencido, e com
razão, de ter descoberto fenómenos de extraordinário impacto, não só pela novidade
absoluta que em si mesmos encerram, mas também pelas virtualidades que contêm numa
futura demonstração da validade dos modelos cosmológicos heliocêntricos de raíz
coperniciana.
"(. . . ) Relatamos brevemente até agora os fenómenos
observados a propósito da Lua, das estrelas Fixas e da Galáxia. Resta-nos tratar o
assunto que parece mais considerável na presente matéria: revelar e dar a conhecer
quatro planetas que, desde os começos do mundo até aos nossos dias, jamais foram
apercebidos, sem esquecer as suas posições e as observações, mantidas durante quase
dois meses, dos seus comportamentos e das suas mutações. (. . . )".
Imediatamente após ter dado conhecimento da descoberta, Galileu, um
pouco contra o seu costume, faz um apelo a todos os Astrónomos para se dedicarem ao
assunto, tendo em vista a formulação dos períodos orbitais de cada um dos satélites de
Júpiter, já que motivos imperiosos relacionados com a falta de tempo e a urgência
da publicação o teriam impedido de reservar para si próprio a apresentação desses
números. Claro que adverte a comunidade científica para nem sequer se atrever a iniciar
tais estudos se não tiver uma Luneta, pelo menos tão precisa como aquela que
habilidosamente descreve nas primeiras páginas do seu livro. "(. . . ) Apelamos a
todos os astrónomos, para que colaborem na pesquisa e a estabelecer a duração das suas
revoluções, o que nos não foi possível realizar até hoje devido ao pouco tempo de que
dispusemos. Advertimo-los, apesar de tudo, novamente, a fim de que se não lancem em vão
num tal exame, que é necessária uma Luneta muito precisa, tal como aquela que
descrevemos no início deste trabalho. (. . . )".
Feito este aviso prévio, Galileu dá início ao relato detalhado da
sua descoberta, começando por revelar que no dia 7 de Janeiro de 1610 se lhe deparou à
observação um fenómeno estranho, na altura em que analisava o planeta Júpiter. Junto a
este planeta pareceu-lhe descortinar três Estrelas, pequenas e claras, que muito o
maravilharam devido ao alinhamento horizontal que mantinham com Júpiter. Não se
preocupou neste dia em quantificar as distâncias que as separavam do planeta, pelo que a
noite de 7 de Janeiro se pode considerar como o primeiro momento da observação dum facto
que flutua entre o normal e o bizarro, dado que Galileu admite, por enquanto, que tais
astros se tratam de estrelas Fixas e não de Planetas. Não nos devemos surpreender que
assim seja, pois como já observamos na altura em que se abordou o problema das Estrelas,
era muito frequente a descoberta de novas Estrelas Fixas ao apontar-se a Luneta para
qualquer região dos céus!
"(. . . ) Então, no dia 7 de Janeiro do presente ano de 1610,
na primeira hora da noite, quando observava as Estrelas celestes através da Luneta,
Júpiter apresentou-se; e como tinha fabricado um instrumento absolutamente excelente,
reconheci (o que antes não tinha podido conseguir devido à fraqueza da outra Luneta) que
havia três Estrelas, bem pequenas, é verdade, mas todavia muito claras, situadas
próximo dele. Acreditei, em primeiro lugar, serem do número das Fixas. Seja como fôr,
causaram-me um certo encantamento, devido ao facto de aparecerem dispostas segundo uma
linha exactamente recta e paralela à Eclíptica e, ainda que iguais às outras Fixas em
grandeza, mais brilhantes. (. . . )".
No dia seguinte, 8 de Janeiro, retomando como que por acaso as mesmas
observações da véspera, reparou que a posição dessas três Estrelas, relativamente a
Júpiter, se tinha alterado. No dia anterior, duas deles encontravam-se a Oriente e outra
a Ocidente, enquanto que neste dia lá se encontravam as três Estrelas, mas desta feita
todas posicionadas a Ocidente do planeta conhecido. Galileu, escrevendo
retrospectivamente, confessa-nos que admitiu estar perante um erro relativamente à
trajectória de Júpiter, pois sendo o seu movimento perspectivado face ao território de
fundo das Estrelas fixas, poderia ter observado simplesmente novos dados que levariam à
correcção dos conhecimentos sobre a sua órbita.
Qualquer que seja o motivo, está levantada a suspeita! A observação
revela um fenómeno insólito. Agora trata-se de analisar melhor em que consiste e quais
as suas causas. É com impaciência que espera pelo dia seguinte, 9 de Janeiro, para
continuar as observações, mas tal expectativa foi frustrada, pois nessa noite o céu
estava coberto de nuvens!!
"(. . . ) Não me ocupei das distâncias entre elas e Júpiter,
porque as tinha tomado, como já disse no início, por fixas. Ora, como no dia oito,
guiado por não sei que Fatalidade, regressei à mesma observação, encontrei uma
disposição bem diferente: com efeito, as três pequenas Estrelas encontravam-se a Oeste
de Júpiter, mais próximas umas das outras que na noite precedente, separadas por
intervalos iguais, como demonstra o seguinte desenho (. . . ) Nesta altura, ainda
que não tivesse consagrado a mínima reflexão aos movimentos de aproximação mútua das
Estrelas, comecei a ficar embaraçado e a procurar como seria possível descobrir Júpiter
a Este de todas as Fixas mencionadas, dado que na véspera ele tinha estado a Oeste de
duas delas. Temi, por consequência, que a sua trajectória não fosse directa,
contrariamente aos cálculos astronómicos e que, por essa razão, com o seu próprio
movimento, não tivesse ultrapassado essas Estrelas. Consequentemente, esperei com muita
impaciência a noite seguinte; mas a minha esperança foi frustrada, porque o céu
encontrava-se coberto de nuvens por todos os lados. (. . . )".
Chega finalmente a noite de 10 de Janeiro, que vai ser decisiva por
dois motivos. Por um lado, em vez de três Estrelas próximo de Júpiter, aparecem somente
duas, situadas a Este e não a Oeste, como na véspera; por outro, conclui que não há
qualquer anomalia no movimento de Júpiter e que todas as mudanças de posição deviam
ser da responsabilidade de tão estranhas Estrelas.
"(. . . ) Mas no dia dez, as Estrelas apareceram, situadas por
relação a Júpiter da seguinte maneira (. . . ) Não havia senão duas, ambas a
este, a terceira estando escondida, como presumia, por trás de Jupiter. Estavam juntas,
como anteriormente, sobre o mesmo plano que Júpiter e alinhadas na linha ao longo do
Zodíaco. Perante esta observação, como compreendia que alterações análogas não
podiam de nenhuma maneira serem imputadas a Júpiter e que, para além do mais, sabia que
tinha observado sempre as mesmas Estrelas (não havia outras, com efeito, quer atrás quer
adiante de Júpiter, dentro duma grande distância, ao longo do Zodíaco), modificando a
partir de então a minha perplexidade em encantamento, descobri que a modificação
apercebida era imputável não a Júpiter, mas às estrelas que tinha assinalado. Em
função disto, decidi continuar, daqui para a frente, as minhas observações com mais
exactidão e rigor. (. . . )".
No dia seguinte, 11 de Janeiro, posta de parte a hipótese dos
movimentos anormais da órbita de Júpiter, Galileu estabelece uma hipótese
interpretativa que o leva á sua grande descoberta. Verifica de início que são somente
visíveis duas Estrelas junto a Júpiter, mas mais distantes deste que na véspera, pelo
que, acrescentando-lhe uma terceira actualmente não visível, considera sem margem para
dúvida que há três Estrelas errantes em torno do Planeta, movimentando-se em sua volta
de forma análoga à de Vénus e Mercúrio em torno do Sol. Quanto ao quarto satélite,
diz-nos que só foi referenciado ao fim de muitas outras observações subsequentes, pelo
que na ordem cronológica dos factos descritos, os quatro Planetas foram descobertos em
duas fases!
"(. . . ) No dia onze, então, vi uma disposição desta ordem.
(. . . ) Não existiam senão duas Estrelas a este; a do meio estava três vezes
mais distante de Júpiter que a mais Oriental, e a mais Oriental era à volta de duas
vezes maior que a outra, enquanto que, na noite anterior, apareceram mais ou menos iguais.
Foi por isso que estabeleci e decretei sem qualquer dúvida que havia no céu três
Estrelas errando à volta de Júpiter, da mesma forma que Vénus e Mercúrio em torno do
Sol. Isso foi, finalmente, confirmado com mais clareza do que a luz do dia, ao longo de
outras numerosas observações posteriormente feitas. (. . . )".
Estabelecida uma hipótese consistente decorrente da observação,
Galileu dedica-se a uma sucessão de pormenorizadas e pacientes investigações, tendo em
vista a confirmação dos factos e, eventualmente, das leis que presidem ao seu
funcionamento. Encontramos aqui um evidente exemplo da prática duma metodologia típica
da alvorada da Ciência Moderna, a um passo das clássicas quatro fases do método
experimental ( observação, hipótese, experimentação e indução ).
Compreender-se-á, por conseguinte, que as observações dos satélites
de Júpiter feitas nas próximas semanas, revelem uma preocupação de rigor e detalhe que
não encontramos nos primeiros cinco dias, de 7 a 11 de Janeiro de 1610. São-nos dados os
tamanhos e brilhos aparentes, a sua posição relativa face a Júpiter, as coordenadas de
orientação no eixo Oriente-Ocidente e o distanciamento dos satélites entre si, tudo
isto enquadrado, na medida do possível, com dados quantitativos, onde se destacam as
datas e horas em que as observações são feitas, bem como a medição de distâncias,
apontadas com uma precisão da ordem dos "minutos de grau" e "segundos de
grau".
" (...) A descrição que se segue dará a conhecer as suas
permutações, observadas da maneira mais exacta. Medi também os intervalos que os
separavam por meio da Luneta, segundo o método já exposto. Por outro lado, acrescentei
as horas das observações, sobretudo quando existiram várias durante a mesma noite;as
revoluções destes Planetas são, com efeito, tão rápidas que a maior parte das
vezes podem notar-se diferenças de hora a hora. (. . . )".
Nos dois dias seguintes, 12 e 13 de Janeiro, os comentários de Galileu
passam a obedecer a esta nova estratégia, a linguagem é objectiva, sem adjectivação
afectiva, fria e neutral, como convém a quem entende que, a partir de agora, a
"força dos factos" é tão grande que bastará deixar que falem por si
próprios!
Os dias que completam esta espantosa semana para a astronomia e
Cosmologia Moderna, merecem somente dois comentários finais. O primeiro é ficarmos a
saber que foi nesta altura que pela primeira vez foi avistado o quarto satélite de
Júpiter, e o segundo assinala que Galileu passa a distinguir sem hesitação os novos
planetas afirmando-nos, inclusivé, que o seu brilho é superior ao das Estrelas Fixas da
mesma grandeza.
Ouçamos as suas palavras: "(. . . ) No dia doze, na primeira
hora da noite, vi as Estrelas dispostas desta maneira: (. . . ) A Estrela mais
oriental era maior que a mais ocidental, mas ambas eram bem visíveis e resplandecentes;
cada uma estava afastada de Júpiter cerca de 2 minutos. A terceira Estrela começou a
aparecer igualmente na terceira hora, de início muito pouco visível; quase que tocava
Júpiter do lado oriental e era verdadeiramente muito pequena. Todas se encontravam sobre
o mesmo plano, alinhadas ao longo da Eclíptica.
No dia treze, pela primeira vez, quatro pequenas Estrelas
ofereceram-se à minha vista, segundo a seguinte disposição por relação a Júpiter: (.
. . ) Três eram ocidentais e uma oriental; formavam uma linha quase recta; a
mediana das Ocidentais, todavia, desviava-se ligeiramente da recta, em direcção ao
norte. A Oriental estava a uma distância de 2 minutos de Júpiter; os intervalos que
separavam as outras de Júpiter eram, cada um, de somente 1 minuto. Todas as Estrelas se
mostravam de igual grandeza e, apesar do seu tamanho ser pequeno, eram todavia muito
brilhantes, mais esplendorosas que as Fixas da mesma grandeza. (. . . )".
Seguem-se seis semanas de observações persistentes, noite após
noite, só interrompidas por limitações meteorológicas, quando o céu se encontrava
completamente coberto de nuvens. De 13 a 25 de Fevereiro de 1610, a leitura, para um
leigo, torna-se monótona. Galileu é duma extrema economia no discurso. Não mais de
15/20 linhas, 1/2 desenhos, horas, ângulos, distâncias, grandezas aparentes. A rede
está lançada e a Ciência, de facto, é também uma longa paciência!
A fim de bem demarcar esta vertente, vejamos o que consta do "Mensageiro
das Estrelas", com intervalos de uma semana, no mês e meio que se segue:
--- "(. . . ) A catorze, o tempo esteve com nuvens. (. . . )".
--- "(. . . ) A vinte e um, às 0 horas, 30 minutos, três
pequenas Estrelas apresentaram-se a Oriente, igualmente distantes entre elas e por
relação a Júpiter: (. . . ) Os intervalos eram, segundo a minha estimativa, de 50
segundos de minuto. Havia também uma Estrela a Ocidente, distante de Júpiter 4 minutos.
A Oriental mais próxima de Júpiter era de todas a mais pequena; as outras, pelo
contrário, eram um pouco maiores e mais ou menos iguais entre elas. (. . . )".
--- "(. . . ) A vinte e oito e vinte e nove, nenhuma
observação foi possível, por causa da interposição de nuvens. (. . . )".
--- "(. . . ) A quatro, na segunda hora, quatro Estrelas
rodearam Júpiter, duas a Oriente e uma a Ocidente, dispostas exactamente sobre a mesma
linha recta, como na seguinte figura: (. . . ) A Estrela mais Oriental estava a uma
distância de 3 minutos da seguinte, enquanto que esta estava distante 0 minutos e 40
segundos de Júpiter; Júpiter estava a 4 minutos da mais próxima a Ocidente, e esta a 6
minutos da mais Ocidental. Eram aproximadamente iguais em grandeza; a mais próxima de
Júpiter aparecia ligeiramente mais pequena que as outras. Posteriormente, na sétima
hora, as Estrelas Orientais não estavam separadas senão por 0 minutos, 30 segundos: (. .
. ) Júpiter encontrava-se a 2 minutos da Estrela oriental mais próxima, enquanto
que estava a 4 minutos daquela que o seguia a Ocidente e esta a 3 minutos da mais
Ocidental de todas. (. . . )".
--- "(. . . ) A onze, na primeira hora, duas Estrelas
apresentavam-se do lado de Oriente e uma do lado do poente: (. . . ) A Ocidental
estava a 4 minutos de Júpiter; a Oriental mais vizinha estava, também, a 4 minutos,
enquanto que a mais Oriental encontrava-se a uma distância de 8 minutos desta última.
Estavam bastante nítidas e situadas sobre o mesmo plano. Mas, à quarta hora, uma quarta
Estrela tornou-se visível, a mais próxima, a Oriente de Júpiter, mais pequena que as
outras, distante de Júpiter de 0 minutos, 30 segundos, e desviando-se da linha que
atravessava as outras, um pouco deslocada para o norte. (. . . )".
--- "(. . . ) A dezoito, à uma hora, havia três Estrelas, das
quais duas ocidentais e uma oriental. A Oriental estava distante 3 minutos de Júpiter, a
Ocidental mais próxima, 2 minutos (. . . ) e a outra, a mais Ocidental de todas,
estava afastada 8 minutos da que se encontrava no meio. Todas se encontravam sobre o mesmo
plano, e aproximadamente com a mesma grandeza. (. . . )".
--- "(. . . ) A vinte e cinco, à 1 hora, 30 minutos, (pois nas
três noites anteriores o Céu tinha estado coberto de nuvens) três Estrelas apareceram:
(. . . ) Duas estavam a Oriente, sendo iguais as distâncias entre elas e
relativamente a Júpiter, isto é, de 4 minutos; a única Estrela situada a Ocidente
estava a uma distância de 2 minutos de Júpiter; encontravam-se exactamente sobre o mesmo
plano, que prolongava a Eclíptica. (. . . )".
Esta extensa citação pretende sugerir o clima que rodeia esta parte
do livro, a dimensão paciente e monótona da série de observações que permitirão um
dia o salto qualitativo que determinará as reais órbitas dos satélites de Júpiter.
Os derradeiros cinco dias, de 26 de Fevereiro a 2 de Março, mantendo o
tom e o estilo objectivo das anteriores semanas, introduzem uma novidade que consiste em
referenciar o conjunto dos movimentos de Júpiter e seus quatro satélites a uma Estrela
Fixa, que se tinha tornado visível nesta altura. Tal estratagema permite tornar mais
nítidas as séries orbitais examinadas, uma vez que essa Estrela Fixa serve de marco
imóvel que contribui para a exactidão das medições feitas.
"(. . . ) A vinte e seis, às 0 horas, 30 minutos,
apresentavam-se somente duas Estrelas: (. . . ) Uma, a Oriente, era distante de
Júpiter 10 minutos; outra, a Ocidente, encontrava-se a 6 minutos; a Oriental era
consideravelmente mais pequena que a Ocidental. Mas à quinta hora três Estrelas eram
visíveis. (. . . ) Para além das duas já assinaladas, com efeito, via-se uma
terceira, do lado do Ocidente, perto de Júpiter, bem pequena, anteriormente escondida por
trás de Júpiter, a uma distância dele de 1 minuto. (. . . )Essa noite, pela primeira
vez, decidi observar o percurso de Júpiter e dos Planetas que o acompanhavam seguindo a
linha do Zodíaco, em função da sua relação a uma Fixa; com efeito, uma Estrela Fixa
oferecia-se ao olhar, a Oriente, distante 11 minutos do Planeta oriental e ligeiramente
desviada para o sul, da seguinte maneira: (. . . )".
Concluídas as observações a 2 de Março de 1610, Galileu
expressamente refere que estes últimos dias, em que teve a preocupação de assinalar a
Estrela Fixa nos seus desenhos, visam todos aqueles que pretendem comparar tais
trajectórias com os dados presentes nas Tábuas Astronómicas então reconhecidas como
válidas. Isto é, vai-se ao encontro da concordância com um património de conhecimentos
astronómicos, de forma a enquadrar o desconhecido e a novidade num corpo teórico
consensualmente aceite. É um exemplo curioso da forma peculiar em que o pensamento de
Galileu articula momentos de "ruptura" com fases de "continuidade",
perante o sistema de conhecimentos que simultaneamente prolongou e ultrapassou.
"(. . . ) Estas confrontações de Júpiter e dos Planetas que
o rodeiam, com a Estrela Fixa, pretendi acrescentá-las a fim de que, graças a elas,
todos possam compreender que os percursos destes Planetas, em longitude como em latitude,
concordam exactamente com os movimentos que derivam das tábuas. (. . . )".
8 - O ORBE DE CRISTAL
Terminado o diário destes
alucinantes dois meses, Galileu propõe uma série de considerações finais, que fazem
uma espécie de balanço das suas dúvidas, convicções e prognósticos relativamente ao
futuro.
Em primeiro lugar, uma dupla confissão, simultaneamente de sucesso e
impotência. Isto é, sabe que há quatro satélites em torno de Júpiter, que as suas
órbitas são individualizadas, que o acompanham num movimento conjunto em torno do sol,
mas não foi ainda capaz de calcular o período orbital de cada um destes planetas, cuja
existência acabou de nos revelar! "
"(...) A partir destas observações, ainda que não tenha sido
por enquanto possível calcular os períodos dos Planetas, pode-se no mínimo enunciar
algumas afirmações dignas de atenção. E, antes de mais, uma vez que segundo intervalos
semelhantes, tanto seguem, como precedem Júpiter, uma vez que não se afastam dele, tanto
em direcção ao levante como ao poente, senão segundo desvios muito estreitos, e uma vez
que o acompanham de forma parecida no seu movimento retrógado e no seu movimento directo,
ninguém pode duvidar que descrevem à sua volta as suas próprias revoluções,
realizando, durante esse tempo, todos em conjunto, um movimento giratório de doze
anos em torno do centro do mundo. (...)".
Após esta síntese, Galileu entende que tais dados podem ser
mobilizados para um duplo fim, que visa não só uma defesa das teses copernicianas, mas
também um confronto teórico com outros modelos cosmológicos então em vigor. Não nos
referimos exclusivamente ao modelo geocêntrico, de raíz aristotélico-ptolomeica, que
era sem dúvida o adversário principal, mas a variações mais complexas então em vigor,
como era o caso da concepção de Tycho Brahe.
Este astrónomo dinamarquês (1546-1601), de origem nobre,
contemporâneo de Galileu e Kepler, é uma das mais interessantes personalidades desta
época de transição. Desde muito cedo vocacionado para a Astronomia, obtém o apoio da
coroa dinamarquesa para se dedicar à investigação, tendo acesso a meios verdadeiramente
invulgares, dentro desta área de estudos. Consegue que lhe seja doada uma ilha pelo rei
Frederico II, situada entre Copenhague e o Castelo de Elsinor, em cujas muralhas
longamente cismou o príncipe Hamlet!
Aí constrói um gigantesco laboratório-cidade, a partir de 1576, que
sintomaticamente nomeou Uraniburg, e para o qual não poupou nem esforços, nem despesas,
a fim de fundar uma comunidade científica exclusivamente dedicada à observação dos
céus. Tudo foi cuidadosamente desenhado com esse fim, sendo de destacar os gigantescos
instrumentos de observação dos astros, cuja precisão é inexcedível na era anterior ao
desenvolvimento dos telescópios.
Dirigindo tiranicamente Uraniburg, com temperamento simultaneamente
irascível e folgazão, Tycho Brahe vai acumulando ao longo dos anos séries de
anotações numéricas (ângulos, datas, horas, desvios) relativos a todos os planetas
conhecidos, a estrelas e constelações, bem como a cometas e super-novas.
O seu sonho era construir um sistema cosmológico alternativo a
Ptolomeu e Copérnico, recuperando, em parte, a antiga tradição de Heráclides.
Modelo híbrido, aglutinava em si aspectos geocêntricos e heliocêntricos. A Terra era o
centro do Mundo e em seu torno orbitavam a Lua e o Sol. Mas, por sua vez, à volta do Sol,
giravam os cinco planetas conhecidos (Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno). Tendo
conhecimento da publicação, em 1596, da obra de Kepler "Mysterium Cosmographicum",
onde se desenvolviam ideias que recuperavam estranhas combinatórias de Copérnico com
convicções pitagóricas e devaneios geométrico-platónicos, resolve convidar o tímido
Kepler para uma estadia junto a si, de forma a trocarem opiniões e pontos de
vista.
O convite é aceite, mas com intenções dúbias de parte a parte, pois
enquanto Tycho Brahe reconhecia a vocação matemático-geométrica de Kepler, este
necessitava desesperadamente de ter acesso aos dados quantitativos na mão do
dinamarquês, resultantes dos anos de trabalho forçado de Uraniburg. As relações entre
estas duas personalidades tão diferentes estão recheadas de peripécias, que não é
oportuno agora relatar, bastando referir que Kepler fica herdeiro dessa informação,
após 1601, altura em que Tycho Brahe morre. Na posse desses elementos, designadamente dos
dados referentes a Marte, Kepler vem a publicar, em 1609, a sua "Astronomia
Nova", um ano antes de Galileu trazer a público "O Mensageiro das
Estrelas".
Nessa obra ("Astronomia Nova") são correctamente
expostas as duas Leis que rompem com o dogma do movimento circular e uniforme. Galileu
conhece este texto mas, espantosamente, não tira as devidas consequências, pois
continuará a sustentar até ao fim da sua vida concepções que não entram em linha de
conta nem com a forma elíptica das órbitas planetárias (1ª Lei de Kepler), nem com o
movimento não uniforme das translacções em torno do Sol (2ª Lei de Kepler).
Seja como fôr, em 1610, o sistema de Tycho Brahe era conhecido,
e Galileu deve estar a pensar que as suas descobertas podem ser um argumento contra tais
teses dum Universo bi-cêntrico (Terra e Sol), em defesa dum modelo coperniciano
"puro", que nunca foi capaz de abandonar!
Ouçamos as suas palavras: "(. . . ) Por outro lado, temos um
argumento excelente e luminoso para retirar qualquer escrúpulo àqueles que, ainda que
aceitando tranquilamente a revolução dos Planetas à volta do Sol no sistema
coperniciano, ficam de tal maneira perturbados pela órbita que a Lua faz em torno da
Terra --- enquanto que estes Planetas cumprem uma revolução anual em torno do Sol ---,
que julgam que esta organização do mundo deve ser rejeitada como uma impossibilidade. (.
. . )".
Referido o argumento de estranheza que resultava da Lua ser o único
planeta simultaneamente orbitando em torno da Terra e do Sol, Galileu afirma que esta
excepção deixa de ser incomodatícia e paradoxal, uma vez que se detectaram 4 planetas
(satélites) em torno de Júpiter, de forma análoga à das relações Terra-Lua.
Portanto, já não é um caso (Lua), mas cinco (satélites de Júpiter e Lua), e a
excepção passa a normalidade! Só o sistema de Copérnico é capaz de integrar, de forma
não contraditória, tais irrecusáveis factos.
"(. . . ) Agora, com efeito, já não temos mais um único
Planeta rodando à volta de um outro, enquanto que ambos percorrem um grande orbe à volta
do sol, mas a nossa percepção oferece-nos quatro Estrelas errantes, rodando em torno de
Júpiter, como a Lua o faz à volta da Terra, enquanto que todos executam em conjunto com
Júpiter, no espaço de doze anos, um grande orbe à volta do Sol. (. . . )".
É interessante salientar que Galileu ao referir o facto dos Satélites
de Júpiter aparecerem por vezes à observação com grandezas aparentes que chegam a
variar em 100%, reconhecer que não basta a explicação radicada num efeito de
aberração óptica da responsabilidade dos "vapores terrestres". " (. .
. ) Todavia, não se deve silenciar a razão pela qual acontece que os Astros Mediceus,
enquanto realizam pequeníssimas rotações em torno de Júpiter, parecem por vezes mais
de duas vezes maiores. Não podemos de forma alguma procurar a causa nos vapores
terrestres, porque as Estrelas satélites aparecem aumentados ou diminuidos
enquanto que, visivelmente, a massa de Júpiter e das Fixas mais próximas em nada é
modificada. ( . . . )".
Acrescenta também que não basta como explicação referir que, na sua
órbita em torno de Júpiter, na altura do perigeu, os Satélites se aproximam de tal modo
da Terra que o seu tamanho aparece maior, enquanto que fenómeno oposto se daria no
momento do apogeu. "(. . . ) Que, por outro lado, estas Estrelas se aproximem e
afastem de tal modo da Terra no momento do perigeu ou do apogeu da sua revolução, (. . .
)parece absolutamente inconcebível; (. . . )".
É exactamente nesta altura que Galileu nos deixa uma curiosa e
significativa hipótese, para imediatamente a abandonar como algo de absurdo e
incompatível com os factos, ao sugerir que as órbitas dos Satélites pudessem ser
"ovais". Isto é, no momento em que Kepler tinha demonstrado nas suas duas Leis
da "Astronomia Nova", a forma elíptica das órbitas planetárias,
Galileu concebe por momentos um cenário análogo, através dum "movimento
oval". Mas é verdade que lhe não atribui qualquer importância, a não ser pela
negativa, lançando-se precipitadamente na sua refutação liminar!
"(. . . ) uma estreita rotação circular não pode de nenhuma
forma produzir isso e um movimento oval (. . . ) parece ser simultaneamente inconcebível
e de nenhuma maneira compatível com as aparências. (. . . )".
Assim deixando escapar um facto absolutamente vital para a Ciência
Moderna, Galileu insiste numa explicação baseada na tese dos "orbes
vaporosos", já utilizada para a Lua e Terra, mas agora extensível a Júpiter. Tal
orbe seria o responsável pelo aumento da grandeza aparente dos Satélites no momento do
perigeu, altura em que seria mais atenuado. Inversamente, no instante do apogeu, porque
mais denso e extenso, levaria a que os satélites fossem vistos como francamente mais
pequenos.
"(. . . ) É certo, para além do mais, que não somente a
Terra, mas igualmente a Lua possuem o seu próprio orbe vaporoso espalhado à sua volta,
seja devido ao que dissemos mais atrás, seja, sobretudo, por causa daquilo que será mais
longamente desenvolvido no nosso SISTEMA. (. . . ) não parece nada inconcebível colocar
um orbe mais denso que o resto do éter em torno de Júpiter; à sua volta, como a Lua em
torno da esfera dos elementos, giram os Planetas MEDICEUS, e devido à interposição
deste orbe quando estão no apogeu, aparecem mais pequenos, enquanto que no perigeu, por
causa do desaparecimento ou atenuação deste mesmo orbe, aparecem maiores. A falta de
tempo impede-me de ir mais longe. Que o Leitor benevolente aguarde mais factos sobre estes
assuntos dentro de pouco tempo. (. . . )".
São estas as últimas palavras escritas no "Mensageiro das
Estrelas", altamente significativas do momento de transição que percorre toda a
obra de Galileu no que à Física Celeste diz respeito. Vivendo entre dois mundos, a sua
extraordinária perspicácia não impediu que deixasse em torno do seu espírito um
derradeiro orbe de cristal onde, qual bela adormecida, se sonha a doçura imemorial duma
perfeição que eternamente nos foge e nos chama.
Porto, Janeiro 1995
- © Levi António Malho - Regressar
a "Textos de
Filosofia "
- Actualizado em 30.12.2002
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