O TERCEIRO-ANALÍTICO E O SEM-FUNDO CORPORAL
– UM ENSAIO SOBRE THOMAS OGDEN
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Alfredo Naffah Neto**

Resumo: O presente ensaio tem como tema uma análise crítica do conceito de terceiro-analítico de Thomas Ogden. Inicialmente, discute criticamente a concepção dialética do autor (de características neo-hegelianas), evidenciando o quanto essa fundamentação filosófica não consegue dar conta da complexidade e riqueza da experiência clínica aí veiculada. A discussão dessas impropriedades conduz, então, a uma redefinição do conceito. A segunda parte do ensaio rastreia a noção de memória corporal em Freud e Ferenczi e sua associação ao registro mnemônico do trauma para, em seguida, procurar articulá-la à produção do terceiro-analítico, resgatando, assim, a importância da dimensão corporal no acontecimento clínico psicanalítico. Pode-se vislumbrar no fundo, atravessando as tramas deste ensaio, a presença de F. Nietzsche.

Palavras-chave: terceiro-analítico, dialética, memória corporal.

Encontrar um autor psicanalista com o qual eu possa sentir ressonâncias tão amplas, capazes de mobilizar uma sensação de total familiaridade, um reconhecimento das minhas experiências próprias nas suas, hoje em dia é coisa rara. Talvez porque eu já tenha passado dos cinqüenta anos e tido uma trajetória clínica muito peculiar, só tendo me tornado psicanalista por escolha própria, marginalmente ao aval de qualquer instituição tituladora e num movimento convergente com o aumento da minha maturidade pessoal. Talvez porque tenha partilhado, desde muito cedo, da desconfiança crítica dos filósofos, tendo aprendido com eles a passar tudo o que leio por um crivo avaliador, em geral nada condescendente com o material examinado. Ou talvez por ambas as razões.

Apesar disso, fascinei-me com os escritos de Thomas Ogden, desde o primeiro texto seu que li; tratava-se do livro Os Sujeitos da Psicanálise, editado em São Paulo, em 1996, pela Casa do Psicólogo em co-edição com a Clínica Roberto Azevedo. Aconteceu, de cara, um fato bastante curioso durante a leitura: no plano clínico, a identificação era quase total; para começar porque ele ousava descrever seus casos, suas sessões e falar em nome próprio, o que – entre os psicanalistas, é muito pouco usual. Além disso, era corajoso o suficiente para descrever seus devaneios, suas distrações no meio das sessões; mais do que isso, tentava entender os que eles significavam no âmbito transferencial-contratransferencial.

Nas suas palavras: "...essas rêveries não são simples reflexo de desatenção, absorção narcísica, conflitos emocionais não resolvidos e coisas semelhantes. Essa atividade psicológica representa, antes, formas simbólicas e proto-simbólicas (baseadas em sensações) atribuídas à experiência não-articulada (e muitas vezes não sentida) do analisando, quando estas estão ganhando forma na intersubjetividade do par analítico".

Ora, até então eu sempre sentira uma certa culpa, cada vez que minha atenção flutuante levava-me a terrenos muito distantes do discurso do analisando e eu não conseguia atinar com nenhuma relação entre ambas os experiências. Sabia que não tinha controle sobre a minha atenção e nem deveria ter, caso contrário ela perderia a sua condição de flutuante, mas ainda assim, nessas ocasiões, sentia-me pouco continente. Só então, pude compreender e levar às últimas conseqüências o sentido do termo freudiano: "atenção equi-flutuante", definidor da técnica.

Por último, o que me seduziu nos textos de Ogden foi o fato de ele acompanhar o material de seus pacientes, passo a passo, sem interpretações tiradas da cartola. Eu, que acabara de ler os seminários clínicos de Donald Meltzer na Sociedade de Psicanálise de São Paulo e de horrorizar-me com a displicência com que ele, simplesmente, vomitava teoria em cima dos seus supervisandos, achei que tinha encontrado, por fim, um companheiro de jornada.

Entretanto, no plano teórico, a identificação foi parcial. Das qualidades admiradas, uma foi a sua inventividade, capaz de criar conceitos novos para experiências clínicas inusitadas. Outra foi a sua visão de crescimento humano, bastante dissociada de qualquer teleologia e noção de progresso, no sentido tradicional dos termos. Apesar disso, não pude partilhar dos fundamentos filosóficos do livro, apoiado numa dialética neo-hegeliana, um tanto quanto incapaz, ao meu ver, de dar conta da clínica por ele desenvolvida, incluída aí a noção de crescimento humano, acima referida.

Entretanto, hoje em dia, já aprendi perfeitamente a separar o joio do trigo; sei que mesmo que o minha visão nietzschiana descubra imprecisões na dialética de Ogden, isso não destrói, em absoluto, a sua teorização, toda calcada na experiência clínica. Basta reavaliá-la e dar-lhe uma melhor formatação teórica, processo, aliás, no qual Ogden nem sempre é bem sucedido. Foi nesse movimento que resolvi assumir, nesse ensaio, o seu conceito de terceiro-analítico, procurando, em primeiro lugar, revisar criticamente a sua definição conceitual para, em seguida, explorar a sua fecundidade clínica numa dimensão cuja importância psicanalítica venho tentando enfatizar, em meus últimos escritos: a dimensão corporal.

Comecemos por um caso clínico, um fragmento de sessão. Maria é uma paciente que está em análise comigo há cerca de dois anos e meio. Na sessão em questão, ela me conta um sonho: está numa praia e, de repente, o mar invade a areia e a arrasta. São ondas enormes, de água barrenta, que ela associa mais com rio do que com mar mas, apesar disso, trata-se de mar. O mais surpreendente, ela diz, é que, ao ser envolvida por aquelas águas bravias, sente-se imobilizada, fica com medo de se afogar mas não se afoga.

O sonho termina aí e as associações de Maria não acrescentam muito: sobre mar, ela diz apenas que gosta de mar e que, nas férias, costuma procurar cidades de praia; sobre rio, conta que quando criança, havia um rio de águas barrentas na cidade do interior de São Paulo, onde morava. E as associações param aí. O clima afetivo do relato é calmo, tranqüilo, compassado, em contraste com a temática do sonho. Eu a escuto, de olhos fechados, enquanto manuseio uma laranja de borracha que fica sobre a mesa ao lado.

De início, costumava manusear essa laranja, durante algumas sessões, como forma de fazer exercícios com a mão; posteriormente, comecei a usar esse manuseio como forma de expressar corporalmente, para mim mesmo, o clima afetivo emergente. Ao longo do relato de Maria, o que acontece é que sou tomado por sensações estranhas: uma vontade incontrolável de jogar a laranja na parede. Mergulho nas sensações e vem um ódio imenso, um ímpeto agressivo: vontade a espremer a laranja, de lançá-la na parede, com toda a força.

E sei, com toda a convicção que esses afetos não são meus, ou melhor, eles ocorrem em mim, mas num corpo emprestado à depositação transferencial. Então resolvo interpretar, dizendo a Maria que é possível que o seu sonho fale de momentos em que se vê invadida por muito ódio e agressividade e tenta reprimi-los, imobilizá-los. Ela me ouve e lembra-se de outro sonho, esquecido, no qual era atacada por um bicho enorme, do tamanho de um leão, uma espécie de monstro, de dentes muito aguçados.

E, no momento em que era mordida, ela mesma tornava-se o bicho. A partir daí, vem à baila uma agressividade reprimida, que Maria vive sob a forma de dores musculares, câimbras. Provavelmente, o segundo sonho ia além disso, contando a história de como foi primeiramente atacada, para depois aprender a atacar, enredos provavelmente ligados à sua infância, nessa cidade do rio barrento. Aspectos que retornariam em outras sessões, outros relatos, quiçá outros sonhos.

A partir desse exemplo, é possível vislumbrar, para além da calmaria aparente, que domina a relação analista-analisanda, nessa sessão, um campo comum, inconsciente, onde o ódio e a agressividade irrompem. Acossam o corpo/espírito do analisando mas, não podendo ser experimentados por ele, são evacuados e projetados no corpo do analista, num mecanismo de defesa típico.

Esse campo comum, inconsciente – que possibilita tanto o acolhimento, quanto a decodificação e interpretação do analista - é que Ogden denomina terceiro-analítico. Ele assim o descreve: "O processo analítico reflete a inter-relação de três subjetividades: a subjetividade do analista, a do analisando e a do terceiro-analítico.

O terceiro-analítico é uma criação do analista e do analisando, ao mesmo tempo que ambos (na qualidade de analista e analisando) são criados pelo terceiro-analítico. (Não há analista, analisando ou análise na ausência do terceiro)." Aqui já é possível perceber certas imprecisões na definição de Ogden: a primeira delas é falar de um campo inconsciente usando a noção de subjetividade, muito pouco própria para tal.

Subjetividade, assim como sujeito, vêm do latim sub-jectum, que significa "aquilo que subjaz". Walter Brugger comenta, a esse respeito: "...Sujeito é a realidade que está na base, que ‘sustenta’, o ‘sustentador’, o ‘portador’; denota pois, essencialmente, uma relação a outra realidade que ‘descansa sobre ele’, que é ‘sustida’ por ele... O que se pretende explicar com as expressões gráficas de ‘sustentar’, ‘receber’, só nos é dado originariamente, de modo imediato, na relação de nosso eu com seus atos e estados.

O fato vivido de que o eu ‘tem’ os atos como seus atos, de que os atos estão ‘nele’, exprime-se filosoficamente, denominando o eu como sujeito dos mesmos atos." Enquanto figura linguística, o sujeito aponta para aquilo (ou aquele) que subjaz ao discurso verbal, seu ente enunciativo. Ora, no caso do terceiro-analítico, não é possível encontrar nenhum ente subjacente à constituição do campo, quer o consideremos na sua dimensão puramente verbal ou pré-verbal; sabe-se que esse campo é formado a partir de dinâmicas inconscientes originárias das histórias de analisando e analista, mas sem qualquer escolha ou controle por parte de seus "eus" sendo, portanto, em princípio, um campo sem sujeito.

Neste sentido, descrever o terceiro analítico como uma subjetividade, soa tão forçado quanto dizer que ele é uma criação do analista e do analisando que, por sua vez, seriam uma criação do terceiro-analítico. O termo criação, se pode ser usado aí, somente pode sê-lo de um modo passivo, em se tratando de fenômenos inconscientes; pode-se dizer, por exemplo, que o terceiro-analítico é criado a partir das histórias do analisando e do analista, que por sua vez, são recriados a partir do terceiro-analítico.

Ou seja, todas as criações aí envolvidas deveriam ser descritas como processos auto-engendrados, sem sujeitos, para sermos fiéis às experiências em questão: nem analista nem analisando se põem ou se experimentam como sujeitos na criação do terceiro-analítico, bem como este não designa um sujeito, agente de qualquer re-criação de analista e analisando.

O problema é que, por estar tributário de uma filosofia dialética, Ogden tem que reduzir todos esses termos a um mesmo denominador comum: o sujeito, a subjetividade, para que o sistema de negações e contradições possa operar e levar àquilo que Hegel denominou reconhecimento mútuo das consciências. Em outros termos, a presença final das consciências reconhecedoras exige, como o seu correlato, a presença, desde o início do processo, de figuras de sujeitos-em-negação-mútua, que se transformariam, através do processo dialético, até atingirem a condição da consciência reflexiva.

A dificuldade é que estamos falando de processos inconscientes, que atuam a partir de partes, fragmentos da alma (mecanismos de defesa do ego, partes inconscientes do superego etc), e se projetam na produção de um campo comum. Além disso, esses processos são irredutíveis, nunca se fecham completamente numa totalidade individual. Portanto, é impossível falar aí de "sujeitos" (envolvidos em processos de negação, criação ou o que quer que seja). O inconsciente só implica o sujeito na sua forma passiva, de "estar sujeito a ", sendo ele próprio um conjunto de processos sem sujeito.

Aprofundar a análise crítica do terceiro-analítico, tal qual pensado por Ogden, implica, entretanto, acompanhar a sua dissecação do conceito a partir da noção kleiniana de identificação projetiva. Diz ele: " A identificação projetiva compreende narrativas inconscientes (tanto verbal quanto não verbalmente simbolizadas) que incluem a fantasia de evacuar uma parte de si para dentro de outra pessoa.

Essa evacuação fantasiada serve tanto à finalidade de se proteger dos perigos que um dos aspectos de si mesmo suscita, quanto de salvaguardar uma parte de si, depositando-a numa outra pessoa que é vivenciada como apenas parcialmente diferenciada de si próprio (Klein 1946, 1955...). (...) A identificação projetiva é um processo pelo qual a subjetividade, tanto do projetor quanto do recipiente, está sendo negada de diferentes maneiras: o projetor está recusando um aspecto de si próprio que ele imagina estar sendo evacuado para dentro do recipiente, ao passo que o recipiente está participando de uma negação de si próprio ao se render a (criar espaço para) o aspecto recusado da subjetividade do projetor. (...) (Portanto), a identificação projetiva só pode ser entendida em termos de uma dialética de sujeitos que se criam, negam e preservam mutuamente, cada um deles permitindo-se ser ‘subjugado’ pelo outro, ou seja, negado de tal forma que, por intermédio do outro, torna-se um terceiro sujeito ( o sujeito da identificação projetiva).

O que distingue a identificação projetiva como forma de relação analítica é que a intersubjetividade analítica que a caracteriza é de tal ordem que a subjugação mútua (assimétrica e que serve de mediação para a criação de uma terceira subjetividade) tem o efeito de subverter poderosamente a experiência do analista e do analisando como sujeitos separados. No setting analítico, a identificação projetiva envolve um tipo de colapso parcial do movimento dialético da subjetividade e intersubjetividade, resultando na subjugação (das subjetividades individuais do analista e do analisando) pelo terceiro-analítico.

O processo analítico, se for bem sucedido, implica a reapropriação das subjetividades individuais do analista e do analisando, que foram transformadas por via da experiência destes do (no) terceiro-analítico recém-criado (o ‘sujeito da identificação projetiva’). " Desta forma, o terceiro-analítico é, aqui, identificado com "o sujeito da identificação projetiva". Ogden continua: "Na identificação projetiva, analista e analisando são limitados e enriquecidos; cada um é sufocado e vitalizado. A nova entidade intersubjetiva que é criada, o terceiro-analítico subjugador, torna-se um veículo por meio do qual pensamentos podem ser pensados, sentimentos sentidos, sensações vivenciadas, experiências estas que só existiam até então potencialmente para cada um dos indivíduos....".

Retomando o exemplo clínico antes descrito, poderíamos dizer que o ódio e a agressividade de Maria - cuja consciência é evitada em função do medo de descontrole que gera - são evacuados para dentro do corpo do analista (enquanto fantasia inconsciente) e este pode, então, encarnar esses afetos, vivenciá-los e devolvê-los a ela, interpretativamente, para possibilitar-lhe a reapropriação dos mesmos.

Não cabe questionar a importância e utilidade do conceito kleiniano de identificação projetiva aí utilizado; cabe, mais uma vez, evidenciar o quanto a interpretação dialética de Ogden é pouco fiel à dinâmica em questão. Em primeiro lugar, porque não existe a identidade postulada entre o terceiro-analítico e o "sujeito da identificação projetiva". Podemos dizer que a identificação projetiva – dentre outros processos inconscientes – participa da criação do terceiro-analítico como um campo singular, no qual analista e analisando são envolvidos.

Podemos dizer também que, no momento que o analista transforma uma identificação projetiva em interpretação – nesse momento singular – ele pode emergir como "sujeito da identificação projetiva", mas mesmo aí esse "sujeito" – que emerge pela enunciação verbal do processo inconsciente projetado nele - não pode ser identificado com o terceiro-analítico, que o ultrapassa de ponta a ponta, comportando sempre inúmeros outros processos inconscientes, não apreendidos e interpretados naquele momento.

Isso significa que, falar aí de uma "dialética de sujeitos que se criam, negam e preservam mutuamente" é, no mínimo, impreciso. Quando o analista empresta
o seu corpo/espírito para a depositação transferencial, tornando-se um campo
para as identificações projetivas do analisando, não está negando a si próprio;
está oferecendo-se à incorporação e manifestação de uma alteridade, sabendo de antemão que poderá sofrer fenômenos de quase-despersonalização, experimentando coisas que não lhe são próprias.

Mas o analista experiente conhece-se como uma conjunção singular de forças, aberta à alteridade, um complexo metamorfoseante de afetos, sensações, representações que, somente de quando em quando se compõe, se recolhe, na forma de uma identidade. Mais do que isso, a sua competência analítica é diretamente proporcional ao aumento de sua capacidade para reconhecer-se através dos inúmeros "outros" nos quais se torna ao longo da vida. Falar de sujeitos que se negam, criam e preservam mutuamente, no espaço analítico, pressupõe falar de identidades fixas que se sentem negadas cada vez que sua forma é desestabilizada pelo confronto com alguma alteridade.

O analista que se sente negado nesta situação está prisioneiro do universo das representações, do campo semântico da linguagem; esqueceu-se dos ensinamentos de Heráclito de Éfeso, que dizia: "Usais nomes das coisas, como se estas tivessem uma duração fixa: mas mesmo o rio, em que entrais pela segunda vez, não é o mesmo da primeira vez." O filósofo pré-socrático queria dizer que não se deve confundir o fato de as coisas terem um nome próprio, fixo, com qualquer fixidez no nível do ser próprio; que esses nomes – por serem fixos – podem ser enganadores, se extravasam o seu lugar próprio de palavras, distintas daquilo que designam; enfim, que todo ser próprio é, necessariamente, devir.

É preciso, pois, considerar que o ser próprio do analista, em contexto transferencial, define-se como metamorfose constante, em função das identificações projetivas do analisando.

Nessa mesma direção, quando um conteúdo psíquico do analisando é evacuado para fora de si, sob a forma de fantasia inconsciente e, enquanto tal, pode ser experimentado pelo analista, isso não quer dizer que o analisando esteja negando o ente do analista ou o seu próprio, pois a descrição mais exata da identificação projetiva seria dizer que ela se realiza através do analisando.

Ou seja, se existe negação aí, trata-se de uma dimensão inconsciente do analisando – um mecanismo de defesa – evacuando outra, portanto nada que tenha a ver com a ação de um sujeito. Essa passagem de um psiquismo a outro pode acontecer, justamente, porque os contornos humanos aí envolvidos são plásticos, porosos, podendo ter seus limites extravasados e seus elementos deslocados de um lugar para outro, ou condensados, segundo os mecanismos do processo primário, tal qual descritos por Freud. Ou, em outros termos, porque constituem formas abertas, em contínua constituição, não possuindo qualquer fixidez e só se fechando como sujeitos em momentos pontuais do processo, quando emergem como entes enunciativos, subjacentes ao discurso verbal. Qualquer suposição da presença de sujeitos no processo como um todo constitui, assim, ilusão retrospectiva ou prospectiva.

Por isso, a melhor forma de conceituar o terceiro-analítico é como um campo inconsciente, portanto necessariamente aberto, metamorfoseante, formado a
partir das conjunções de forças que compõem o espaço analítico em cada momento. Criado a partir das formas de sensibilidade, afecções e dinâmicas cunhadas pela histórias de cada um dos seres humanos envolvidos, o terceiro-analítico não designa uma forma de subjetividade.

Ao contrário, designa o campo comum, no qual as formas-humanas-em-devir podem dionisiacamente se misturar, dissolver e reformatar, recuperando facetas, dimensões de si próprias até então eclipsadas ou apenas virtuais. Evidentemente, como assinala Ogden, o terceiro-analítico é mobilizado, na situação analítica, em favor do crescimento do analisando, o que significa dizer que analista e analisando não estão aí envolvidos num processo democrático de análise mútua. Entretanto, isso não afasta, de forma alguma, a necessidade de que, de quando em quando, a própria instituição analítica seja objeto de análise e que, portanto, o terceiro-analítico seja também mobilizado para a análise dos pontos-cegos da situação analítica e do próprio analista.

Através desse processo, o analista também cresce, não só como profissional,
mas como ser humano, de forma global.

Gostaria, agora, de apresentar a tese de que o terceiro-analítico desenvolve-se
e forma-se a partir de um sem-fundo corporal, um espécie de abismo, vazio primordial, lugar da memória traumática incrustada no corpo. Mas para entrar
nesse tema é necessário um desvio, para resgatar o lugar da memória corporal
em psicanálise.

A idéia da existência de diferentes tipos de memória, entre elas a memória
corporal, já existe no pensamento de Freud. Luiz Hanns, no seu último livro:
A teoria pulsional na clínica de Freud (Rio: Imago, 1999), descreve três tipos de memória, na obra freudiana. A memória psíquica mais próxima da consciência, ligada ao processo secundário, designa um tipo de "memória evocável por reserva de energia pulsional fixada às idéias", onde existe uma "prontidão rememorativa; bastam sinais chegados de fora ou moções internas para reativá-la".

Há, também, uma memória psíquica ligada ao processo primário, que se define como "memória impressa ou escavada devido à repetida passagem de fluxos pulsionais em direção à descarga. A chegada maciça de estímulos internos ou externos traz rememoração alucinatória por catexia". Esta é a memória invocada no ato em que o bebê suga o dedo, alucinando o peito da mãe. Por fim, há ainda a memória designada como somática: "uma espécie de memória impressa na anatomia, que se ativa em seqüência de reações fisiológicas, automatismos somáticos e motores em resposta aos estímulos de dentro e de fora".

Entretanto, Luiz Hanns vê, nesse tipo de memória, uma "ausência de imagens e de afetos. Há somente estímulos aos quais o corpo, na dimensão do somático reage." Ou seja, segundo a sua leitura, para Freud, afetos e imagens só começariam a existir no segundo tipo de memória, ligada ao processo primário e, por essa mesma razão, designada como "psíquica" em oposição à "memória somática".

Ana Lila Lejarraga, no livro O trauma e seus destinos (Rio: Revinter, 1996),
também fala dos diferentes tipos de memória em Freud mas, embora caminhe numa direção convergente, apresenta um quadro mais nuançado . Não pretendo percorrer aqui todos os seus desenvolvimentos nessa direção, pois faltaria
tempo e espaço para tanto; entretanto, pretendo pinçar alguns deles, necessários ao desenvolvimento do tema aqui desenvolvido. Dos vários textos de Freud que tratam do assunto, é importante ficarmos com a descrição da carta 52 (a Fliess), onde aparecem três tipos de memória.

O primeiro designa a memória dos signos de percepção, formada pela primeira transcrição das percepções e articulada segundo relações de contiguidade e simultaneidade . Esse tipo de memória, como o próprio nome indica, é de signos de percepção e não de imagens perceptivas, como poderíamos supor. Para que a percepção de inscreva como memória, ocorre uma espécie de tradução das imagens perceptivas em marcas e estas não guardam mais qualquer relação de semelhança com as imagens iniciais.

Ana Lila Lejarraga nos diz: "A passagem da percepção à primeira inscrição da percepção comporta sempre uma mudança de registro, e como aponta M. Schneider ‘uma transposição ou metamorfose’ (Le trauma et la filiation paradoxale, Paris: Ramsay, 1988, p.31). As percepções são transpostas em marcas, a excitação se metamorfoseia em signos que se reordenam de diferentes formas. Há uma cisão entre percepção e memória; o que se conserva como impressão, de maneira estável, é o que foi transposto.

Os signos de percepção, que constituem as primeiras transcrições, pouco
guardam da percepção e do evento original. A constituição da memória está na ordem da substituição, onde se perde o original." Esse tipo de memória (que a autora associará, em seguida, à noção de impressão) pode não sofrer uma segunda transcrição, caso gere desprazer e seja recalcada (que, conforme se
verá, é justamente o caso da memória traumática).

Se a segunda transcrição ocorrer, entretanto, essa informação passará para o segundo tipo de memória, a memória inconsciente que, segundo o Freud da carta 52, é ordenada por nexos causais e corresponde a "lembranças de conceitos".
Ou seja, ocorre então uma nova tradução, nova substituição, dos signos perceptivos por signos conceituais. Nos textos da Metapsicologia, esses signos serão descritos a partir da noção de representação-coisa, dissociada da representação-palavra, ou seja, de representações dissociadas das palavras que as nomeiam, portanto impossíveis de reconhecimento consciente.

Por fim, quando há uma suspensão do recalque, essa memória pode sofrer uma terceira transcrição - a última das transmutações - e fundir-se às representações-palavras, ou seja, à linguagem, capaz de possibilitar-lhe passagem para o nível pré-consciente e reconhecimento pela consciência.

Dessas três memórias, interessa-nos, sobretudo, a primeira, que a autora associa ao registro traumático: "É sem dúvida o modelo da carta 52, com os signos de percepção, o que melhor ilustra a particularidade com que imaginamos que o trauma se registra no sistema mnemônico. Entendemos que esses signos de percepção correspondem às impressões traumáticas, às primeiras marcas do acontecimento, que se registram de alguma forma no sistema mnemônico, sem constituir ainda os signos inconscientes.

" Ela continua: "Os caracteres das impressões traumáticas infantis são: a) corresponder à infância precoce; b) não serem acessíveis à lembrança, sendo substituídas geralmente, por lembranças encobridoras; c) serem impressões de natureza sexual e agressiva, que constituem feridas narcísicas. As impressões traumáticas não correspondem só a situações percebidas (externas), senão também ao próprio corpo. Isso significa que a impressão não é só registro do acontecimento, mas do processo energético ocorrido no próprio corpo. Resumindo, temos que a idéia de impressão se refere sempre, no discurso freudiano, a uma marca de uma vivência precoce, a um registro do acontecimento (seja externo ou interno em referência ao corpo), que produz efeitos psíquicos, mas que não se inscreve como lembrança."

É nesse sentido que o corpo, na sua relação mais primitiva com o mundo,
constitui a sede primeira da memória traumática. Esta conclusão, entretanto, reflete o final do percurso de Ana Lila Lejarraga, percurso este, sem dúvida, apoiado em Freud, mas resgatando e dando ao corpo um lugar de destaque que Freud, na verdade, só pôde afirmar, de forma bastante enigmática, num de seus últimos escritos que, por ter sido elaborado para divulgar a psicanálise, é pouco levado a sério: o Esquema de Psicanálise.

Diz ele: "(...) Há acordo geral de que os processos conscientes não formam séries sem lacunas, fechadas em si mesmas, de forma que o único expediente seria supor alguns processos físicos ou somáticos, concomitantes ao psíquico, aos quais parece preciso atribuir uma perfeição maior do que às séries psíquicas, pois alguns deles possuem processos conscientes paralelos e outros não. Isto sugere, de uma maneira natural, em psicologia, colocar a ênfase nestes processos somáticos, reconhecer neles o genuinamente psíquico e procurar uma avaliação diversa para os processos conscientes.

Entretanto, a maioria dos filósofos, além de muitos outros, revolta-se contra isso e declara que alguma coisa psíquica inconsciente seria um contra-senso. Não obstante, tal é a argumentação que a psicanálise se vê obrigada a adotar e que é o seu segundo pressuposto fundamental. Declara que esses processos concomitantes, presumidamente somáticos, são o psíquico genuíno e, para fazê-lo, prescinde no começo da qualidade da consciência." O que Freud quer dizer aí, ao afirmar que processos presumidamente somáticos, distintos e separados dos processos conscientes (lacunares), deveriam ser considerados o "psíquico genuíno"? Alguma tentativa tardia de repensar o inconsciente a partir do somático, do corporal? Difícil de saber pois, pouco depois, Freud morreu.

Seria somente com Ferenczi que o corpo ganharia um lugar de primeiro plano, na psicanálise. Diz ele: "O bebê só tem sensações subjetivas, no início, e reações corporais (movimentos de expressão). As crianças nos (3,4?) primeiros anos de vida tampouco têm muitas lembranças conscientes do desenvolvimento das coisas mas apenas sensações (com tonalidade de prazer e desprazer) e reações corporais às mesmas.

A ‘lembrança’ permanece imobilizada no corpo e somente aí pode ser despertada. Em certos momentos do traumatismo, o mundo desaparece total ou parcialmente: tudo se torna sensação sem objeto. Na verdade, a conversão é apenas uma recaída no modo de reação puramente corporal, subjetivo....". É nesse sentido que Ana Lila Lejarraga afirma: "(Segundo Ferenczi) é o corpo que guarda as marcas do trauma que não puderam se inscrever em traços mnêmicos. E se os enunciados que dizem respeito ao trauma são corporais e não verbais, o analista deve procurar novas formas de tratamento que dêem conta desses casos no limiar do analisável."

Agora, após esse longo desvio, é possível voltar ao tema inicial. Pode-se afirmar, primeiramente, que os conteúdos psíquicos inconscientes formadores do terceiro-analítico originam-se todos de estratos da segunda memória, aquela considerada por Freud a memória inconsciente propriamente dita (já que é somente dela que se pode resgatar algum tipo de lembrança, atualizável transferencialmente).

Entretanto, pode-se também afirmar que é da primeira memória, a memória corporal das impressões traumáticas, que vêm os apelos pulsionais, as reverberações, na sua reatualização repetitiva, em busca de reconhecimento e elaboração psíquica. Como, entretanto, definir essa memória vazia de lembranças, esse conjunto de marcas que vela um vazio incapaz de ser preenchido? Quiçá como um abismo, um sem-fundo corporal, puro lugar da ferida.

Sua melhor definição, entretanto, é a que o traduz como um campo de forças, invisível, indizível, resistente a qualquer forma mas, enquanto tal, capaz de produzir efeitos. E se, neste percurso, chegamos ao que poderíamos considerar o núcleo mais primitivo do inconsciente, seguindo Freud e Ferenczi, por um caminho convergente chegamos também à própria definição de inconsciente, tal qual o entendia Nietzsche. Mas sobre esse tema, não vou me estender aqui, dado que já o tratei exaustivamente num livro anterior. Somente gostaria de lembrar que, afinal, foi o próprio Freud quem afirmou, numa de suas últimas entrevistas, que Nietzsche teria sido um dos primeiros psicanalistas.

De qualquer forma, se entendermos, como Ferenczi, que, "a lembrança (traumática) permanece imobilizada no corpo e somente pode ser despertada", isso não significa que necessitamos caminhar em direção a Reich e à sua análise do caráter, nem tampouco às terapias corporais contemporâneas. A psicanálise oferece-nos uma terapêutica competente, capaz de trabalhar a partir do corpo, sem precisar sair do seu setting tradicional, incluído o divã.

Basta nos lembrarmos de que a relação analista-analisando compõe, em primeiro lugar, dois corpos à distância, formando um campo de ressonâncias mútuas, um à escuta do outro, se entendermos que é preciso escutar com o corpo inteiro. Em segundo lugar, descreve todo o material mental, espiritual, que atravessa e constrói esse campo. Isso tudo compõe o que Ogden denominou terceiro-analítico; agora já podemos dizer que ele se constitui, primeiramente, pela ativação das memórias corporais de analisando e analista, através da transferência e da contratransferência.

É a partir dessa ativação que certas identificações projetivas, como a descrita no exemplo de Maria, podem ocorrer e ser incorporadas e decodificadas pelo analista. Nesta direção, havia afirmado, num artigo anterior: "O universo de pulsações, ressonâncias, que atravessa e constitui a relação analítica, produzindo - no nível mental - as redes associativas que formam os rêveries do analista e do analisando, advém das corporeidades aí implicadas.

O corpo está no cerne do processo psicanalítico, através das sua potência invisível, vibrátil e produtiva." Agora posso completar a afirmação, dizendo que esse universo de pulsações e ressonâncias designa o terceiro-analítico. A sua produção advém da potência invisível, vibrátil e produtiva das memórias corporais envolvidas no processo analítico e se desdobra nos elos associativos da segunda e da terceira memória, até atingir a forma verbal, passível de interpretação e de consciência.

Nesta direção, também é possível afirmar que é deste terceiro-analítico que advém toda a potência interpretante – no sentido de potência doadora de sentido – do processo psicanalítico. Citando, novamente, Ogden: "O terceiro analítico (...) torna-se um veículo por meio do qual pensamentos podem ser pensados, sentimentos sentidos, sensações vivenciadas, experiências estas que só existiam até então potencialmente para cada um dos indivíduos que participam nesse processo psicológico-interpessoal.

" Processo que se define como um sistema de trocas inconscientes, onde a interpretação tem a função de assinalar lugares psíquicos, distribuindo o que é de cada um, a partir de um terreno comum, semeado e colhido. Ou como um movimento que circula por variados sistemas de traduções e transcrições, partindo das marcas invisíveis e aterrorizadoras do trauma e podendo atingir os devaneios mais sublimes. Com toda essa riqueza, a psicanálise desafia, até hoje, os seus intérpretes. Nesse leque múltiplo, Thomas Ogden ocupa um lugar especial e constitui uma nova fonte de inspiração.

Alfredo Naffah Neto
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