O Direito, a Justiça e a Liberdade

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1. O propósito

"A motivação do advogado tem, assim, como referência mais válida, ou mais correcta, não a justiça, e menos ainda a do direito, mas a da liberdade - ou, se se quiser, e como fim último, a da paz."

Com estas palavras, o ilustre causídico dr. Alfredo Gaspar, conclui a sua informada e convincente anotação ao nº 1 do artigo 76º do Estatuto da Ordem dos Advogados (E. O. A.).

É meu propósito, nas páginas que se seguem, alinhar algumas considerações sobre este texto legal-estatutário e discutir quais de entre aqueles grandes ideais da consciência humana hão-de merecer realmente a consideração privilegiada do advogado "no exercício da sua profissão e fora dela". E porquê.

É um bisonho escrito este, mas ainda assim não tanto que se vá limitar a um arrazoado ocioso sobre meros arquétipos ideais. Tem-se em conta que os valores, mesmo os mais "puros" e elevados, são construídos pela prática social e, bem compreendidos, rescendem a essa terra comum onde os homens, trabalham, lutam, amam e (se) transformam.

E sarà mia colpa si cosi é? Assim interrogava o bom Maquiavel aos seus contemporâneos.

Também ao longo destas páginas algumas análises e argumentos poderão impressionar pela sua crueza pouco comum num discurso, apesar de tudo, jurídico. O que se entende é que, precisamente, vai sendo tempo de se proceder à desalienação de um continente de conhecimento que vem reclamando o estatuto de ciência sem desta possuir o método nem a problematicidade. Aí, acabar-se-ia toda a boa consciência idealista.

Vou pôr uma hipótese.

2. O direito

É certamente incontestável que o advogado, como qualquer cidadão, deve obediência à lei.

Coisa totalmente diversa é determinar se ele deve considerar-se um "servidor do direito”. Idealmente, todos o seremos; mais comum e realisticamente, servimo-nos dele para a satisfação do nosso interesse pessoal, de grupo, de classe, nacional - ou das pessoas que o advogado representa profissionalmente, perante as quais ele está (juridicamente) obrigado a defendê-las no seu interesse, dentro dos limites da lei e do direito.

Desta actividade pode resultar serviço do direito, como tentarei demonstrar. A meu ver, no entante, resultará tanto maior esse servirço quanto o advogado menos se preocupar com ele, quanto mais ele justamente se esforçar por "pressionar" as margens do direito estabelecido, na prossecução dos interesses que lhe estão confiados.

Para se compreender isto, terei de partir para uma breve definição do direito. No actual estado da sabedoria ou prudência jurídica, uma sua definição é, necessariamente, a sua crítica.

Torna-se cada vez mais insustentável o estatuto epistemológico de uma ciência que, a pretexto de não prestar tributo ao ser mas ao dever ser, resiste a toda a tentativa de a confrontar com os dados reais da existência social, tais como eles historicamente se vão pondo ao conhecimento dos homens.

Dir-se-á que este é sempre um conhecimento precário e falível, sujeito, no próprio plano metodológico, à precedência de um parti-pris, enfim uma ciência problemática e problematizante - dialéctica. Mas é este mesmo o caminho de todo o conhecimento humano, e nem por este se refugiar na nebulosa especulativa lhe escapará. Tentará, apenas, dissimular o estigma.

O preconceito idealista de uma certa tradição racional-humanista, ou o realismo positivista que erege o culto da forma como o verdadeiro ser do direito conjugam-se, alternativamente, para afastar esta disciplina do caminho que a deverá levar à maioridade epistemológica. Entretanto, a última grande reflexâo sobre os seus fundamentos conduzida entre nós pelo Prof. Castanheira Neves, em grande parte como reacção ao normativismo kelseniano e às poderosas sequelas do positivismo, remete-nos para... o imperativo categórico de Kant.

Assim se compreende a injunção do citado artigo do E. O. A.: o advogado é servidor do direito, a man must do what a man must do, ponto final.

Sucede, porém, que isto não me impressiona. Séculos de história reflectida demonstram-nos à saciedade que os consensos ou maiorias ideológicas, morais e jurídicos que as comunidades humanas formam e desenvolvem, reflectem o seu estádio de desenvolvimento económico e a maneira como se organizam para prover às suas necessidades materiais. Não é a consciência que comanda a nossa existência social mas, ao invés, esta que comanda aquela. Vou dar um exemplo, aliás clássico.

A mundividência cristã estabeleceu, no plano moral e religioso, que todos somos iguais perante Deus. Desde o sec. XVIII, foi politicamente definido o princípio da igualdade de direitos entre os homens e foram estabelecidos os parâmetros da constituição liberal como ainda hoje a conhecemos, com uma ou outra correcção socializante. Todavia, foi já bem dentro do sec. XIX que se aboliu o instituto da escravatura, e porque a energia a vapor, por essa altura, ia provendo às necessidades industriais sem que se tornasse necessário o recurso à sobreexploração de mão de obra um tal estatuto. Então sim, o problema da igualdade pôs-se à consciência des juristas e dos reformadores políticos.

Como poderemos então definir o direito?

Muito sucintamente, e com algum esquematismo, direi que se trata de uma ordem normativa complexa que, numa dada formação social, organiza e conforma os sistemas de trocas entre os indivíduos, e entre estes e a comunidade, segundo um paradigma ideológico correspondente ao grau do seu desenvolvimento económico e à notureza da classe social que nela exerce a hegemonia (Não posso aqui, infelizmente, alongar-me em esclarecimentos sobre alguns conceitos inclusos nesta definição).

Deste paradigma ideológico tratarei a seguir, quando tratar da justiça. Quanto à ordem normativa complexa, esta é, propriamente, o edifício jurídico: a lei (na sua articulação hierárquica - constituição, leis ordinárias, regulamentos), a jurisprudência, o costume.

A tudo isto se usa chamar, o direito constituído. Ora, segundo a concepção comum, a par deste haverá ainda o direito a constituir, a «ideia» do direito a prosseguir futuramente, etc. Poder-se-á, assim, afirmar que o conjunto destas duas facetas - a sua estática e a sua dinâmica - é que constitui o próprio fenómeno jurídico no seu todo. Como tal, não haveria violência exercida sobre o advogado quando o E. O. A. o declara servidor do direito. Mas esta concepção padece do vício idealista que já denunciei e, em verdade, não passa de uma ficção, de uma imagem plástica se quisermos. Os especialistas, nos seus tratados e comentários, podem formular opiniões de jure condendo. Políticos e jornalistas, qualquer cidadão enfim, pode fazê-lo. Mas quem poderá afirmar, com segurança, que vai ser este e não aqueloutro o direito que se irá constituir no futuro? Nesta matéria, as advertências dos positivistas não são sem fundamento: direito é apenas aquele que o é, expresso e sancionado, num determinado momento.

O que se pode sustentar com realismo é que a instância jurídica não é uma realidade imóvel, como a própria sociedade o nâo é. Existem nesta, mais ou menos organizados, grupos de interesses que se combinam e sintetizam constantemente em novas formas, adregando-se continuamente a novos consensos e plataformas do coexistência.

Simplificadamente, poder-se-á dizer que a classe dominante, impondo uma certa ordem social, impõe também algumas regras básicas para a expressão e normalização da conflitualidade nela imanente. Dentro de certos limites, que correspondem ao travejamento fundamental da ordem de hegemonia, todos podem jogar - agindo livremente, produzindo discursos e estratégias de aliciamento ideológico em torno de pequenos e médios projectos, combinando estes, aliando-se uns para afrontar outros, reconciliando-se todos após, etc.. De tudo isto resulta uma certa tensão permanente sobre a ordem jurídica estabelecida, a qual vai cedendo, aqui ou ali, a novos compromissos ditados pelo posicionamento no terreno dos diversos protagonistas.

Estas são as reais fontes do progresso das instituições jurídicas. (Aí se deve procurar o jus constituendo, se ainda houver necessidade ou propósito em recorrer a uma tal noção. Por este modo é que o direito vai progredindo, evitando estrangulamentos que prejudicariam a sua efectiva vigência ou que, no limite, poderiam apenas ser resolvidos pela interverção da violência pura e não sublimada.

A meu ver o advogado não é servidor do direito, no sentido exposto, senão indirectamente e em segunda via. Representa, sim, os interesaes que lhe estão confiados e, ao serviço destes, produz discursos de legitimação, retórica jurídica, procura vencer - convencendo. Ele é um profissional trabalhando na esfera da transferência dos impulsos vitais da sociedade para um plano racionalizado, mediante a argumentação e o compromisso.

3. A justiça

Esta é uma das ideias mais debatidas e um dos motivos mais recorrentes em vinte e cinco séculos de pensamento especulativo. Quanto aos resultados deste debate, poderia citar o refrão de uma cancão da telenovela brasileira ‘Cambalacho’, em exibição na RTP: "Ninguém mais sabe o que é certo ou errado, pois tudo depende do lado em que a gente está.”

Com proveito, pode ler-se o 'Diálogo sobre a justiça', em A República, de Platão. Aí, Trasímaco defende que a justiça consiste no interesse do mais forte erigido em lei; Sócrates, com uma argumentação sofística, "demonstra-lhe" que a justiça reside na bondade e na sabedoria, estando a injustiça do lado da malevolência ignorante.

Esta polémica, entre o racionalismo iluminista e o cepticismo realista, jamais se encerraria.

Aristóteles, na Ética a Nicómano, introduziu a concepção naturalista da justiça, sendo esta um certo equilíbrio e mediação entre forças extremas. Seria algo de análogo ao que sucede na natureza, com as suas propriedades hemeostáticas. Teria a justiça duas faces: a justiça distributiva, que consiste propriamente no suun cuique tribuere, no equilíbrio inicial; e a justiça comutativa, que seria a reintegração do justo, momentaneamente perturbado por algum "ruído" intruso.

Também esta concepção, a tradição jusnaturalista, faria longo curso. Ela está ainda hoje na base das declarações universais de direitos e joga um importante papel na legitimação das revoluções (e das contra-revoluções).

Tudo isto é definir a justiça. Cumpria contudo realizá-la, e de uma vez por todas, nas relações sociais. Em geral, este propósito tem conotações religiosas, reporta-se a uma visão terminal da hiatória, em que os conflitos teriam sido resolvidos, surgindo o reino da ordem e da harmonia espontânea, a redenção do pecado original, o resgate da nossa imperfeição constitucional pela celebrada "paz eterna".

Autores laicos, críticos e científicos, serviram-se desta visão. Hoje temos motivos sobejos para desconfiar: ela mata mais e realiza menos que o senso comum das realidades.

Mas poderá a humanidade viver, lutar e criar sem um pensamento final, prescindindo do absoluto, da unidade perfeccional, seja ela celeste ou terrena? Poder-se-á então continuar a julgar - não em nome de deus-pai, não em nome da natureza ou da história - com a nossa representação colectiva do justo, sabidamente precária, contraditória e destinada à superação?

Viver sem ilusões é certamente possível, já que a única necessidade é viver. Por outro lado é certo que, em geral, a humanidade não se põe problemas que não esteja já em condições de resolver.

Qual é então essa repreaentação do justo dominante, ou seja, quais são os traços fundamentais de um consenso ético na sociedade de hoje?

É sabido que essa sociedade tem classes, das quais uma é dominante e, por isso, impõe às demais a sua visão do mundo e os seus valores fundamentais. Dos valores que esta classe transporta uns são seus próprios e intransmissíveis, não fazendo consenso; outros, por mais amplos, impõem-se generalizadamente, fazendo parte do travejamento fundamental do ordenamento social que ela domina. É o que eu chamaria o seu paradigma ideológico.

Qual é ele, numa sociedade industrial de dominação burguesa como a nossa?

Avulta aqui a ideia de igualdade, no sentido em que a desigualdade de meios possuídos apenas pode ser tolerada se, assim mesmo, for o mais conveniente para o bem estar absoluto dos próprios desfavorecidos (John Rawls); no sentido ainda de que, neste contexto, todos à partida devem ter iguais oportunidades de se salientar. Temos depois a ideia de solidariedade, no sentido puramente negativo de que não se devem prosseguir interesses individuais ou de grupo que colidam com os interesses da colectividade no seu todo, ou que acarretem malefícios desproporcionados e injustificáveis para alguém.

É este o máximo denominador comum, a expressão mais abstracta do consenso social possível. São princípios directivos, nunca plenamente realizados e, ainda assim, sujeitos a reformulações, interpretações divergentes e à pressão constante que o jogo da praxis social lhe vai imprimindo.

É isto, hoje e aqui, a justiça. Tudo o mais pertence à esfera da consciência individual e será mais ou menos discutível. Multiplicam-se, hoje em dia, os debates éticos - drogas leves, questões ecológicas, reprodução assistida, direitos da mulher, etc., etc.. Prescrever que um advogado deve ser servidor da sua consciência do justo é certamente louvável mas é entrar numa questão de... consciência. Há sempre aqueles que a têm muito flexível. É um dizer nada que pode facilitar interpretações abusivas. Determinar que o advogado é servidor daquilo que maioritariamente, ou mesmo consensualmente, se considera justo, é excessivo e... injustificável, podendo no limite constituir um atentado aos direitos e liberdades fundamentais.

4. A liberdade

A sociedade produziu o homem. Este não é um animal puramente gregário, mas é suficientemente social para ser inconcebível, para cá do mito, a sua existência absolutamente solitária.

Não houve assim qualquer «contrato social» e esta figura, entendida como tal, tem nulo valor descritivo ou pedagógico. Como ideologia - em Hobbes mas também, ou sobretudo, em Rousseau - acarretava graves e perversas consequências para a liberdade individual. Ficcionando-se um reino primordial da liberdade absoluta, concluiu-se que esta se tornou intolerável para o homem. Consequentemente, acordou-se em alienar totalmente a liberdade ao Estado, o qual a organizará racionalmente para todos. A liberdade é agora a obediência cega das partes concretas (individuais ou corporativas) ao todo abstracto. Hegel, o obscuro, é o sacerdote supremo da nova fé no Estado iluminista.

Mas não houve nunca um tal estado primitivo de liberdade absoluta. A vida em sociadade é congénita no homem, pertence ao reino da necessidade inelutável. A ficção contratualista não passa de uma velha arquitectura ideológica que serviu à burguesia novecentista para consolidar o seu poder nacional, superando os últimos entraves institucionais da feudalidade em desagregação. Serviu, após isso, como escudo, no campo naturalmente dos discursos legitimadores, contra a crescente contestação do movimento operário. Exibindo um contrato no qual ninguém, realmente, se lembrava de ter outorgado, a burguesia recorreu à ditadura quando se viu ameaçada na sua hegemonia. Pois que toda a emancipação social era uma ameaça à liberdade que só a nação, no seu todo, representava a garantia.

Os homens não nascem livres - tornam-se livres, através da justa representação dos condicionamentos a que estão sujeitos e pela acção reflectida sobre a sua circunstância. Esta é uma proposição que vou tentar tornar mais credível com algumas notas.

A história da humanidade é a de um longo combate pela sobrevivência, pelo domínio e pela expansão. É próprio da natureza humana (individual ou colectiva), senão mesmo da de toda a vida animada, um certo desejo de poder, uma impulsão para o alargamento do campo de influência da sua vontade. O homem é um ser que se desdobra expansivamente em luta contra todos os obstáculos e limites.

Pouco se pode estabelecer, com segurança, sobre o período que antecedeu o aparecimento do homo sapiens, Possivelmente, a competição foi dura e sangrenta, entre répteis e mamíferos e, depois, destes últimos entre si. Há vestígios de outros primatas hominídios que se crê terem sido exterminados pelos nossos antepassados directos. Certo é que, no seio da variada vida animal terrestre, houve uma espécie cujo neocórtice se desenvolveu de uma forma particularmente impressionante e que, em consequência, se libertou do determinismo puramente genético, ascendendo ao campo da consciência e da representação racional no seu comportamento.

Começou a história da humanidade, presumivelmente com lutas entre diversos grupos pelo aprovisionamento dos bens. Com o aparecimento da técnica - dá-se a sedentarização e a divisão do trabalho - começa a idade civil do homem, a história das lutas de classes. Estamos, portanto, em plena cotemporaneidade.

Os homens organizaram-se socialmente de diversos modos, segundo os instrumentos e as técnicas de trabalho de que dispunham para a produção da sua existência. Acompanhando essa evolução das formações sociais, foram também muito diversas, ao longo da história, as representações intelectuais que o homem formou sobre o mundo e sobre a sua própria condição.

Do torpor inconsciente, o homem passou à representação intelectual. Nesta, da forma mitológica ao teologismo antropomórfico, depois ao conhecimento científico. Neste, das explicações mecanicistas até aos modernos paradigmas indeterministas e "catastróficos" (Thom). Dir-se-ia que o homem vai alijando sucessivas cargas que o ligavam a um modo de se representar mais seguro e fixo; vai alargando a sua consciência e, lentamente, trocando o reino da necessidade cega pelo da liberdade e da incerteza.

Isto, o gue se passa no campo das superestruturas intelectuais. No campo das formações sociais que lhe correspondem, uma longa história decorreu, na qual me não posso deter. Mas posso adiantar que, nelas, foi sempre progredindo a desalienação da condição social. Esta era considerada um «estado» inelutável na escravatura e na servidão; passou o assalariato a ser mantido pela coacção puramente económica; os assalariados puderam organizar-se conscientemente para aliviar esta pressão, etc.

Feito este breve excurso, posso agora afirmar que a minha concepção da liberdade consiste, propriamente, na inversão da ideologia contratualista. Esta postula-a como transcendência estatal, por delegação dos homens que, tendo- a provado, a ela renunciaram horrorizados. Parece-me, pelo contrário, que os homens não provêm da liberdade - ascendem a ela e vão-na criando, como imanência da sociedade civil, à medida que esta se dá a si própria formas mais desalienadas de organização.

O que é, então, esta sociedade civil?

Uma formação social moderna é uma realidade muito complexa e dificilmente se deixará captar por uma qualquer descrição. Vou tentar uma aproximação muito simples e "exemplar".

Tomemos a sociedade portuguesa contemporânea. Nela contaremos cerca de dez milhões de pessoas, teoricamente todas iguais em dignidade e direitos. Mas só uma imaginação pouco informada (ou pouco escrupulosa) se poderá permitir tomar por igual esses dez milhões de indivíduos puros, e declarar que eles convergem todos para um mesmo fim colectivo representado pelo Estado.

O que se passa é que esses dez milhões de pessoas se dividem, em primeiro lugar, por classes sociais, segundo a posição que ocupam perante a propriedade dos meios de produção de bens. Depois, por estatutos e papéis diversíssimos, segundo a profissão, região onde habita e miríades de outras pequenas situações e interesses sociais, capazes de juntar alguns indivíduos e os fazer tomar uma posição comum perante a gestão dos negócios públicos.

Há uma classe ou um bloco de classes sociais no poder. Isto não quer meramente dizer que esta classe nomeia ministros; quer dizer que ela exerce o poder económico, social, político e moral em toda a sociedade. O poder tende à unidade, ou seja, o poder que o ministro exerce sobre o cidadão anónimo deve ser coerente com o que o empresário exerce sobre o seu operário, o merceeiro sobre a cliente, o sacerdote sobre o fiel, o intermediário sobre o pequeno agricultor, o professor sobre o aluno, etc. etc.. Todos eles devem ser capazes de se exprimir coerentemente num discurso uno que afirma os valores e fins da sociedade no seu todo e que capte a adesão da grande maioria dos seus membros.

O poder do Estado não é, em última instância, senão a expressão mais abstracta, na esfera política, de um poder que quotidianamente se exerce no seio da sociedade civil por diverasas espécies de elites sobre grandes massas de indivíduos aderentes ou conformados.

Sucede, porém, que essas massas não se mostram nunca puramente passivas e que, por outro lado - dependendo do grau de abertura “plural” da sociedade em questão -, encontram-se frequentemente em posições de certa influência indivíduos e grupos de opinião desconforme com os valores do bloco no poder.

Consumadas certas mutações na infraestrutura económica dão-se, por sua vez, movimentos ascensionais de certas classes e grupos dominados ou marginais. No limite, verifica-se que, da convergência e articulação dos interesses de várias classes e grupos subalternos numa plataforma comum, nasce um novo discurso coerente sobre os fins e valores da sociedade no seu todo, o qual vai ganhando posições de supremacia no terreno social e acaba por derrubar o bloco no poder, substituindo-o por outro.

Esta mutação de bloco no poder pode processar-se assaz subitamente, na esfera estritamente política, revestindo então um carácter traumático (v. g., as revoluções francesa e soviética). Muito mais frequentemente, o bloco no poder não é assim derrubado no seu todo. Sofre apenas uma certa erosão e vai largando de mão alguns elementos mais anacrónicos, substituindo-os por outros que a ele ascendem sem terem contestado a ordem anterior na sua totalidade.

Até 25 de Abril de 1974, o desenvolvimento da sociedade civil em Portugal foi bloqueado por um aparelho político ditatorial ao serviço de uma elite social parasitária e paternalista. As lideranrças contestatárias foram reprimidas e as massas mantidas deliberadamente num estado de apatia e obscurantismo, de forma a que não pusessem em causa a perpetuação de um mesmo bloco no poder por décadas sucessivas. O atraso económico, social e cultural do país acentuou-se.

A situação hoje é outra e a sociedade civil move-se com mais dinamismo. A informação e as ideias circulam com mais fluência; a instrução alargou-se; os cidadãos são mais conscientes dos seus interesses e direitos; organizações políticas, sociais e culturais ganham outra intencionalidade e alcance na sua intervenção, tentando convencer mais gente, dialogar e conquistar posições de supremacia.

Consequentemente, os status sociais perderam alguma da rigidez pétrea anterior, dogmas ideológicos e tabus morais deixaram de ser tão convincentes, as instituições evoluem. Ninguém, hoje, pode estar tão seguro da sua "posição" na sociedade, mas, indiscutivelmente, todos ganharam em capacidade de se fazer ouvir, em esclarecimento das suas opções, em oportunidades para alcançar objectivos os mais diversificados.

Certamente que todas as sociedades têm a sua ordenação fundamental, uma estrutura óssea que não pode ser posta em causa pela movimentação livre dos seus membros, A saber: a dominação de uma determinada classe, detentora dos meios de produção. Se ela é posta em causa, soa o alarme vermelho e para o jogo. Por outro lado, essa mesma dominação produz uma certa inércia, com efeitos perversos no desenvolvimento de um diálogo efectivamente livre entre os agentes sociais (exemplos: um sindicato contestatário não consegue tão boas contratações como as que o patronato concede a um seu rival acomodatício, favorecendo-se a inscrição dos operários neste último; influência directa do poder económico sobre a imprensa, etc., etc.).

Postas estas limitações - que podem, aliás, ser denunciadas e combatidas por diversos meios - é ainda assim largo o campo de possibilidades para a intervenção social, com o que ganha algum sentido, em dignidade e responsabilidade, a noção de cidadania.

Finalmente, nesta nossa viagem pelas veredas da liberdade, resta dizer que o homem não se resume à sua condição social, consciente e reflectida. Há nele sempre algo de mais profundo e irredutível. Um composto de elementos de transmissão genética, incluindo certo lastro de fases anteriores da nossa evolução animal, não nos permitem encerrar o comportamento humano num quadro de determinismo puramente social, suposto que este pudesse alguma vez ser estabelecido com rigor.

Não há, obviamente, qualquer "livre-arbítrio", mas no fundo de cada homem resta um mistério de que apenas conhecemos o fenómeno externo: o carácter. Teremos de o condenar, por vezes. Mas não sabemos dele o suficiente para nos permitirmos faltar-lhe ao respeito.

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A meu ver, o advogado é um servidor da liberdade (não há paradoxo) entendida no sentido exposto.

A sua tarefa consiste em dar voz e razões a quem é ainda incapaz de as formular. Desempenhando esta missão, o advogado alarga as fronteiras da liberdade, fazendo-a chegar onde ela, por fraqueza ou ignorância, não existia.

Finalmente, por mediação do advogado, as necessidades, os conflitos, as paixões, os impulsos vitais de indivíduos e grupos põem-se como problemas à consciência colectiva, ganhando consistência argumentativa, aptidão para convencer e, porventura, fazer regra.

Novos problemas postos são caminhos abertos para a evolução das instituições sociais. Servindo a liberdade, o advogado é um agente de civilização.

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Dissertação de final de estágio para a advocacia, Porto, 1987.
Publicada na revista ‘Vértice’, II Série (Lisboa), nº 8, Novembro de 1988.