Movimento estudantil: algumas questões

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1. Aproximação e enquadramento

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«O estudante é um jovem trabalhador intelectual». Assim abria a carta de princípios dos estudantes franceses, reunidos, em 1946, no Congresso de Grenoble. Na sua fórmula lapidar e aparente trivialidade, esta declaração encerra uma profunda revolução no modo de encarar o estatuto e o papel do estudante, bem como na sua específica assunção colectiva. Consideremos os efeitos do sensível aumento da população estudantil verificado, um pouco por todo o lado, após a última Grande Guerra. Este movimento trouxe consigo uma diversificação na origem social dos estudantes (abertura às chamadas classes «média» e «inferior», embora numa segunda fase e após o «esgotamento» dos efectivos dos níveis sociais superiores), a qual, sem atenuar os laços de solidariedade entre eles, conduziu a uma mais profunda imbricação do meio estudantil na sociedade envolvente. A «explosão» académica, desacompanhada de um proporcional crescimento das infraestruturas escolares, provocou, paralelamente:

1 – Uma concentração no espaço da população estudantil – o que, juntamente com a diversidade de experiências confrontadas e a agudização de um certo mal-estar comum, levou a um mais intenso diálogo-interrogação tendentes à formação de uma identidade e, dinamicamente, a uma opinião próprias do estudante enquanto tal;

2 – Uma mais alargada comunicação entre o meio académico e uma sociedade cuja configuração aparece agora despida da sua função de mera referência, sempre necessária mas protelável até final dos estudos, para se evidenciar irrecusavelmente como matriz determinante da condição de estudante – o que, já por si, já acrescido do facto de muitos estudantes manterem outros papéis sociais (trabalho, matrimónio, etc.) ou suportarem reais carências económicas, levou ao estilhaçar da redoma envolvente do mundo académico e à generalização, entre os estudantes, de um sentimento de responsabilidade perante a sociedade.

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Estamos, pois, longe da estúrdia praxista, do Palito Métrico de certos tempos coimbrãos, a recordar depois em piedosas romagens de saudade lacrimejante. O jogo agora é outro (ou as suas regras em todo o caso). Se o folclore académico traduzia um gregarismo estreito, e por isso cego, as novas formas de solidariedade estudantil revelam a progressiva consciencialização de uma situação comum, primeiro para a construção de um destino próprio. Acrescente-se que a superação das barreiras entre a sociedade e a escola revelou ao estudante que ele é um elemento útil àquela, na qual se vai inserindo progressivamente como sujeito responsável e capaz de auto-determinação.

Concluindo, o estudante vem achando a sua própria identidade como «jovem trahalhador intelectual». Com direito, enquanto jovem, à construção da sua própria personalidade numa circunstância que exige conhecer sem mistificações ; consciente, como trabalhador, da dignidade e valor (responsabilidade) social da sua actividade; exprimindo livremente as suas ideias e intervindo responsavelmente como intelectual.

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Do que ficou dito poder-se-ia extrair um equívoco optimismo, aliás, de conteúdo sumamente abstracto. Urge, pois, fazer algumas precisões.

O movimento estudantil (m. e.), reflectindo a diversidade social dos seus componentes e a fluidez própria das mentalidades em formação, é pleno de ambiguidades e dilaceramentos. Podemos mesmo considerá-lo como uma caixa de ressonância ampliada por onde passa uma boa parte das contradições e antagonismos sociais e onde, por sua vez, se geram compromissos e soluções de marcada intenção prospectiva.

É justamente esta sua tensão criativa e transformadora o sinal revelador da maturidade do m. e., pelo qual ele se afirma como um elemento relevante entre os condicionantes da reprodução ideológica da dominação - a ponto de a poder fazer atingir um perigoso ponto de ruptura, para lá do qual fica apenas o espaço (necessariamente exíguo) da repressão e da violência.

Pode-se situar neste plano a actividade cultural e desportiva do m. e., quer enquanto conforma e organiza um específico “meio estudantil”, com a consequente acção de retorno, directa e indirecta, sobre a Escola, quer ainda enquanto veicula uma determinada linha (coerente ou não) de intervenção sobre o meio social envolvente.

Considerei o papel do m. e. no campo de luta ideológica: enquanto elemento enquadrável, ele próprio, num ou em vários Aparelhos Ideológicos de Estado, e enquanto influi na conformação ideológica da instituição escolar. Esta última, todavia, não cumpre apenas uma função de veículo da ideologia dominante, como também nem só nesse campo se faz sentir nela a pressão do m.e.. Cabe ainda à Escola a formação da força de trabalho – através de uma especialização que, quanto possível, amarre o futuro trabalhador à sua função e o «distraia» do processo global de produção social da sua existência –, bem como a sua selecção – onde uma viciada meritocracia vem sancionar e legitimar a prévia determinação do «lugar de cada um» na sociedade.

Logo se vê como estas funções - ligadas, respectivamente, às divisões técnica e social do trabalho - estão necessariamente em estreita conexão com a função ideológica, que as envolve num processo integrado de determinação recíproca. Simplesmente, neste campo, o papel do m. e. progressista terá de se cingir (sob pena de desvirtuamento e dispersão inútil) ao questionamento da própria instituição escolar na perspectiva e segundo os particulares interesses dos estudantes.

Está, naturalmente, fora de causa que uma atenta e detalhada análise dos pressupostos histórico-sociais (ou até políticos) determinantes da configuração actual da Escola é condição útil e mesmo indispensável ao correcto equacionamento e selecção dos objectivos e linhas de acção prioritárias do m. e. na sua faceta agora considerada. Ponto é que essa acção se guie por critérios internos do m. e. e não vise além da sua imediata referência – a Escola e outras estruturas funcionalmente agregadas.

A inserção das lutas estudantis numa estratégia global de transformação da sociedade far-se-á num segundo momento, na parte em que não estiver já pressuposta na escolha dos métodos de análise da situação concreta.

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Algumas características específicas (além da sua maior consistência e amadurecimento) impõem uma análise mais detida sobre o m. e. no Ensino Superior. Tratarei aqui somente de alguns aspectos do que se convencionou chamar «crise da Universidade».

Antes de tudo, crise de desajustamento às novas tarefas que lhe são exigidas pela sociedade capitalista após a «segunda revolução industrial». A evolução das forças produtivas exige da Universidade que ela se integre dinamicamente no processo produtivo – de algum modo invertendo a relação entre Ciência e Técnica, pondo aquela ao serviço das necessidades desta –, quer orientando os serviços de investigação de acordo com directrizes exteriores (do Estado ou de grandes grupos económicos), quer reajustando os currículos escolares às novas necessidades de pessoal técnico altamente especializado.

Outro indício de obsolescência da Universidade podemos achá-lo nos métodos pedagógicos utilizados. O ensino magistral, ainda largamente dominante entre nós, supõe uma concepção essencialista do saber – um logos, descomprometido e disponível por vocação – e (muito ao contrário do que é vulgar dizer-se) dirige-se a um interlocutor-sujeito, com o qual compõe um exercício ritual de iniciação. A palavra dos mestres soa intransitiva. O que manifestamente não responde às necessidades de formação (técnica e ideológica) dos quadros superiores de uma sociedade capitalista evoluída.

Finalmente (embora a meu ver sem relevância específica decisiva), crise da capacidade de resposta das infraestruturas universitárias à crescente procura dos seus serviços. O que provoca distensões, quebras de aproveitamento escolar e a acentuação dos desajustamentos atrás referidos.

Como logo se vê, a «crise da Universidade» levanta um grande desafio à sua capacidade de adaptação estrutural ao presente estádio de evolução do modo-de-produção capitalista, propondo-lhe uma redefinição institucional cujos precisos contornos não estão ainda totalmente clarificados. Se «crise» é já o substracto de uma decisão, a sua sequência, no presente caso, é ainda difícil de prever. As bolsas de resistência à evolução são, ainda, por demais poderosas.

Neste cenário, o papel que o m. e. progressista é extremamente dificultado, sendo de exigir-lhe uma capacidade de análise aprofundada da situação de modo a que não se constitua ele, por meio de um trade-unionismo ingénuo, em elemento catalizador de reformas «liberais» de sabor tecnocratizante. Há, pois, que captar o descontentamento gerado pela crise estrutural da Universidade para a constituição de um movimento massivo, servido por uma estratégia radical de luta anti-capitalista, isto é, contra a projecção das relações capitalistas de domínio e exclusão no espaço académico.

Tenho usado a expressão «movimento estudantil» sem ter procedido a uma prévia dilucidação dos seus termos. Se por «estudantil» se há-de necessariamente entnder algo constituído e referido ao (a um) conjunto dos (de) estudantes, dúvidas podem surgir quanto à expressão «movimento». Sem entrar em divagações, mais ou menos ociosas neste contexto, sobre o que será movimento ou estática, direi que «movimento estudantil» supõe algo mais de que uma simples agregação de estudantes. Algo que é, justamente, a perseguição, dinâmica e prospectiva, de um interesse comum. E porque este interesse não é uma entidade abstracta, hipostasiada no terreno das essências, antes supõe concretas tensões de regulação social, sendo determinado e situado por elas, o movimento estudantil vem a identificar-se com as aspirações das forças sociais portadoras de uma mensagem de progresso emancipatório.

A resolução da antinomia entre a qualificação do m. e. como Aparelho Ideológico de Estado (órgão de reprodução, de conservação) e a constatação de que ele apenas se afirma, em toda a sua vitalidade, quando (enquanto) ao serviço da transformação, depende de um esclarecimento final: a organização estudantil conservadora não é movimento ou, talvez melhor, nega-se como movimento afirmando-o onde ele, objectivamente, não existe.

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2. Associativismo ou sindicalismo

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Considerei atrás duas facetas no m. e.: a do veículo autónomo de produção ideológica e a de organismo de pressâo junto da instituição escolar. Embora de modo não inteiramente rigoroso poderemos chamar-lhes, respectivamente, as dimensões associativa e sindical do m. e.. Analisarei agora, separadamente, cada uma destas funções e, finalmente, a viabilidade e os termos da sua conjugação num todo coerente.

Associar é, antes de mais, reunir. Neste sentido uma associação de estudantes é um «manifesto contra a solidão», uma denúncia radical do individualismo competitivo (e da massificação embrutecedora como seu reverso). O espaço estratégico e repressivo da Escola enuncia-se a si próprio pelo uso da nomeação na segunda pessoa (numa operação descaracterizadora que começa por citar individualmente o estudante como sujeito, negando-lhe entretanto as condições materiais e psicológicas da sua afirmação como tal): – você, que não ainda você mesmo, escute a fórmula suspensa das coisas (ainda mais estragos causados pela concepção essencialista do saber: o discurso revolta-se contra o real, ancorando-se num trompe-I’oeil metonimicamente redutor e mistificante). Já a associação dos estudantes constrói, nas suas margens, um lugar outro – de liberdade, de desejo – baseado na comunhão e na solidariedade.

Como ser em relação com (a) outros, o estudante põe-se em causa. Destrói em si as arestas mais «odiosas» do eu. Redefine-se continuamente à medida que vai tomando consciência da sua peculiar situação social e a assume e discute em colectivo.

Simultaneamente, o associativismo propicia um enriquecimento cultural ao estudante – abrindo-lhe novos horizontes e perspectivas –, o que lhe fornecerá melhores condições para ensaiar uma síntese reflexiva dos problemas do seu tempo (circunstância) e, consequentemente, para a construção de uma opinião e a tomada de opções fundamentais. Com uma formação cultural diversificada, na posse de um novo sentido de solidariedade, o estudante poderá agora intervir criticamente na vida académica, resistindo activa e colectivamenté ao processo de uniformização e à doutrinação ideológica de verniz científico com que é visado. Por esta forma também, e apenas por ela, estará a comunidade estudantil apta a intervir criativamente no espaço extra-académico, chamando a si a responsabilidade intelectual inerente como parte da responsabilidade que cabe ao estudante perante a sociedade em que se insere.

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3. A Cultura Universitária

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A questão da «cultura universitária» (expressão articulada de um universo imaginário e ideográfico tendendaimente global, actuando ao nível do estar e das atitudes de referência e relação) merece que se lhe consagrem, em particular embora não isoladaniente, algumas reflexões que alinharei de seguida.

Cultura universitária é um conjunto de saberes científicos e especulativos que se enraízam na praxis social; uma «vontade de saber» como reflexo (sujeito a desvios) de uma necessidade continuada reproduzir, reordenando, as referências básicas da conformação da Cidade segundo as suas pulsões imanentes de afrontamento, solução, progresso. Dai a mutação, por vezes surda e subterrânea, de objectos, métodos de análise, quadros teóricos e códigos de síntese de todo o saber. Garantir a continuidade deste específico compromisso institucional, sem quebras de sentido ou rupturas de processo, é tarefa do Estado capitalista actual. O que significa que o Estado necessariamente dirija as Universidades, bastando que as tulele exteriormente, assegurando a sua fidelidade aos princípios fundamentais de organização da sociedade.

Falo, portanto, de «autonomia universitária». E para denunciar:

1 – A falácia daqueles que, através dela, garantem realizada a emancipação do saber, conducente a que, cerceadas as obscenas manipulações da ciência, esta se desenvolva livremente – trata-se de um processo ínvio de, mistificando, solucionar a actual crise de legitimação da ciência (sujeição óbvia e indisfarçável aos ditames do poder político, económico e militar) ... porventura acrescendo a legitimação da própria ordem social, pretensamente realizada (ou confirmada na sua naturalidade) pelo saber humano mais genuíno e descomprometido.

2 – A ingenuidade idealista (ou deliberado «revisionismo») daqueles que, no interior da instituição universitária e aceitando os seus princípios básicos, julgam contribuir para a superação da ordem social vigente – a Universidade consente no seu seio contradições e conflitos mas integra-os hemeostaticamente; tais contradições e conflito são-lhe mesmo vitais, pois permitem-lhe acompanhar, por reflexo, a evolução das realidades sociais na sua composição de antagonismos, impedindo assim a sua definitiva marginalização e consequente imprestabilidade reprodutora e normalizante.

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Não admirará, pois, que o Estado se venha a decidir por dar mais uma chance à Universidade. Ponto é que esta esteja atenta, que não olhe para trás (ou para o próprio umbigo, por mais elevação espiritual que nele reconheça e proteste), antes se insira de pleno na estratégia da sociedade «plural». O que não impedirá sequer as regulares «inflexões» ao pluralismo teórico : prestimosos serviços feitos aos «monopólios radicais», às multinacionais, todos eles ávidos de «cultura» e dispostos a contratar «para proveito mútuo».

Cultura universitária, pois. Saberes parcelares e especializados, com alguns enxertos interdisciplinares, restritos aos trabalhos de investigação, de que se dá uma tímida e inconvincente notícia nos currículos gerais. Ortega y Gasset criou a propósito um curioso conceito de «economia do ensino»: sendo a capacidade de assimilação do aprendiz limitada em relação à totalidade dos conhecimentos adquiridos e disponíveis, organiza-se o ensino (caso a relação seja inversa, inversas serão as consequências: esoterismo, ocultismo), o que implica escolhas económicas na sua ministração. Pois a economia do ensino no capitalismo contemporâneo aposta tudo na estrita especialização dos seus «quadros» (fachidioten na expressão dos estudantes alemães em revolta), gerindo ciosamente a ignorância das classes dominadas.
Cultura universitária ad usum delphinis, elitista e excludente como resultado da sua função conferidora de estatutos de privilégio. Mas privilégio como?

É crescente a insatisfação dos estudantes perante um futuro que se lhes afigura incerto e, sobretudo, em face da tendência para a desvalorização social e progressivo assalariamento dos trabalhadores intelectuais. Será então que o «privilégio» do licenciado é hoje um mero invólucro anacrónico para engodo ideológico, mascarando uma real situação de subalternidade e exploração? Se assim é (e na medida e extensão em que de alguma maneira o for) o problema agora é, perante o dado adquirido da job evaluation – fonte de insatisfação antecipada do estudante – fixar as bases de uma acção convergente (que não ainda concertada) entre os estudantes e outras classes sociais exploradas, impedindo que o choque entre uma formação ideológica moldada na expectativa do privilégio e a negação prática deste gere uma radicalização «à direita». Trata-se, notoriamente, de um problema cultural, a que o m. e. progressista deverá estar atento, actuando «ofensivamente»: discutindo, esclarecendo, enfim, associando.

(Hipótese futura: o aceleramento da evolução das forças produtivas e da mutação das práticas de controle social – judicial, administrativo, médico, escolar, etc. – exigirá alterações ao nível da ministração do saber universitário, tornando-o mais flexível ou menos acabado e auto-suficiente, por exemplo através de uma maior integração das estruturas de investigação e de pura «aquisição» de conhecimentos? Parece, com efeito, que, sob pena de se gerar uma rápida desactualização dos quadros de formação universitária, havendo que investir na sua reciclagem e (ou) substituição a prazos sucessivamente mais curtos, a solução será «dar pernas para andar» ao estudante, de modo a que este possa futuramente acompanhar por si o inelutável devir das coisas. Implicará isso o «risco» de uma sua excessiva consciencialização e um espírito crítico acrescido? Compensação através de um mais apertado controle profissional, «deontológico» p. ex.? E se a opção for mesmo pela inscrição da obsolescência no saber ministrado – com a Universidade alargando-se não só para responder ao aumento das necessidades de quadros mas também para prover à sua renovação cíclica, lógica bem conhecida das empresas capitalistas participantes na dita «sociedade do consumo»?)

Certamente que não teremos esgotado o assunto da cultura universitária se não tomarmos em consideração aquele outro tipo de expressão que ela assume através da discussão e produção cultural independente, levada a cabo pelos estudantes à margem das Faculdades mas sugestionada e situada pela circunstância da vida universitária. Consideremos a questão das vanguardas culturais.

É inegável que as movimentações culturais de ponta constituídas por estudantes surgem após um trabalho exaustivo de debate no seio de pequenas minorias bem informadas, animadas por um espírito inconformista e (ou) por urgentes necessidades de afirmação intelectual, não estando as suas realizações mais conseguidas e estruturadas na razão directa de um aumento de interesse e nível cultural da massa estudantil. Sucede isto porquê? Terei que esquissar a mecânica de constituição destes grupos, a qual não é uniforme, obedecendo a diversos tipos fundamentais (tipos ideais, à maneira de Max Weber):

1 – encontro ocasional de indivíduos com um nível de informação cultural semelhante – resultam normalmente em movimentações pouco consistentes e amadurecidas; a sua possível coerência interna estará ligada ao culto do esoterismo e a uma prática retórica, pedante e auto-suficiente.

2 – encontro gerado com base em fortes movimentações estudantis ou motivado por um clima de convulsão nacional – a sua intervenção é normalmente sectária, sacrificando amiúde a profundidade do debate à urgência de conclusões pré-figuradas, obtidas com estupro à realidade das coisas.

3 – encontro possibilitado por uma comunhão de ideias importadas das capitais intelectuais estrangeiras – provincianismo mental; dificuldade em superar a fase meramente divulgatória e experimental.

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Salvo por vezes (e nem sempre) as movimentações do segundo tipo, estas vanguardas estão em geral desligadas da prática efectiva da vida estudantil, tendência que se exacerba ainda com a constatação da indiferença a que são votados pela maioria dos estudaates. Entretanto, o estudante «vulgar» contenta-se – por falta de interesse, capacidade ou devido à absorvência da vida escolar – com a pequena informação jornalística (ou mesmo nem isso), o que por sua vez o inibe de participar em discussões de ideias, provocando o amorfismo ou a sectarização em adesões emocionais mal fundamentadas, simplistas e de conteúdo religioso.

Como se vê, o facto de à partida existirem sensíveis diferenças de nível de informação cultural entre os estudantes provoca: I. aglutinação de grupos restritos que, evoluindo qualitativamente com grande rapidez (graças à sua coesão hermética e alto grau de discussão interna), se isolam do grosso dos estudantes, da sua identidade e interesses culturais; II. Definhamento das capacidades da maioria dos estudantes para se enriquecerem culturalmente, por falta de incentivo polémico devida à escusa ao diálogo.

A solução não será certamente «nivelar por baixo» mas agregar esforços e mobilizar estruturas abertas para um debate amplo e multímodo sobre as questões culturais que interessam aos estudantes – chamando-os efectivamente a participar massivamente no quotidiano associativo. Haverá que descentralizar, multiplicando e diversificando, os diversos polos de aglutinação dos estudantes, garantindo simultaneamente (perigo da atomização e da compartimentação estanque em novas especializações) o óptimo funcionamento dos canais de informação e cooperação entre eles. Só assim se poderá superar o dúplice ou bifacetado ghetto em que a cultura estudantil aparece frequentemente mergulhada.

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4. Solidariedade e reivindicação

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A função sindical do rn. e. deve ser entendida em termos bábeis, não só porque a analogia irrestrita com as organizações representativas das diversas classes profissionais assalariadas pode trazer equívocos e problemas iinsolúveis – caso do exercício da «greve», p. ex. –, como porque haverá vantagem em aqui enquadrar também as estruturas representativas dos estudantes na chamada «co-gestão» das Escolas.

Sindicalismo, pois, na medida em que, por organização autónoma ou através da participação concertada em órgãos de decisão compositiva, os estudantes se fazem representar nos seus interesses e aspirações próprios.

Assim mesmo, a questão da actividade sindical estudantil coloca vários problemas: l. Inexistência de uma organização estudantil específicamente sindical; II. Perigo da burocratização das estruturas representativas, com quebra de contacto com a massa estudantil; III selecção de objectivos e linhas de acção reivindicativa. Tratarei apenas deste último tema, com o que julgo também deixar alguma resposta para o segundo.

Os interesses e aspirações específicos dos estudantes são, naturalmente, os referentes à vida escolar e circum-escolar, assim como as perspectivas de saída profissional. Dentro deste âmbito surgirão sempre questões pontuais mobilizadoras da atenção dos estudantes, para as quais se exige uma posição das suas estruturas representativas na prossecução da sua tarefa sindical. Como dar resposta?

As estruturas de representação sindical não devem agir incriteriosamente ao sabor das solicitações dos estudantes, antes devem analisar ponderadamente todas as questões, engendrar soluções e questioná-Ias até achar a melhor resposta, a acção mais adequada para a fazer valer e a óptima conjugação dialéctica entre conteúdo e forma da petição ou exigência.

Subsiste contudo que o critério director da actividade sindical estudantil – sob pena de inapelavelmente se negar como tal – é o interesse dos estudares e não qualquer outra razão exterior. Ou seja, todos os interesses dos estudantes devem ser defendidos pela sua representação sindical – a questão é de avaliação da existência ou não de um verdadeiro interesse e da pertinência da reivindicação em face do próprio interesse estudantil geral, não esquecendo nunca, porém, critérios de razoabilidade social.

Deverão então ser preteridas as questões em que o pseudo-interesse estudantil a defender ou perseguir se revele mesquinho ou incaracterístico; tendentes à obtenção de uma vantagem imediata susceptível de reversão agravada ou que colidam com outros interesses sociais reconhecidamente mais valiosos.

A exigência de ponderação e análise das questões relativas aos interesses estudantis exige então uma actividade que não pode ser restrita a certos gabinetes semi--profissionalizados, antes devendo alargar-se aos plenários e reuniões de estudantes. Quer dizer, a correcta equacionação dos problemas estudantis implica (e supõe) a superação do isolamento burocrático dos executivos de representação estudantil.

Certamente que nem só de questões pontuais se compõem os interesses dos estudantes. Para além dessas haverá interesses permanentes, a defender e prosseguir continuadamente. Tal não dirá já respeito à função sindical isoladamente mas à acção integrada, sindical e associativa, que o m. e. é. A este diz também respeito a necessária envolvência de significação que deve acompanhar um movimento reivindicativo quando assume determinado relevo, bem como a criação de condições de ampla participação no debate das questões de interesse estudantil.

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Publicado na revista ‘Vértice’ (Coimbra), nºs 452 e 453, Janeiro-Fevereiro e Março-Abril de 1983.