‘Marxismo e Globalização’
de Ronaldo Fonseca

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Num ambiente tão singularmente inóspito ao pensamento marxista como o que existe neste país, a publicação deste livro tem de ser saudada como um acontecimento maior. Ronaldo Guedes Fonseca, é um autor de origem brasileira que vive em Portugal desde os tempos da revolução abrilista. Licenciou-se em Ciências Sociais em Praga, detendo mestrado e doutoramento da Universidade de Paris, em Nanterre e Vincennes, respectivamente (princípio dos anos 70). Do Brasil trouxe a marca do grande antropólogo Darcy Ribeiro; na Europa cultivou-se na tradição do pensamento dialéctico de Gyorgy Lukács e Lucien Goldman. Por todos os países onde passou, integrou-se sempre nos movimentos sociais e associativos de base, o que certamente contribuiu em não pequena parte para a formação de uma qualidade extremamente importante que o distingue e que, infelizmente, é raro encontrar em ensaístas da esquerda revolucionária: uma adesão férrea e tenaz às arestas vivas do real, ao processo histórico como ele é concretamente vivido pelas massas. É militante do movimento campesino brasileiro ‘Sem Terra’, a quem é aliás dedicado este livro. Em Portugal, depois de ter leccionado na Universidade do Minho, está agora ligado a um projecto de estudo e intervenção na área das toxicodependências. Foi co-fundador do periódico ‘Nortada’ e da edição portuguesa de ‘Le Monde Diplomatique’.

Da sua participação empenhada na revolução de 1974-5, Ronaldo Fonseca (RF) deixou testemunhos de grande sagacidade e lucidez em dois volumes, que até agora constituíam toda a sua bibliografia portuguesa. O primeiro – ‘Um Exemplo típico de idealismo académico’, publicada em 1977 pela Centelha - foi uma obra de polémica contra ‘O Socialismo, a transição e o caso português’ de João Martins Pereira. Em 1983, a editora Livros do Horizonte publicou (na colecção Movimento) ‘A Questão do Estado na revolução portuguesa (do 25 de Abril de 1974 até ao Golpe de Tancos)’, que expõe a análise própria de RF sobre o processo revolucionário português. Esta análise diverge da que é mantida nesta revista em alguns pontos essenciais, nomeadamente na avaliação do papel desempenhado pelo PCP e pela “esquerda militar” agrupada em torno de Vasco Gonçalves.

O ensaio de abertura de ‘Marxismo e Globalização’ (Campo das Letras, Porto, 2002) é uma peça já publicada no suplemento cultural do ‘Diário de Lisboa’ em Junho de 1985, sob o título de ‘A actualidade de «A destruição da razão» de Gyorgy Lukács (origens intelectuais do reaganismo)’. Trata-se de uma obra pouco conhecida deste filósofo, publicada já nos anos 50, e que RF considera a sua “grande obra da maturidade”. Nela se faz um requisitório denso e implacável ao filão irracionalista do pensamento ocidental do Schelling do fim da vida a Heidegger, passando por Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche, Spengler e muitos outros. A obra visa a demonstração de que “a doutrina e o sistema nazi-fascista (em diversos matizes), não é um modelo estranho ao «modelo democrático ocidental» mas, ao contrário, é um desaguar sempre possível desse mesmo modelo, em determinadas circunstâncias históricas”. A investigação de Lukács abrange pensadores anglo-saxónicos envolvidos na fase mais paroxística da guerra fria. RF achava o seu aviso actual no tempo da “guerra das estrelas” reaganiana. Que poderemos nós dizer hoje na era da cruzada contra o terrorismo e o “eixo do mal”?

O segundo ensaio do volume – ‘O Materialismo histórico e a metodologia das ciências naturais’ – é também dos anos 80 e está também sob o signo lukácsiano, agora da problemática levantada por ‘História e consciência de classe’. Na tradição do “marxismo ocidental” inaugurada pelo grande pensador húngaro, RF pugna pela separação epistemológica entre ciências da natureza e ciências sociais (ou materialismo dialéctico e histórico, tendendo à negação ou desvalorização do primeiro). Pela minha parte, costumo alinhar com aqueles que defendem o carácter integral da concepção materialista e dialéctica do mundo, os quais em Portugal tem já um adepto de peso em João Maria de Freitas Branco (‘Dialéctica, ciência e natureza’, Caminho, 1989). A discussão está longe de estar esgotada mas, como em muitas polémicas filosóficas, as posições mais inteligentes são as de compromisso. Ora, a posição de RF está longe de ser extremista. Quanto aos alvos privilegiados que ele pretende atingir – tanto o mecanicismo determinista (e demissionista) da II Internacional e da tecno-burocracia soviética, como os dislates reducionistas de certas pseudo-ciências burguesas (sócio-biologia, etc.) – não poderia estar mais de acordo, pelo que não há aqui qualquer divergência importante.

A busca de um trilho próprio para o materialismo histórico prossegue com o ensaio ‘Procesos históricos e revoluções sociais’, com data de Janeiro de 1998. É porventura a peça mais ambiciosa no conjunto, pois nela se esboça um certo modelo teórico para a ciência histórica. O modelo traz à mente arquitecturas semelhantes como as teses de Thomas Kuhn sobre revoluções científicas ou a teoria do “equilíbrio pontuado” do biólogo e paleontólogo (recentemente falecido) Stephen Jay Gould. Para RF, a história dos povos passa necessariamente por longos períodos em que a evolução é lenta e governada por factores objectivos (o eixo forças produtivas/relações de produção), pontuados por períodos de crise e grande turbulência. Nestes últimos abre-se uma encruzilhada muito ampla de possibilidades históricas alternativas, e a sua resolução dependerá em grande medida de factores subjectivos. Por outro lado, RF (possivelmente influenciado aqui por Samir Amin) considera que as rupturas históricas têm maiores probabilidades de ocorrer na periferia do sistema imperial vigente, por intermédio de revoltas progressivas que imponham uma desconexão.

Depois dos artigos especulativos, RF sobe ao concreto. O miolo do livro é assim ocupado com dois artigos que tratam de duas rupturas históricas fundamentais: a revolução francesa e a revolução soviética. Não há fragilidades evidentes mas o leitor procurará aqui em vão qualquer investigação original ou análises de grande fulgor e inovação.

Onde RF desbrava terreno novo, pelo menos aqui em Portugal e na área política em que ele se situa, é nas suas ‘Reflexões sobre as causas da desagregação da URSS’, datado de Setembro de 1999. Para RF, o processo de reformas económicas e políticas iniciado por Gorbatchov foi uma iniciativa elitista protagonizada por uma camada social privilegiada, sem qualquer participação activa das massas populares. Isso não podia aliás deixar de ser assim, porque desde há décadas (gerações) que havia uma “elitização, formalização e separação de facto entre quadros dirigentes e as massas trabalhadoras”. Mas RF vai mais longe. O lançamento destas reformas fez-se exclusivamente no interesse dessas camadas sociais privilegiadas, pois que a estagnação económica da URSS começava a afectar o montante absoluto da mais-valia social de que essas camadas se apropriavam de facto e, consequentemente, o seu nível de vida. Havia, pois, antagonismo social e uma dinâmica classista na sociedade soviética. É por isso que, na hora do diagnóstico, a tecnocracia dirigente não conseguiu melhor que culpar os trabalhadores e, na hora da decisão, não pôde divisar outras reformas possíveis que não passassem pela emulação do capitalismo, por intermédio de uma “restauração deslizante” da apropriação privada e dos mecanismos mercantis, a qual culminaria na própria desagregação política e militar da União.

O penúltimo ensaio do volume é ‘Notas sobre a globalização’, datado de Maio de 2000. Depois de uma caracterização sumária mas a meu ver correctíssima do processo histórico de ofensiva generalizada do capital nas últimas décadas do século passado, RF analisa a falência da social-democracia, desmascara algumas contrafacções ideológicas burguesas em voga, denuncia o euro-centrismo arrogante de certos “progressistas” e aponta certos caminhos de resistência e formação de alternativas. Na sua opinião, a via mais verosímil de uma superação do actual sistema capitalismo mundial será pela ocorrência de processos revolucionários nacional-populares em algumas grandes nações (ou blocos de nações) da periferia. Esses processos, com base num amplo bloco social pelo desenvolvimento e a emancipação nacional (do qual está à partida excluída a grande burguesia), para serem viáveis, teriam que abranger uma certa massa crítica geográfica, com suficiência alimentar, recursos naturais, mercado interno e, em geral, capacidade económica, política e militar para permitir uma desconexão do sistema, sustentando depois o cerco e as provocações do imperialismo. Só numa segunda fase, quando o imperialismo norte-americano já estivesse enfraquecido (e burguesia eventualmente desalojada do poder em alguns dos países capitalistas mais desenvolvidos) é que se poderia encarar uma transição para um sistema social mais avançado, com controlo do poder e gestão do excedente a cargo dos trabalhadores.

Trata-se de uma especulação interessante, nos seus limites próprios, embora me parece muito discutível excluir desde já que se possam vir a realizar avanços importantes no sentido da democracia proletária em países ainda submetidos ao cerco imperialista. Isto quando, algumas páginas atrás, RF tão convincentemente sustentou que foi precisamente a falta de poder das classes produtoras que levou ao restauracionismo e, em última instância, à desagregação da União Soviética. Surpreendente também é que RF defenda que devemos hoje abandonar o horizonte de uma sociedade comunista (com o deperecimento do Estado, etc.) pois que esta implicaria uma sociedade de abundância, a qual seria ecologicamente insustentável. Esta visão pessimista parece-me ancorada a uma concepção de desenvolvimento económico dependente do consumo de fontes de energia não renováveis (nomeadamente os combustíveis fósseis), quando o que a Ciência Ecológica nos demonstra é precisamente que isso não tem de ser assim, que pode haver um desenvolvimento exponencial das forças produtivas sem que isso implique qualquer agressão ambiental. Possamos nós derrubar a vesga lógica vigente da lucratividade privada a curto prazo que nos impõe a manutenção daquelas fontes de energia hiper-poluentes.

O Posfácio, datado de Fevereiro de 2002, é uma peça interessante e uma nota de grande esperança na renovação política operada pela ascenção dos movimentos sociais contestatários, de Seattle a Porto Alegre. RF denuncia, com grande pertinência, alguns embustes da ideologia “globalista” burguesa (as supostas transnacionalização do capital e decadência do Estado-nação) e salienta a actualidade do conceito de imperialismo. Propugna uma estratégia de acumulação de forças dos movimentos sociais que os conduzam à formação de frentes populares e democráticas anti-imperialistas. Como modelo organizativo propõe estruturas descentralizadas, abertas, participativas e de comunicação transversal. Conclui com uma manifestação de confiança na tradição renovada do pensamento marxista - insuperável instrumento de conhecimento, luta e emancipação – como fonte inspiradora de respostas concretas e bem calculadas à continuada agressão que a barbárie capitalista lança hoje ao rosto de qualquer consciência livre. Eis aí um esforço para o qual sabemos agora poder contar em Portugal com uma voz que julgávamos perdida.

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Publicado na revista ‘Política Operária’ nº 87, de Novembro-Dezembro de 2002