Modernidade e Mundialismo


A poeira começa agora a assentar sobre a querela dos modernos e pós-modernos, deixando à vista uma paisagem filosófica de recorte algo ambíguo. Os argumentos foram quase todos gastos a desfazer equívocos e malentendidos, com muitos recuos e mal disfarçadas retratações de permeio. Vou gastar esta vossa e minha próxima meia hora com um pequeno esboço histórico de enquadramento da questão. Fá-lo-ei em duas vias paralelas. Primeiro pela exposição de alguns dados fundamentais da história económica e social do Ocidente, depois através de uma excursão pela história das ideias que, simultaneamente, foram moldando a imagem que este faz de si próprio.

Não tenho aqui que tomar partido sobre qual o tipo e a estrutura da articulação existente entre estes dois mundos: o da vida e o das ideias. Esta pequena conversa não vai ser uma Grande Narrativa nem uma teodiceia laica. Mas sabemos hoje todos mais ou menos que a produção da subsistência alargada das sociedades humanas as vai compelindo através de fases históricas sucessivas de organização social e política, as quais, por sua vez, segregam os seus próprios universos mentais particulares. Tudo o mais é debatível, naturalmente. Quando absolutamente tudo for descoberto e estabelecido sobre as vias por que a humanidade traça o seu próprio acontecer, todo diálogo e luta cessarão. Mergulharemos porventura no silêncio, lá onde a luz e as trevas convergem por fim.

.

1.
Pelos finais do século XV, surgiram na Europa os embriões de um mundo novo. Em certas cidades da Itália e da Flandres, as corporações de artífices medievais, com a sua imutável estrutura hierárquica, começam a dar lugar à manufactura capitalista. Para dar resposta às oportunidades oferecidas pelo novo comércio ultramarino, certos empreendedores (geralmente mercadores mas também alguns ex-mestres corporativos) resolvem reunir num mesmo local de produção os instrumentos e as matérias-primas, por si possuídos, a fim de os transformar em mercadorias por intermédio da intervenção de trabalho assalariado. Esta nova organização produtiva não visa já a satisfação de necessidades locais determinadas. Visa, através da venda dos seus produtos, a obtenção de um lucro que lhe permita a sua própria reprodução alargada. Intervém aqui uma lógica acumulativa inteiramente nova, que irá proporcionar um impulso espantoso ao desenvolvimento das forças produtivas. Por outro lado, a produção e o lucro tornam-se fins em si próprios, separados das necessidades concretas do consumidor.

Para o capitalista, o mercado é uma entidade abstracta mais ou menos manipulável, não mais o sr. Van der Elst que precisa de uns sapatos novos ou a sra. Armand que quer um aparador. O que quero aqui salientar é que, desde a sua nascença, o capitalismo está indissolúvelmente ligado à expansão europeia. Nada de admirar, pois, como veremos, que lhe surjam associadas ideologias cosmopolitas como a renascença, o iluminismo e o humanismo.

Preeminente entre estas ideias novas está, como sabemos, a de modernidade e de progresso histórico linear cumulativo, por oposição à cosmologia cíclica dos antigos e dos medievais (ligada, como é intuitivo, ao modo de vida agrícola). O capitalismo fez-nos descobrir subitamente que o mundo é um, que existe uma humanidade (ou um Homem com letra grande) e que esta visa o seu melhoramento e esclarecimento progressivos.

No período inicial da civilização capitalista, até finais do século XVIII, a vida económica era dominada pelo comércio marítimo de longo curso. As trocas com a Ásia e a África eram naturalmente, trocas de valores não equivalentes, visto que eram firmadas, sob mais ou menos coacção, com civilizações baseadas noutro modo de produção. Quanto à América, predominaram desde logo o esbulho e a colonização. Foram os fabulosos lucros auferidos por este trato (de que Portugal gozou um efémero manancial) que permitiram o surto acumulador de capacidade produtiva nos países da Europa do Norte. E é num destes países, a Inglaterra, na altura já possuidora da maior esquadra e frota mercantil do mundo, que ocorre a revolução industrial.

A produção manufactureira é suplantada pelo sistema de fábrica, baseada em instrumentos utilizadores de energia artificial. O centro de gravidade da vida económiva transfere-se do comércio para a empresa produtiva, detida individualmente, empenhada numa feroz e darwiniana concorrência com as suas rivais. O capitalista, detentor dos meios de produção, adquire força de trabalho liberta dos vínculos de servidão feudal (e igualmente "liberta" de meios próprios de subsistência) assim como matérias primas. Estas últimas são transformadas, pelo trabalho, em mercadorias para venda no mercado mundial. Realizado por este meio o seu valor, o processo produtivo pode retomar-se numa base alargada. Vencedora dos espanhóis, dos franceses e dos holandeses, a pérfida Albion inaugura então uma nova era na história universal: o imperialismo global.

Vem já do século XVII a fútil resistência do espírito de Tordesilhas à doutrina do Mare Liberum de Hugo Grócio. O novo imperialismo capitalista difere dos seus antecessores, para além do seu âmbito universal, por ter produzido para os seus fins a mais engenhoso embuste ideológico alguma vez concebido: o liberalismo. Todos os monopólios, privilégios e barreiras comerciais devem por princípio ser derrubados em nome da racionalidade económica. As nações devem especializar-se na produção dos bens para que disponham de uma vantagem comparativa e trocá-los livremente no mercado mundial. Como foi desde logo óbvio, esta doutrina, imposta pelas armas, favoreceu a acumulação de riqueza e a renovação das capacidades produtivas no centro do mundo capitalista e instaurou relações de troca desigual à escala planetária. Mas teria e tem ainda um enorme sucesso. Assim como a Coca-Cola hoje em dia clama que a existência dos seus "placards" publicitárias marca as fronteiras do mundo civilizado, assim o século XIX foi assistindo, da Índia a Cantão e a Tóquio, ao troar das canhoneiras anunciador da boa nova do livre cambismo. O mundo é uno e a mercadoria é o seu profeta.

Um punhado de nações houve (França, E.U.A., Alemanha) que, não tendo sofrido a incidência da hegemonia militar britânica, foram insensíveis ao canto da sereia liberal. Armadas de instrumentos proteccionistas, foram desenvolvendo a sua própria acumulação capitalista numa base industrial moderna. Pelo final do século XIX, estavam em condições de competir globalmente com os britânicos e abriu-se a era das rivalidades imperialistas que levaria, já no nosso século, à eclosão de duas guerras mundiais. Entretanto, o capitalismo tinha sofrido uma transformação profunda com a crescente concentração dos capitais em gigantescas corporações monopolistas ou oligopolistas e com o ascendente da importância do capital financeiro. As empresas determinantes já não são possuidas por capitalistas individuais em regime de concorrência mas por gigantescas sociedades anónimas que entre si manipulam o mercado a seu bel prazer. Uma estreita concertação nasce entre capital industrial, financeiro e o poder estadual no sentido do crescimento e da expansão. Abre-se a desenfreada corrida às possessões coloniais culminada na conferência de Berlim (1884). O liberalismo universalista cede momentaneamente o passo às doutrinas racistas e chauvinistas que seriam os pais ideológicos do fascismo.

Após o grande desastre de 1929, a classe capitalista assustada pede a intervenção do Estado, que passa a intervir crescentemente também na regulação da própria vida económica. É o triunfo do keynesianismo, da social democracia e, por outro lado, do dirigismo estatal ao estilo mussolino-hitleriano ou estalinista. E novamente o universalismo racionalista cede o passo às doutrinas organicistas e voluntaristas. Seria após a II Guerra Mundial e a ascensão de uma nova super-potência global indisputada, os E.U.A., que o liberalismo tomaria novamente a dianteira, agora reanimado ainda com a queda da União Soviética, seu competidor que o foi apenas em termos militares e, em certa medida, ideológicos.

O surto imperialista norte-americano foi animado pelo curso internacional do dólar e pela ascensão fulgurante de um novo fenómeno económico: a grande corporação multinacional. Uma superestrutura burocrática (F.M.I., Banco Mundial, G.A.T.T., O.N.U. e o seu Conselho de Segurança) ergue-se entretanto para consagrar o novo sistema mundial e vigiar o cumprimento escrupuloso das suas regras. Paira no ar a ideia de um governo mundial. Fukuyama avança com a sua tese do "fim da História", pelo triunfo definitivo de uma única ideologia global, a da democracia representativa e da livre empresa.

Entretanto, o sistema de produção capitalista vai conhecendo crescentes problemas e disfunções, devidas à sua característica racionalidade económica. A tão difamada baixa tendencial da taxa de lucro faz inequivocamente sentir os seus efeitos. Uma enorme capacidade produtiva jaz inutilizada. Uma grande parte do excedente económico é aplicada em despesas improdutivas (militares, burocráticas, de incitamento ao consumo, condicionamento ideológico, etc.), indispensáveis todavia à sobrevivência do sistema. A partir dos finais dos anos 70 o capitalismo entra numa fase de estagnação permanente. A revolução científica e tecnológica ocorrida não teve qualquer tradução significativa em termos de capacidade produtiva alargada, provocando apenas o desemprego em massa. É patente a falência total das receitas tradicionais de política económica e crescem os sinais de entropia generalizada no tecido social das sociedades ocidentais. Nos países perdedores da "nova ordem internacional" cresce o desespero das populações, ascendem os movimentos de revolta tradicionalista e anti-moderna, campeiam o caos institucional e a regressão à barbárie.

Assiste-se então ao paradoxo da proclamada falência do projecto universalista e emancipador da modernidade, no momento mesmo em que existem os meios técnicos de estabelecer canais de circulação intensa, em tempo real, de informação entre os quatro cantos do planeta. A mundialização da economia trouxe-nos, sob o império das relações mercantis, uma balcanização global das referências culturais e ideológicas, a proclamada incomensurabilidade das experiências éticas, a pulverização dos projectos de libertação e de convivialidade utópica. É este enfim o terreno do novo cinismo pós-moderno e da ironia relativista deste fim de século.

.

2.
Façamos agora um brevíssimo apanhado do que de mais importante se passou entretanto na história do pensamento. O estilhaçar do enclausuramento autárquico da sociedade feudal teve a sua tradução ideológica nesse complexo movimento de ideias que ficou conhecido como o renascimento. A mundividência medieval era plana e chata como uma pintura bidimensional. O pensamento dos antigos foi apropriado acríticamente pela patrística e pelos doutores da Igreja, sem qualquer esforço de perspectivação histórica. O espírito sendo considerado intemporal, tratava-se de copiar infindavelmente as suas obras maiores para uso das próximas gerações.

Foram os homens da renascença que, juntamente com a noção de profundidade na pintura, descobriram (ou melhor, conceberam) esse postulado extraordinário de que as ideias tinham o seu tempo próprio e se contextualizavam com as necessidades da sua época. Assim nasceu a ideia moderna de História e, poderemos dizê-lo, foi lançado o primeiro alicerce da modernidade. A doutrina da douta ignorância de Nicola de Cusa separa então firmemente o conhecimento divino do conhecimento terrestre, rasgando os caminhos filosóficos para o surto da ciência experimental. O panteísmo imanentista e o "furor heróico" de Giordano Bruno propõe ao homem renascentista um universo infinito, actualizado em cada gesto concreto da sua existência quotidiana, simultaneamente como criação individual e impulso de transformação social. É já um esboço completo do contrato fáustico da modernidade, bem como uma antecipação do deísmo de Espinosa e da teoria leibniziana dos mónadas.

O pensamento iluminista de Locke e dos enciclopedistas franceses foi o segundo marco fundamental da modernidade. O iluminismo parte da crença nos poderes ilimitados da razão humana para compreender o mundo e a sociedade. A humanidade está empenhada numa lenta mas consolidada ascenção das trevas e da superstição para o conhecimento racional e um contínuo aperfeiçoamento moral. Estamos na época do Estado absolutista, a fórmula que o capitalismo achou para enquadrar nacionalmente os mercados nascentes, dotando-os de uma sólido travejamento político e firme protecção aduaneira. O Estado-nação setecentista (de que o Marquês de Pombal foi o mais alto defensor em Portugal) será então o próprio modelo da racionalidade política, estando destinado a conhecer - através dos seus derivados constitucionalistas e republicanos - um enorme sucesso até aos nossos dias. O optimismo racionalista teria o sua expressão mais extrema (e desesperada) já bem dentro do século XIX, no cientismo e na doutrina positivista de Auguste Comte. O evolucionismo de inspiração darwiniana prolongaria ainda alguns dos seus temas mais caros - nomeadamente a crença num progresso histórico linear - até bem dentro do nosso século. Serviu igualmente de justificação ideológica para as agressões imperialistas que a expansão capitalista sequente à revolução industrial reclamava.

O século XIX assistiu à emergência do movimento operário como actor político e social. O génio de Karl Marx dotá-lo-ia com a mais formidável arma teórica alguma vez forjada no terreno da luta de classes: o materialismo histórico. Está hoje em moda (com algum apoio textual de circunstância, sobretudo em Engels) associar o marxismo ao darwinismo, degradando-o assim num mero evolucionismo social, tributário do optimismo cientista do século passado. Este seria o Marx demiurgo, responsável por boa parte das catástrofes históricas do século XX. Mas um vulto intelectual como o autor de 'O Capital' não se deixa assim "ultrapassar" tão facilmente. A questão posta pelo materialismo histórico é a da busca de uma chave para a compreensão da História. Para a produção da sua subsistência, as sociedades humanas são levadas a organizarem-se, criando-se historicamente certos tipos ideais de relações de produção (os chamados modos de produção: esclavagista, feudal, capitalista, etc.). Estas relações são determinadas pela tecnologia do trabalho usada - os meios de produção -, cuja evolução tende a forçar mudanças sociais e políticas, de modo a optimizar as suas potencialidades produtivas. É em volta do nó górdio formado pelos meios de produção e pelas relações de produção que, por intermédio da luta de classes, as sociedades se vão transformando historicamente e, em consequência, transformando também o modo como reflectem sobre si próprias e se colocam as questões fundamentais da existência humana. O materialismo histórico não pode ser provado ou desmentido pelos factos, por isso que não é uma ciência em sentido popperiano. É um instrumento teórico guia para a acção e, neste sentido, está certamente longe ainda de ter dito a sua última palavra.

O espelho liso da razão universal seria, nos finais do século XIX, quebrado por um imenso grito solitário: o de Friedrich Nietzsche. A verdade é um embuste e a razão um instrumento de domínio ao serviço da vontade de poder dos fracos e ressentidos. Só tem nobreza a potência nua e crua do acto de afirmação de si. As racionalizações são recursos de que se serve o ressentimento, tentando com a sua lógica doentia amansar e moderar os excessos da força afirmativa, originariamente livre e sem peias. De resto, a razoabilidade de um enunciado depende sempre directamente da perspectiva de quem o formula. A verdade de A é incomensurável com a verdade de B ou de C. E aqui vai já contido o essencial dos postulados filosóficos pós-modernos.

Um outro golpe mortal no projecto iluminista da razão universal seria ainda assestado por Sigmund Freud e a escola psicanalítica. Os seus trabalhos vêm afirmar que o essencial da vida mental do homem se passa fora do seu domínio consciente. Que as esperanças, anseios e fobias da humanidade se forjam e actuam no enorme continente negro do seu inconsciente. Estava assim aberto o caminho, no início deste século, para a festa sensual e a celebração irracionalista do primeiro modernismo. Da-da oficia as núpcias e o sonho da razão produzirá os seus monstros. André Breton dirá que o único acto surrealista digno desse nome é o gesto do solitário que dispara ao acaso sobre uma multidão.

Com a física quântica, o perspectivismo chega ao domínio das partículas elementares. Assistir-se-à ainda, sucessivamente, à morte do homem proclamada pelo estruturalismo e à decadência do romance como paradigma arquetípico do conhecimento estético. O caos determinista é agora a palavra de ordem na ciência experimental. O nihilo-anarquismo epistemológico de Paul Feyeraband faz escândalo mas ganha numerosos cúmplices secretos. Nas Faculdades de Letras triunfam as práticas desconstrucionistas na análise dos enunciados textuais, sem distinção de géneros. Minada por sucessivas "desmontagens", a própria ideia de obra de arte cai finalmente no mais profundo descrédito e o génio criador mergulha na irrisão.

.

3.
A ideia base do discurso pós-moderno é sedutora, senão mesmo probante. O século XX assistiu à falência de todas as estratégias emancipadoras baseadas em discursos fortes (as célebres "grandes narrativas" de Lyotard) sobre a condição humana e seu destino. Em vez de nos obstinarmos em torno destes ou de novos grandes sistemas de pensamento, devemo-nos abrir confiadamente ao puro fluir do acontecimento, celebrar o instante presente sem nos preocuparmos com a sua inserção em qualquer matriz analítica dada ou a construir. Tanto a weltanschaung (concepção do mundo) como a ambição da gesamtkunstwerk (obra de arte total), são desacreditadas. Os modernos pensavam que o progresso histórico nos era trazido por vagas sucessivas de novas escolas e práticas de ambição totalizante. Daí o seu importante conceito de vanguarda, fosse ela política, cultural, estética, etc.. Acreditando e lutando por um mundo novo, estes movimentos caracterizavam-se pela sua coerência interna sistemática e pelo propósito de "conquistar" a totalidade do espaço da prática social a que se referiam. Os pós-modernos deixaram de acreditar no progresso e falam de trans-vanguarda (Bonito Oliva), de pastiche, amálgama, revivalismo, colagem aleatória de referências. É a ideia de um "pensamento fraco" (Gianni Vattimo), irónico, contingente, fragmentário, hedonista, sincrético, paradoxal.

O discurso pós-moderno não nasceu de geração espontânea, decantado através de gerações sucessivas de filósofos profissionais. Corresponde e dá expressão ideológica a um dado estádio de evolução do capitalismo, a que podemos chamar e tem sido chamado "capitalismo tardio" (Ernest Mandel), "sociedade do espectáculo" (Guy Debord e seguidores) ou "decomposição social" (tese da Corrente Comunista Internacional). Vivemos num mundo governado por impulsos céleres, informação instantânea e extrema complexificação dos fenómenos sociais. Vivemos também no reino da opacidade total, da manipulação cega e da anomia. A organização da produção é disfuncional, inadaptada às novas capacidades produtivas emergentes. Os ciclos económicos tornam-se imprevisíveis. Os políticos nada sabem, senão ler sondagens e sorrir para as câmaras. Os cientistas sociais não têm modelos teóricos e previsionais capazes nem solução para os problemas concretos. Os oprimidos não sabem que direcção dar às suas lutas nem que aliados buscar. É como se a roda da História crescesse desmesuradamente, submergida a 9/10 no lodo e na treva, impulsionada por forças ocultas ou irracionais. No momento da explosão das tecnologias da informação, aparece como cada vez mais distante a utopia de uma sociedade transparente às suas próprias determinações, contemporânea das suas causas e conscientemente actuante sobre elas.

Os chamados pensadores da suspeita ensinaram-nos que há sempre que procurar uma causa real oculta sob o véu da aparência dos fenómenos. Hoje, é como se por baixo de um manto dissimulador apenas pudéssemos encontrar um outro e assim sucessivamente até à completa irrisão da própria noção de real. As máscaras dançam enlouquecidas. Facto e ficção, ciência e embuste ideológico são indistinguíveis no carnaval da pós-modernidade. Sendo o mundo e o homem finalmente inapreensíveis, os reclames de Luciano Benetton vêm lembrar-nos que a solidariedade é redonda e lisa como uma batata nova. Isto - o mundo contemporâneo, com todo o seu drama, grandeza e abjecção - não é finalmente para perceber, é para dançar.

Mas a que propósito vem esta festa? Dois terços da humanidade vegetam na miséria e na ignorância extremas e o planeta vive perante a ameaça de colapso ecológico. Do lado do pensamento crítico, o que há a retorquir é que do que se trata não é de compreender ou desvendar o mundo. Para isso há os santos, os profetas e os tele-evangelistas. O que se trata, como há 150 anos alguém lembrou, é de o transformar, pela intervenção de ferramentas conceptuais eficazes e adequadas. A razão não produz qualquer revelação de sentido ou finalidade, mas é o instrumento de que dispomos para intervir criativamente sobre o que nos rodeia. É a alavanca de Arquimedes. Para levantar o mundo, basta aplicá-la resolutamente tomando um ponto de apoio ficcionado. Ficções actuantes, efabulações verosímeis e percucientes. Do que precisamos hoje não é de humildade e renúncia, como prega um certo pensamento conservacionista anti-fáustico, mas sim de mais arrojo intelectual e violência teórica. O alegre demissionismo dos pós-modernos é a pífia melopeia que nos acompanhará até ao barranco de cegos em que se precipita a civilização ocidental.

Associada ao discurso pós-moderno, por vezes indistinguível dele, está a recente voga do multiculturalismo ou do relativismo cultural. Ela hoje aparece-nos revestida de tonalidades progressistas, sendo mesmo um dos temas centrais na bizarra polémica do "políticamente correcto" (PC). A ideia central porém - a de que os padrões e tradições culturais são incomensuráveis entre si - vem já de Herder e Joseph de Maistre, expoentes da reacção romântica ao optimismo iluminista no século XIX. As culturas nacionais seriam sistemas fechados. O africano ou o asiático não têm nada a esperar da ciência, da filosofia ou da literatura ocidentais, as quais serão sempre corpos estranhos introduzidos nas suas próprias concepções e mundividência. Não havendo nada a que se possa chamar cultura universal, a teoria evolucionista de Darwin não é superior nem inferior a qualquer mitologia criacionista indígena. São apenas incompatíveis e mutuamente excludentes. Segundo os modernos defensores PC do multiculturalismo, cada cultura encerra em si as suas próprias vias de desenvolvimento e o projecto de emancipação particular do grupo nacional, étnico ou mesmo sexual a que pertence. Não faz mais sentido pensar uma utopia universal, mas apenas heterotopias particulares e particularistas.

Não é difícil perscrutar ao que vem e onde nos conduz este paternalismo multiculturalista. Leva os povos do terceiro-mundo e as minorias emigrantes nos países do centro à exclusão voluntária dos benefícios da civilização tecnológica e do saber mais avançado. À sua bantustização generalizada. Enquanto progride aceleradamente a integração económica do planeta, os mecanismos da acumulação capitalista à escala mundial conduzem todavia uma grande parte da humanidade ao isolamento e à autarcia. O mundo é um só, é verdade, mas apenas para aqueles que possuem os meios de produção mais avançados. Esses dominam todos os seus recursos e exploram a sua mão de obra em todos os azimutes. Controlam todo o circuito do capital e têm acesso reservado ao saber científico e aos mecanismos de decisão política relevante. Para os outros, restará a ignorância, o enclausuramento, a irrelevância. Pertencem ao sistema mundial enquanto mão de obra explorada, facultadores de acesso a recursos naturais e hóspedes de resíduos industriais tóxicos, mas já não enquanto participantes conscientes e vozes activas na vida do planeta. Porquê? Porque pertencem a uma cultura própria inviolável, diversa e incomensurável com a ocidental... O multiculturalismo é o novo nome do racismo. Contra ele deve ser sustentado que a humanidade é una e a sua emancipação global, a superação do presente sistema económico mundial baseado na exploração da força de trabalho, será obra e projecto comum de todos os seus povos com base no saber mais avançado. Ou não será nunca.

Nos anos 70 e 80, apareceram alguns comentadores a apregoar uma mudança radical no modelo produtivo das sociedades mais avançadas. Estaríamos a entrar numa era pós-industrial, na crista da "terceira vaga" para citar o título de um famoso best-seller de Alvin Toffler. A era industrial (alguns dirão moderna) caracterizava-se pela produção em série, pela padronização dos comportamentos e estereotipização do gosto. Foram obra sua coisas como a escolaridade obrigatória e gratuita, o sufrágio universal, a imprensa de grande circulação, o pronto a vestir, os sistemas de segurança social, partidos políticos e sindicatos, etc., etc.. Era o reino das cadeias de produção e da massificação. Hoje, por contraste, estaríamos no limiar de uma era em que a produção será desmassificada, dirigida imediatamente aos interesses e gostos individuais do consumidor ou de segmentos muito restritos e particulares de mercado. As solidariedades mecânicas e as identidades fortes de grupo ou de classe dissolvem-se pela sua pulverização em miríades de pequenas comunidades informais. Aqui os pós-industriais encontram-se com os multiculturalistas.

É meu receio porém que, sob esta apologia de tons simpáticos e mesmo libertários, se oculte uma realidade bem mais sombria: a realidade da exclusão social, da precarização, da desqualificação, da pauperização e da marginalização de crescentes sectores da população produtiva, provocadas pela crise de ajustamento do capitalismo aos novos meios de produção. É, uma vez mais, a erosão da noção de solidariedade mascarada de libertação da diferença.

Há, porém, um argumento realmente forte no paiol dos pós-modernos. O crescimento do excedente produtivo e a complexificação da vida social a ele associada, têm conduzindo ao longo da história do pensamento ao progressivo abandono das suas chamadas grandes fundações: Deus, o Homem, a Razão, a História, etc. As filosofias da essência e do sujeito mergulharam no impasse. A humanidade vem-se emancipando continuamente dos seus mitos escatológicos e finalistas, mergulhando mais e mais decididamente na contingência, na incerteza e no desamparo. Como dizia há tempos Bernard-Henry Lévy: "Deus morreu, Marx morreu e eu mesmo não me sinto lá muito bem". Segundo os pós-modernos, o projecto da modernidade ter-se-ia limitado a substituir os velhos dogmas da providência divina e da redenção por um seu sucedâneo laico, o complexo mitológico formado pela história, o progresso e a emancipação. Estes mesmos são agora os alvos centrais da sua crítica.

É certo que as noções de finalidade e necessidade histórica têm de cair. Elas são variações sobre o tema teológico do destino que afluem de facto ocasionalmente nos projectos emancipadores modernos, nomeadamente no marxismo. O mundo de hoje não as comporta mais. Mas a meu ver elas não são essenciais à definição de modernidade. Pelo contrário, aquele trajecto anti-fundacionalista é que é precisamente a característica fundamental do pensamento moderno. O homem moderno é aquele que, na expressão de Hegel, substituiu as suas orações matinais pela leitura do jornal. É agnóstico, mundano, intrépido, voraz, heróico, solitário e inconsolável. Foi a sua insatisfação e inquietude permanentes que o levaram a afastar os sucessivos patamares de conforto a apaziguamento ontológico a que ia acedendo. Sabe hoje que a história é um processo sem sujeito nem fim, destituído de um qualquer encadeamento causal acessível ao conhecimento. Sabe que as suas certezas e esperanças de hoje serão ruínas amanhã e que finalmente nada nem ninguém terá salvação. E contudo não abdica de compreender e agir conscientemente sobre a sua circunstância.

O nihilismo e o a-teleologismo, não têm de conduzir ao demissionismo intelectual e à folia epicurista que são o pathos característico do discurso pós-moderno. Os antigos diziam primum vivere, deinde philosophare. Primeiro há que viver e só depois filosofar. Não é necessária nenhuma grande narrativa sobre o curso da História ou o destino da humanidade para convocar os oprimidos e excluídos do sistema económico mundial à acção libertadora. Basta uma teoria do valor aprofundada e a renovação da economia política marxista. Este basta é naturalmente irónico. Trata-se de tarefas ciclópicas, de uma dimensão intelectual incomparável com as bolas de sabão de séculos de filosofia especulativa. O que é a riqueza? Onde se cria? Quem se apropria dela e a que título? A estas perguntas a "ciência" económica oficial diz nada ou responde com evasivas ideológicas. Uma boa teoria crítica não conferirá qualquer certeza ontológica sobre estas questões. Mas poderá ser uma preciosa ferramenta para derrubar a ordem vigente e construir uma outra mais solidária e ecologicamente mais sustentável. Ou pode simplesmente tirar o actual sistema produtivo anárquico e irracional do seu impasse, conferindo algum sentido e transparência às trocas entre os seus vários factores. No limite, poderá salvar a vida no planeta, incluindo naturalmente a de todos os pensadores metafísicos.

A razão crítica sabe que trabalha sem fundações, que os seus métodos são discutíveis, que a sua ciência é de cisão e de confronto, insusceptível de prova objectiva. Opera sem qualquer caução epistemológica. Não busca a verdade mas tão só ser um utensílio da causa dos explorados e dos excluídos de todo o planeta. Sabe também que só a história julgará um dia do maior ou menor acerto das suas teses e que, de todo o modo, elas sempre caducarão naturalmente quando o campo problemático de que partiram deixar de ter actualidade. Totalmente imersa naquilo que alguém já apelidou de "essa imensa insónia do mundo", será uma servidora da vida concreta desses homens e mulheres que persistem insensatamente, na lama e no esquecimento, em edificar as magníficas cidades do futuro. De lá lhes chegam os ténues raios de uma luz ambígua e irónica. Não há esperança, e assim mesmo eles esperam.

Para concluir, julgo que a integração sistemática da economia mundial nos coloca irrecusavelmente face à essência inalterada do desafio da modernidade: o de um projecto para a emancipação global e solidária da humanidade. Este desafio, actualmente, é o da libertação do jugo das relações mercantis que esmagam a grande maioria da população do planeta, ameaçam o seu equilíbrio ecológico e constituem um entrave ao pleno aproveitamento das capacidades produtivas já disponíveis. Falo aqui de emancipação, mas não a entendo naturalmente como um avanço rumo a um qualquer futuro radioso prefigurável. O homem não ascende para a luz e não escreverá nunca a sua própria história num caderno pautado até ao infinito. Mas pode, em cada momento, delimitar racionalmente o campo das suas opções, inscritas que estão estas já sempre no desenvolvimento das contradições da sua situação presente. E possui ainda essa qualidade quase diríamos providencial de se ir forjando sempre novos instrumentos teóricos à medida que se lhe colocam diferentes e mais complexos desafios. Nunca se pôs a si próprio um problema de que não possuisse os elementos necessários à solução. Dividido por interesses antagónicos, consciente da sua radical solidão e do trágico absurdo da sua condição, carregará ainda assim incansávelmente o seu rochedo até ao cimo do monte. Como escrevia Camus há mais de cinquenta anos, "é preciso imaginar Sísifo feliz".