Clinton e Zapata

Uma novela exemplar na pós-modernidade

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O México é um país de génio melodramático e com paixão pela telenovela, diz-se. Da realidade à ficção vai apenas um passo, assim reza outro lugar comum. Nestes tempos de "globalização", é bem apropriado que as tramas e os enredos dramáticos da sua actualidade política se repercutam pelos quatro cantos do mundo. Em "tempo real", entenda-se. Por último, esta história vai oferecer também um rudimento de inter-actividade, sendo o leitor admitido a escolher entre quatro "maus da fita" consoante as suas preferências ideológicas. O desfecho final não é ainda conhecido. Supõe-se mesmo que não haverá. É um work in progress e o argumentista anda por aí de face mal barbeada, mergulhado na magnífica insónia do mundo.

Vejamos então muito resumidamente os antecedentes imediatos. O país entrou em ruptura nos pagamentos da sua colossal dívida internacional, no começo dos anos 80, após uma queda nos preços do petróleo. Com a presidência de Miguel de La Madrid começou a sua regeneração aos olhos da finança internacional. É conhecida a receita: cortes nos salários e nas despesas públicas assistenciais, despedimentos, disciplina orçamental, repressão das revoltas populares. Os homens regisconta do F.M.I. começaram a sorrir agradados. Mas o menino dos seus olhos seria Carlos Salinas de Gortari. Ele chegou à presidência pela via usual - o "dedazo" do seu antecessor e uma colossal fraude eleitoral. A partir daí não mais deixou de ser o homem de Wall Street e a encarnação do sonho capitalista mexicano. Sobre o fundo de austeridade e emagrecimento orçamental herdados, Salinas apôs um complexo e vasto programa de privatizações e dominou finalmente a inflação. As altas taxas de juro e o baixíssimo preço da mão de obra atraíram capitais do outro lado do Rio Grande. Com George Bush, engendrou a adesão do México ao espaço norte-americano de livre comércio (NAFTA) a qual ocorreria já em Janeiro de 1994. Mais privatizações, mais liberalização, mais desregulamentação. Embalado pela sua própria propaganda, julgou-se o fundador de um México de primeira, com lugar assegurado entre os grandes. Ao passar o testemunho ao seu herdeiro designado, julgou-se credor da gratidão eterna da nação, enquanto se preparava para assumir em Genebra a presidência da Organização Mundial do Comércio apadrinhado pelo tio Sam. A realidade desabou sobre ele cruelmente. Foi abandonado por todos na maior ignomínia. Os taxistas buzinavam injuriosamente à passagem por sua casa. Depois de uns esboços ridículos de greve de fome, viu-se obrigado a transpor a fronteira discretamente e ir mendigar emprego em Nova Iorque.

Que se passou?

Cena : Os finais de presidência no México concluem-se ritualmente com uma desvalorização da moeda, o peso, a fim de relançar a competitividade das exportações. É uma cortesia. Salinas, obcecado com as suas ambições internacionais, "esqueceu-se" de proceder à sua, receoso que tal pudesse ser entendido como sinal de pouca confiança na solidez da economia. A 18 de Dezembro há uma ofensiva do Exército Zapatista a que se seguiu alguma moderada fuga de capitais. O novo ministro das Finanças prometera já que não haveria desvalorização do peso, mas Ernesto Zedillo (o novo presidente) resolve aproveitar a maré para sangrar um pouco a moeda. Seguiu-se a catástrofe. As fúrias do mercado soltaram-se de imediato implacáveis sobre a tenra presa. Em nove dias, 8 biliões de dólares (12% do investimento externo no país) evaporaram-se e o peso perdeu 40% do seu valor. Seguiu-se o colapso na bolsa que enviaria as suas ondas de choque até ao Chile, Argentina e Brasil. O presidente norte-americano, passando por cima das hesitações e reticências do Congresso, avança com o seu plano de empréstimos de emergência à república mexicana no valor de 40 biliões de dólares. Viva Clinton!, titulou a imprensa. É evitada à justa a ruptura nos pagamentos e o consequente colapso do sindicato bancário credor. Como contrapartida, o governo mexicano promete "privatizar" satélites, caminhos de ferro, portos e aeroportos. Mesmo o mítico monopólio estatal dos petróleos, a PEMEX, fica com os seus réditos sob o controlo do F.M.I.. A economia mexicana entra em profunda recessão. O proletariado pouco tem hoje para perder, é verdade (salvo as ilusões, para quem as tinha). O poder de compra dos salários caiu 47,5% nos últimos dez anos (ou 60% nos últimos doze anos segundo outros estudos). Mais de metade da população mexicana vive já na miséria. Mas as nascentes classes pequena e médio burguesas ver-se-ão arruinadas, as perspectivas de crescimento sólido e duradouro são adiadas indefinidamente e a independência nacional fica seriamente comprometida.

Quem é o responsável?

Hipótese 1: Há realmente aquele bisonho grupo de encapuçados que pegaram em armas nas florestas do Sul e declararam guerra ao Governo e à oligarquia a 1 de Janeiro de 1994. São algumas centenas de índios, muitos adolescentes, com treino militar e armamento mais do que rudimentares. "Sob o ponto de vista militar o EZLN é um absurdo. O que o torna uma realidade tangível são as aspirações que ele sustenta" (Sub-comandante Marcos). O assunto foi tratado até com algum tacto e comedimento por parte do Estado/P.R.I.. Os rebeldes aproveitaram ao máximo o capital de simpatia ganho e tempo conquistado, mas falharam claramente na tentativa de criar um bloco nacional de oposição democrática, mediante a aliança entre os seus índios e camponeses ultra pauperizados, a intelectualidade e o proletariado urbano. A Convenção Nacional Democrática reunida em Agosto na selva (sobre a qual se abateu uma violenta intempérie) foi um sucesso de organização e popularidade no país e no estrangeiro, não tendo porém sequência na criação de uma organização de massas. Os grupos de vigilância cívica sobre as eleições falharam a sua missão. Consequência disso ou não, o P.R.D. da Cahuatemoc Cardenas sofreu uma grave derrota eleitoral. O regime do P.R.I. sai das urnas com a sua legitimidade reforçada, transferindo-se ainda para o P.A.N., o partido da direita ultra-liberal, a alternativa política mais visível. Marcos saúda o presidente eleito Ernesto Zedillo: "Bienvenido a la pesadilla". Isolado politicamente, o E.Z.L.N. não tem outra alternativa senão uma desesperada iniciativa militar em Dezembro. Dá-se o crash. O exército mexicano tem ordens para cercar os zapatistas e capturar os seus líderes. A guerrilha desaparece na selva sem deixar rasto. Hão-de ser extremamente pusilânimes os capitalistas que fugiram sob a ameaça do fuzil zapatista. Assim fossem todos.

Hipótese 2: Seria por causa da explosão de violência política mafiosa no seio do P.R.I.? Em Março, o candidato "institucional" à presidência, Luis Donaldo Colosio (praticamente um príncipe herdeiro), é assassinado ao que tudo indica por uma conspiração fomentada por barões do partido. Em Setembro foi a vez de José Francisco Ruiz Massieu, conselheiro principal e nº 2 do novo chefe de Estado. Este último crime entretanto já pôde ser desvendado: o mandante foi Raul Salinas, ex-cunhado da vítima, irmão mais velho do à altura presidente. O próprio irmão de Ruiz Massieu, enquanto Procurador-Geral, participou nas manobras de encobrimento do assassínio. Foi finalmente preso, nos E.U.A.. Na sua conta bancária há milhões de dólares em subornos de grandes narco-traficantes, ramo empresarial que o Salinas mais velho também cultivava. A indústria mexicana é incipiente e incapaz de competir externamente. Os seus "grandes homens" são monopolistas, latifundiários, rendistas, intermediários, narco-traficantes, todos íntimamente relacionados com o partido do poder, que financiam em troca de favores. As iniciativas de reforma, abertura e transparência por parte de uma parte do aparelho p.r.i.'sta (apostada em criar uma classe burguesa mais asseada, que ganhe a vida em actividades capitalistas produtivas, de risco e iniciativa) foram sempre seguidas com muita desconfiança pela plutocracia dominante. Os compromissos hábeis de Salinas deram lugar à incerteza. São disparados alguns avisos. Os reformistas não desarmam e consuma-se a ruptura. Biliões de dólares em capital parasita saem do país, o que deu o sinal para a fuga do capital estrangeiro - quase todo especulativo e de rapina - temeroso da instabilidade e incerteza política gerada.

Hipótese 3: Este modelo de desenvolvimento capitalista - para além da monstruosidade dos seus efeitos sociais - simplesmente não funciona. É uma espécie de jogo à Dª. Branca que, em qualquer ponto, tem de entrar em ruptura. Consciente ou inconscientemente, Salinas é um vigarista. O México aderiu ao GATT em 1986 e ao bloco NAFTA em 1994. Entretanto, a sua política tem sido sempre de abertura contínua e progressiva ao livre comércio e à livre circulação de capitais. Na sua situação geo-política, tal só pode significar uma crescente imbricação e dependência dos E.U.A.. É certo que as suas exportações para o Norte aumentaram significativamente (sobretudo petróleo, outras matérias-primas e produtos de fraco valor acrescentado), mas as importações aumentaram ainda mais. Em 1994 o défice comercial com os E.U.A. foi de 24 biliões de dólares, 7% do PIB. Como se colmatou este défice? Importando capital norte-americano, aliciado pelo baixo preço da mão-de-obra, pelas altas taxas de juro, pelas taxas de câmbio fixas e por mil outros incentivos e deferências extremas. Como se viu, grande parte do capital atraído era especulativo e volátil. Não houve significativa transferência de capacidade produtiva real para o Sul do Rio Grande. O que há é muitos "tesobonos" - obrigações do Estado mexicano indexadas ao dolar - detidos pelos gringos e que agora vão ter que ser reembolsados a um preço catastrófico para o Tesouro. A bolha rebentou finalmente e a experiência neo-liberal saldou-se por uma catástrofe. Pese embora a crueldade da punição, ela é em boa medida justa para a burguesia mexicana que - embalada em grande euforia consumista, socialmente soberba e insensível - como que acreditou nas suas próprias efabulações ideológicas, recusando-se a ver que o seu optimismo não tinha qualquer base credível de sustentação.

Hipótese 4: Todos os dias se efectuam no mundo trocas no valor de mil biliões de dólares. A maior parte destas operações não são comerciais. São movimentos especulativos de capitais a cargo de gigantescos fundos de investimento. Especuladores puros, com um certo panache corsário como o britânico George Soros, ou bancos (como o infortunado Barings), grandes multinacionais, fundos de pensões, etc. No ano passado, só os fundos de pensões e mutual trust norte-americanos geriram 7 mil biliões de dólares (há vinte anos, o mesmo número era 535 milhões). Estas instituições (Morgan, Fidelity, etc.) não têm qualquer interesse a longo prazo nos países onde colocam os seus capitais. Querem títulos negociáveis imediatamente (acções, moeda depositada) e de rendimento garantido. As ordens de compra e venda cruzam o globo à velocidade electrónica. Contra eles nada podem os governos ou os bancos centrais. Quando marram para um lado, levam tudo à frente. Ora, existe uma grande dose de irracionalidade (dentro da irracionalidade global do capitalismo) nestes movimentos. O medo de perder e a urgência das decisões provoca uma percepção alterada das realidades económicas. Por outro lado, a hipótese de ganhos fabulosos está precisamente no agitar das águas, nas grandes correrias e no jogo do gato e do rato com as autoridades. Nos últimos anos, estes "investidores" vêm-se interessando pelos "mercados emergentes": Ásia, América Latina, Europa de Leste. Os seus decisores são frequentemente ignorantes e, sempre, ideologicamente preconceituosos nas suas análises. Por exemplo, onde eles lerem aumento dos salários reais traduzem logo por: inflação. E a ordem é: vender. Qualquer governo que prossiga uma política social "generosa" verá a sua moeda passar por sérias dificuldades. Mas não foi este, claramente, o caso do México. Pois bem, esta gente era tratada nas palminhas por Carlos Salinas que os punha ao corrente das mais pequenas decisões económicas do seu governo. Muda a gerência e novo ministro das Finanças, Jaime Serra Puche, começa por garantir que o peso não seria desvalorizado. Mas Zedillo manda-o avançar assim mesmo, sem dar cavaco a ninguém. Imperdoável! O ministro teve de ir a Wall Street sossegar os ânimos e foi aí copiosamente vaiado e insultado de "vadio" e "mentiroso" pelos golden boys da finança, verdadeiramente descompostos. Uma semana depois, perdia o emprego. Não houve mais maneira de parar a hemorragia. O peso caiu irredimivelmente nos abismos. Mais: após a operação de salvamento ordenada por Clinton foi o dólar que se tornou repelente (é claro que os E.U.A. não são o México: ataques ao dólar são até encarados com mal disfarçada simpatia pela Federal Reserve), com todas as apostas a dirigirem-se para o marco e para o yen. A peseta, o franco e o escudo apanharam por tabela. Eu estou mais pobre hoje por causa desta história. E enfim, achei que precisava de desabafar um pouco.

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Publicado na revista 'Política Operária' nº 49, Março-Abril de 1995.