Desventuras de uma nova crítica crítica

.

A escola do sociólogo académico alemão Robert Kurz começa a adquirir uma grande expressão, galgando fronteiras com o à-vontade próprio da sua vocação cosmopolita e gozando dos favores da moda intelectual ditada pelos media. É um pouco invulgar um pensamento que se reclama de radical ser considerado “interessante” nestes tempos, mas acontece, com uma correcta conjugação de factores e garantida que seja a sua completa inocuidade.

Kurz foi maoísta nos anos 1970 e nos anos 1980 fundou o grupo Initiativ Marxistische Kritik, com uma amálgama de influências de Adorno e Lenine. O seu nome começou a ficar internacionalmente conhecido sobretudo através da revista Krisis, da qual foi editor até há uns dois ou três anos atrás. Depois houve uma cisão neste grupo, na sequência de umas questiúnculas pessoais muito complicadas (devidamente revestidas por umas justificações intelectuais ainda mais complexas), de que resultou a saída de Kurz e do seu círculo mais fiel para fundar a revista Exit, que é o actual órgão desta corrente.

Em Portugal, o pensamento de Kurz e acólitos tem sido divulgada sobretudo pela editora Antígona, que já publicou em 2003 o ‘Manifesto contra o trabalho’, do grupo Krisis, e publicada agora ‘As aventuras da mercadoria – para uma nova crítica do valor’ de Anselm Jappe (*)(1). A escola de Kurz, para não se designar pelo seu nome próprio, ou pelo de alguma das publicações por ele editadas, costuma denominar-se também como “crítica do valor”, embora esta se reclame de uma certa genealogia intelectual que recua até Gyorgy Lukács (o de ‘História e Consciência de Classe’), Isaak Rubin e Roman Rosdolsky, reclamando também afinidades com outros pensadores actuais, como o norte-americano Moishe Postone e o francês Jean-Marie Vincent.

O que nos oferece então esta “crítica do valor” kurziana? Um bom começo de resposta a esta pergunta pode buscar-se precisamente na leitura deste livro de Anselm Jappe, que é um bom divulgador de ideias alheias, escrevendo com clareza, informação e detalhe, sem o brilho estilístico de Kurz, mas também sem os seus desmesurados artifícios barrocos. Jappe é um autor jovem. Nasceu em 1962 na Alemanha mas vive em França, onde publicou anteriormente uma obra sobre o guru “situacionista” Guy Debord. Este seu novo livro foi também escrito originalmente em francês. Não fazendo propriamente parte do círculo Krisis/Exit, segue os seus preceitos muito de perto e sem qualquer distanciamento crítico.

A “crítica do valor” faz a distinção entre um Marx bom e actual de um Marx mau e perimido. Até aqui nada de novo, havendo já centenas de exercícios deste género. O Marx mau é aqui designado como “exotérico” e o Marx bom como “esotérico” (2). Existiria uma tensão interna, potencialmente contraditória, na obra de Marx (dos Manuscritos de 1844 até ‘O Capital’) de que ele não foi consciente. O Marx mau teve depois sequência naquilo que é apelidado depreciativamente como o “marxismo tradicional”. O Marx bom teve, naturalmente, de esperar pela novel “crítica do valor” para luzir em todo o seu esplendor libertário.

O Marx exotérico (e com ele o marxismo tradicional) estaria imbuído de uma “ontologia do trabalho”, glorificando acima de tudo o homo faber e concebendo a história social como uma sucessão de “modos de produção” definidos pela forma como é assumido o eterno metabolismo do homem com a natureza. Este Marx seria, no fundo, ainda um mero “dissidente do liberalismo burguês”, apostando no nascente movimento operário como um motor imanente do desenvolvimento do próprio capitalismo, alargando cada vez mais o império das relações mercantis e promovendo um crescimento acelerado das forças produtivas.

Para a “crítica do valor” é óbvio que a luta do proletariado não tem nada a ver com a superação do estado de coisas existente. Na verdade, o próprio trabalho é uma categoria capitalista e, nas palavras de Jappe, “os interesses dos assalariados não são essencialmente diferentes dos outros interesses que concorrem no interior da sociedade mercantil”. Todos somos simplesmente vendedores de mercadorias, seja ela a própria força de trabalho. E portanto “na sociedade fetichista não pode haver uma «classe da consciência» constituída por uma das categorias funcionais da mercadoria, a qual tivesse ao mesmo tempo a missão histórica de pôr termo à sociedade de classes”. Adeus, pois, ao proletariado como sujeito histórico. A “luta de classes” (assim mesmo, entre aspas) não passa de uma astúcia da mercadoria na sua estratégia expansionista e sistemicamente integradora. Para a “crítica do valor” a superação do capitalismo será resultado de um “colapso” objectivo do próprio processo de valorização. São fúteis e deletérias quaisquer tentativas de organização política anti-capitalista, valendo quanto muito o pequeno gesto de recusa e rebeldia. É da própria implosão do capitalismo que resultará um “vazio” a preencher depois pela emergência de uma outra forma de vida social. Para se encontrar uma alternativa à sociedade mercantil, Jappe não acha nada melhor que a aconselhar-nos um retorno a Aristóteles e à meditação sobre a ideia de “vida boa”.

O Marx bom, actual e proveitoso é, como já se adivinhou, o desvelador do fetichismo da mercadoria, o que denunciou a dominação da coisa sobre o homem e do trabalho morto sobre o trabalho vivo, o caracterizador do valor como sujeito autónomo, aquele que definiu o burguês e o proletário concretos como meras “máscaras” no grande teatro do processo de auto-valorização do capital. Para a “crítica do valor”, este Marx “esotérico” estaria em contradição com o Marx da luta de classes e da emancipação do proletariado. Marx teria sido insuficientemente radical ou insuficientemente consequente consigo próprio. Isto porque, no dizer de Jappe, “o conflito entre o movimento operário e a classe capitalista foi, no final de contas, uma «querela de família» no interior dessa working house que é a sociedade capitalista”. Felizmente esses equívocos são já coisa do passado, naturalmente. Iluminados pela “crítica do valor” sabemos agora que a contradição entre capital e trabalho assalariado não é mais que “um aspecto derivado da verdadeira contradição fundamental, a que subsiste entre o valor e a vida social concreta”.

Verdadeiramente radical será a proposição de abolir o próprio trabalho (3). Simplesmente, isso é algo de que o capitalismo já se vai encarregando por si próprio. Resta-nos esperar. Entretanto, podemos ir imaginando uma nova sociedade baseada na dádiva e não mais no trabalho e no valor. Os construtores da nova sociedade serão naturalmente pessoas instruídas, superiormente educadas e criativas, não essa gente rude do trabalho que só pensa em encher a barriga de cerveja e arrotar alarvemente. Do mesmo modo que a “crítica crítica” de Bruno Bauer e consortes no tempo do jovem Marx, a “crítica do valor” contemporânea limita-se a conceber revoluções no pensamento, descurando (ou melhor, desprezando) por completo o problema de encontrar uma alavanca real para transformar o mundo de facto.

(*) ANSELM JAPPE ‘As Aventuras da Mercadoria – para uma nova crítica do valor’, Antígona, Lisboa, Março de 2006.

_______________
NOTAS:

(1) Na Internet, há também um excelente sítio de divulgação de ensaios de Robert Kurz e associados em Obeco, com organização de José Neves.

(2) Sobre esta matéria, para ir à fonte, leia-se Robert Kurz, ‘As leituras de Marx no século XXI’.

(3) Sobre isso leia-se, do Grupo Krisis, o ‘Manifesto contra o trabalho’, na edição da Antígona ou em linha. Uma crítica de Charles Reeve pode ler-se também em linha.