Sobre a Psicofarmacologia

Ariel Bogochvol[1]

 

 

Este trabalho é produto de uma síntese de 2 trabalhos que apresentei  sobre o tema genérico das relações entre Psicanálise e Psiquiatria, acrescido de alguns desenvolvimentos novos.O primeiro foi publicado no Correio da Escola Brasileira de Psicanálise n.12 de agosto de 1995 e o segundo no Boletim de Novidades da Pulsional n.99 de julho de 1997.Pretendo,basicamente,desenvolver algumas considerações sobre a psicofarmacologia,sua importância no mundo contermporâneo,a revolução que provocou e discutir algumas articulações que podem ser feitas no tocante à relação entre psicanálise e psicofarmacologia.

 

Introdução

            O desenvolvimento da psicofarmacologia é um dos fatos mais marcantes da modernidade.

A introdução da clorpromazina por Delay e Denicker em 1952 foi o momento de fundação da moderna psicofarmacologia e o marco inicial de uma revolução que afetou primeiramente a terapêutica, a clínica psiquiátrica e as  neurociências e que acabou por afetar o conjunto das ciências e a visão que o homem tem de si mesmo.

Seria necessário retomarmos os passos desta progressão, que transformou um tema clínico sucessivamente em fundamento de um conjunto de ciências,em corte epistemológico, em ontologia e,por último,em uma cosmovisão,para diferenciarmos os planos em que ela ocorreu.

Pois a psicofarmacologia é simultaneamente um fato da clínica,da ciência,da epistemologia,da ideologia,da mídia,da economia,da metafísica e da ética e em torno dela gravitam e se entrelaçam discursos de fundamentos e consequências variados e se colocam algumas das questões mais fundamentais do pensamento contemporâneo.

Impossível, para qualquer discurso atual, permanecer alheio e ignorar os desafios que lhes são lançados pela psicofarmacologia,pelas neurociências e,de forma mais extensa, pela biologia. Como afirma Luc Ferry no livro         A Sabedoria dos Modernos-Dez questões para o nosso tempo,em um tom um tanto retumbante: “...se as pretensões da neurobiologia se revelassem consistentes, toda a visão da humanidade ficaria mudada- a tal ponto que as ciências humanas,a começar pela psicanálise,mas tambem a filosofia clássica,não poderiam mais continuar a falar da loucura,da ética ou da liberdade como fazem hoje.” [2]

 

Fato da Mídia, da Economia, da Ideologia, da Política

A psicofarmacologia e as neurociências são ,em primeiro lugar, um fato da mídia. Diariamente somos informados do lançamento de substâncias capazes de tratar os mais variados males e da descoberta de suas causas: impotência, depressão, euforia, bulimia, anorexia, delírio, alucinação, angústia, medo, obsessão,  desamparo...,a lista é extensa e continuamente renovada.

As novidades são lançadas com grande alarde pelos laboratórios e centros de pesquisa, amplificadas pela imprensa, defendidas pelos especialistas e tem extensa repercussão: “descoberta a cura da depressão!”, “método revolucionário para o tratamento da esquizofrenia!”, “remédio resolve problemas de timidez!”, “acabe com a impotência!”

            Atividades ligadas à biologia,à neurobiologia e à psicofarmacologia são florescentes tanto em termos científicos como em termos econômicos. Bilhões de dólares são gastos em pesquisas, desenvolvimento de tecnologias, testes, divulgação e marketing.Uma ampla rede envolvendo universidades, centros de pesquisa, laboratórios, indústria farmacêutica e outras empresas trabalha em cooperação,emprega milhares de pessoas em todo o mundo e é responsável pela produção de um dilúvio de dados e informações[3].

As informações se difundem e passam a fazer parte do senso comum, do sistema de crenças partilhadas,como verdades cientificamente provadas. São assimiladas sem qualquer crítica e se reproduzem no meio social que as trata com espanto,reverência e banalização.

É parte do senso comum contemporâneo a idéia de que várias formas de sofrimento,de mal estar,de distúrbios psíquicos, são causados, tratados e curados biologicamente,que já conhecemos o modo de funcionamento de nossos cérebros e mentes e que a ciência já teria descoberto ou estaria prestes a descobrir as razões últimas da normalidade e anormalidade do homem.

A opinião consensual contrasta fortemente com a opinião de alguns clínicos,cientistas e filósofos. John Searle,por ex,entende que é escasso o conhecimento que temos do cérebro humano e que as pretensões de certas teorias são proporcionais ao tamanho desta ignorância.Cita o neurologista David Hubel,para quem “o nosso conhecimento do cérebro encontra-se num estado muito primitivo.Enquanto para algumas regiões desenvolvemos uma espécie de conceito funcional,há outras acerca das quais se pode dizer que estamos no mesmo nível de conhecimento em que nos encontrávamos relativamente ao coração antes de nos darmos conta de que ele bombeava sangue”.[4]

            O otimismo reinante,crédulo em relação ao saber e ao poder da ciência, contrasta fortemente, tambem, com o incremento do mal estar na civilização. Em torno de ilhas de prosperidade e felicidade proliferam os continentes de miséria e penúria,as massas famintas e em guerra,os racismos,a segregação e os fundamentalismos de toda a espécie, a recessão e a depressão da ordem globalizada.

 

A Biologização e a Psiquiatrização

A euforia associada às neurociências e à biologia é correlativa de uma marcante biologização do homem. Para os defensores mais radicais do biologicismo que se instalou no pensamento moderno a natureza humana se reduz à sua estrutura biológica,o mal estar que a afeta  é explicável biologicamente,seu tratamento é biológico e tudo isto já estaria definitivamente comprovado pela ciência. Esta posição extrema “...pretende encontrar na infra-estrutura genética os motivos últimos de nossos comportamentos,desviantes ou não,e até de nossas opções morais e estéticas”.[5]

Termos derivados e da psiquiatria se tornaram parte da linguagem cotidiana: “sou um deprimido”,”estou deprimido”,”tenho um T.O.C, “me falta lítio no cérebro”, “tenho síndrome do pânico” são expressões ultilizadas pelos pacientes e pela população em geral,representativas do modo como o homem comum se apreende a si mesmo.

Associada à biologização há uma psiquiatrização da vida social que, partindo do “homo biologicus”,transforma seu mal em doença mental, sua doença em fato biológico puro e que conduz, como consequência, a uma despolitização e a uma desresponsabilização generalizadas.Há uma alienação do homem em relação a si mesmo e ao seu destino,como se o seu mal lhe fosse alheio, já que inscrito em seus genes e circuitos neuronais.

Estamos em uma era em que a biologia tornou-se ciência-mestra e base para uma série de posições para-científicas e totalizantes.O biologicismo e o psiquiatrismo são sub-produtos do discurso científico e oferecem uma nova modalidade de compreensão do homem, reduzido,finalmente, ao seu estado natural.Apesar de seu materialismo,é inevitável sua associação à direita política, quer em função de sua posições inatistas, que resvalam facilmente na eugenia, quer em função de sua filosofia naturalista que aponta a natureza como “causa do mal” e ,dentre eles ,da desigualdade e da diferença entre os homens.

            Mas as neurociências e a psicofarmacologia são, antes de mais nada, um fato científico e um fato científico de tal relevância que não pode ser obscurecido pelos usos políticos, ideológicos, filosóficos, morais, metafísicos que fazem de seus resultados. É necessário diferenciarmos a ciência e a pseudociência que se produz em seu nome.

 

História da Psicofarmacologia

            Desde tempos imemoriais sabe-se que substâncias químicas introduzidas no corpo podem modificar estados psíquicos. Alcool, ópio, haxixe, cocaina, alucinógenos... foram usados largamente na história, pelas mais diversas civilizações associados `as práticas de cura, de união com os deuses e com o sagrado, de revelação e `aquelas puramente hedonistas.         “O serviço prestado por estas substâncias na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão apreciado como um benefício que tanto indivíduos quanto povos lhes concederam um lugar pemanente na economia de sua libido”.[6]

Esta farmacopéia do espírito não parece,de forma alguma,ter convidado religiosos, filósofos e cientistas a se interrogarem sobre os ensinamentos que dela podiam ser tirados para a compreensão da vida mental.[7]  É preciso esperar o sec XIX para que um alienista,Moreau de Tours,coloque,à propósito do haxixe,o problema da relação entre certas formas de alienação mental e os efeitos psíquicos de uma droga.

            Em 1860,o químico alemão Albert Nieman extraia da folha de coca seu alcalóide,a cocaina,comercializada 20 anos depois, e suas propriedades estimulantes e efeitos terapêuticos sobre a dependência morfínica eram comprovados. Freud que, durante muito tempo, autoprescreveu-se cocaina, escrevia em 1884:... “a cocaina parece convocada a preencher uma lacuna no arsenal dos medicamentos de que a psiquiatria dispõe.(...) É por isto que se recomendou a coca nos estados de enfraquecimento psíquico mais diversos,para combater a histeria,a hipocondria,os distúrbios da melancolia,o estupor,etc”[8].

Uma substância específica era capaz de tratar vários quadros psiquiátricos.

            A descoberta,nos anos 30,das propriedades alucinógenas da mescalina,alcalóide extraido de um cacto e depois,alguns anos mais tarde,de um produto de síntese ,o LSD, abriu caminho para um estudo comparativo com as alucinações patológicas,estabelecendo-se o modelo das psicoses experimentais.Produtos quimicamente bem definidos eram capazes de provocar anomalias precisas e limitadas da vida mental.[9]

            Estabelecia-se,com firmeza, a relação entre a ultilização de certas substâncias e a produção ou cura de certos estados mentais e a semelhança entre os quadros mentais naturais e aqueles causados por estas substâncias.        

É interessante notar como um mesmo produto podia ser classificado,em função da época e do lugar,ora como um remédio ora como uma droga ou tóxico. A substância passava de uma categoria a outra.Há um século a heroina era um remédio contra a tosse e a coca era vendida livremente como psicoestimulante.O LSD já foi proposto como auxiliar de psicoterapia e a maconha , proibida na maior parte dos paises, é liberada para uso médico em alguns estados dos EUA e para uso recreativo nos Paises Baixos. Recoloca-se aqui o problema do Pharmakon, introduzido por Platão,substância que porta em si a capacidade de funcionar como veneno e como remédio[10].     

            Pode-se dizer que antes da descoberta dos medicamentos psicotrópicos propriamente ditos,os psiquiatras não estavam totalmente sem recursos. Faziam uso,com um certo sucesso,dos opiáceos ( como o láudano ) para tratar determinadas formas de melancolia,do cloral para acalmar e adormecer,dos barbitúricos como hipnóticos e contra a epilepsia e apelavam tambem para o eletrochoque ainda hoje eficaz para o tratamento de vários quadros psiquiátricos.[11]

 

A Revolução Psicofarmacológica

Em 1952, Delay e Deniker relataram o sucesso obtido no tratamento de um paciente psicótico com a clorpromazina,substância ultilizada inicialmente por Laborit para obter uma hibernação artificial durante a anestesia e que apresentava propriedades e características singulares como atenuação/ cessação de delírios e alucinações,lentificação psicomotora e indiferença afetiva sem prejuizo das funções cognitivas. Nascia a classe dos antipsicóticos,os neurolépticos, e a psicofarmacologia moderna.

            No mesmo ano, Zeller e Selikoff relataram suas observações acerca da iproniazida,substância ultilizada no tratamento da tuberculose e que produzia melhora do humor e sensação de bem estar independente de sua ação bacteriológica e nascia o primeiro antidepressivo do grupo IMAO.

No final da década de 50,Kuhn,pesquisando efeitos antipsicóticos da imipramina, substância estruturalmente semelhante à clorpromazina,descobria seus efeitos antidepressivos, fundando o grupo dos antidepressivos tricíclicos.

Em 1960,com o clordiazepóxido iniciava-se a era dos benzodiazepínicos que substituiam com grandes vantagens os barbitúricos no tratamento farmacológico dos estados de ansiedade.

Na década de 70 ocorria a difusão do uso de sais de lítio  e de medicações inicialmente ultilizadas na epilepsia(carbamazepina,ácido valproico) como estabilizadores de humor.

Nos anos 80 eram lançados ou relançados os neurolépticos chamados atípicos e uma nova classe de antidepressivos, os ISRS(inibidores seletivos de recaptação de serotonina).[12]           

Nos anos 90 proliferaram os ISRS e foram lançados os IRSN(inibidores de recaptação de serotonina e noradrenalina) e os ISRN(inibidores seletivos de recaptação da noradrenalina).

A moderna psicofarmacologia é feita,portanto, de medicações antipsicóticas, antidepressivas,ansiolíticas,estabilizadoras do humor e anti-epilépticas, distribuidas em vários grupamentos químicos com seus protótipos.

A extensão do uso provou que elas não eram tão específicas quanto se imaginava inicialmente e,apesar de permanecer vigente a classificação por  finalidades terapêuticas básicas,elas se modificaram sensivelmente, se ampliaram ou confluiram. Assim,verificou-se que os antidepressivos tratavam mais eficazmente alguns distúrbios ligados à angústia (síndrome do pânico,por ex) do que a maior parte dos ansiolíticos;verificou-se que os neurolépticos podiam ser ultilizados em transtornos impulsivos ou em doenças pertencentes ao espectro obsessivo compulsivo(Gilles de la Torrete, por,ex);verificou-se que algumas medicações antiepilépticas podiam ser ultilizadas para tratamento e prevenção de transtornos de humor ou afetivos...

A maior parte das descobertas fundamentais da psicofarmacologia decorreu de observação clínica ou se deu por acaso,como um achado, precedendo em muitos anos os modelos teóricos destinados a explicar seus efeitos.Somente no final da década de 60 surgiu o modelo da neurotransmissão cerebral e o modelo da ação farmacológica, sugerindo que os psicofármacos agiam ou nos neurotransmissores ou nos neuroreceptores ou em ambos.

A revolução psicofarmacológica que,em torno de 10 anos, modificou o cenário da terapêutica estava,por um lado, em estreita continuidade com o período anterior já que prosseguia as pesquisas destinadas a decobrir ou sintetizar substâncias capazes de modificar o estado psíquico.A descontinuidade se produziu nos métodos, profundamente transformados pelo desenvolvimento vertiginoso das neurociências catalizado pelos psicotrópicos.

 

A Neurotransmissão e a Ciência

Com a formulação do modelo da neurotransmissão,a Psiquiatria passava,finalmente, a partilhar com o conjunto da medicina os mesmos esquemas referenciais e acedia a um estatuto científico. Conhecidos nos planos da ação molecular e da neurofisiologia dos transmissores e receptores, os psicotrópicos provocavam uma reinvenção da clínica e da terapêutica.

Neurotransmissão é um termo que designa tanto a transmissão do impulso nervoso ao longo dos circuitos neuronais como as estruturas e dispositivos necessários à sua efetuação.[13]Cada neurônio recebe sinais pelos seus dendritos,os processa em seu corpo celular e emite um sinal através de seus axônios para o próximo neurônio da linha.Tal emissão consiste em enviar um impulso elétrico  que se propaga como ondas de despolarização ao longo da membrana celular até os terminais do axônio.

Entre o axônio e os dendritos de outro neurônio há um espaço de descontinuidade denominado sinapse,que consiste basicamente em uma saliência com a forma de um cogumelo no axônio que se encaixa próximo a uma protuberância do tipo dorsal na superfície do dendrito.A área entre o botão e a superfície dentrídita pós-sináptica é a fenda sináptica,e quando o neurônio descarrega,o sinal é transmitido através dela.

A transmissão do sinal não é feita por uma ligação elétrica direta entre o botão e a superfície dendrítica mas pela liberação de pequenas quantidades de fluidos denominados neurotransmissores.Estes neurotransmissores se ligam a receptores na membrana pós-sináptica e causam a abertura de “portões” que possibilitam a movimentação dos íons de dentro para fora do lado dendrítico acarretando uma alteração de sua carga elétrica.

O procedimento padrão é este: existe um sinal elétrico do lado do axônio,seguido por uma transmissão química na fenda sináptica que,por sua vez, é sucedida por um sinal elétrico do lado dendrítico.A célula absorve uma quantidade enorme de sinais provenientes de seus dendritos,faz uma síntese deles em seu corpo celular e,com base nesta síntese,ajusta o índice de descarga para as próximas células na linha.

                 neurotransmissores

/________/       /____________/ fenda    /__________________/         /______________

         neuroreceptores                       sináptica

 

            Temos,em nosso cérebro,bilhares de circuitos neuronais e trilhares de combinações interneurônicas,dispostos em redes eletroquímicas descontínuas que,em um jogo entre funções inibitórias,excitatórias e modulatórias, interagem e produzem um resultado absolutamente complexo, a mente.

Não deixa de ser surpreendente que nossa vida mental tenha como base a atividade de neurônios cuja função principal é apenas aumentar ou diminuir seus índices de descarga e que nosso destino se desenhe nestes microscópicos espaços de descontinuidade do sistema nervoso,a sinapse,a fenda.

 

Uma Teoria da Clínica e a Psiquiatria Biológica

            Os distúrbios psíquicos seriam provocados por alterações da neurotransmissão em determinadas regiões do cérebro: aumento ou diminuição dos neurotransmissores, maior ou menor disponibilidade dos receptores, interferências em suas relações recíprocas.

Estas alterações,por sua vez, poderiam ser provocadas por causas adquiridas - infecções, tumores,deficiências nutricionais, fatores psicológicos... ou por causas genéticas,as principais.

Neste caso, os genes determinariam, por vias ainda desconhecidas, o funcionamento cerebral e seus distúrbios e poderiam ser entendidos como a causa primeira,a causa das causas,como aquilo que acionaria o conjunto de eventos cuja resultante final seria o fenômeno psíquico e psicopatológico

O fenômeno psicopatológico é concebido,portanto, como produto de um distúrbio neurofisiopatológico tratável farmacologicamente.O sintoma expressaria no plano psíquico aquilo que é primariamente um transtorno da neurotransmissão cerebral, manifestaria em um registro aquilo que é alteração do outro.Temos uma concepção sináptica do distúrbio mental.

Assim,em um quadro esquemático,poderíamos colocar:

 

 

 

 

 

Alt/Neurotransmissão

Efeito Clínico

Tratamento

  Da dopamina no sist. Mesolímbico

Transtornos Esquizofrênicos

Neuroléptico:bloqueio dos receptores pós sinápticos

    Das  monoaminas cerebrais

Transtornos Depressivos

Antidepressivos:inibição da recaptação da serotonina ou da noradrenalina

 Dos sistemas           GABAérgicos

Transtornos de Ansiedade

Ansioliticos:potancialização do efeito inibidor do GABA

           

            Este é o esquema básico de orientação da chamada Psiquiatria Biológica que era, até há algum tempo, um ramo da Psiquiatria dedicado ao estudo dos fundamentos neurobiológicos da atividade psíquica e que se tornou,na atualidade, uma concepção abrangente da clínica.

            Apesar de ser apresentada como tal,a Psiquiatria Biológica não é um campo unificado: há objetos,métodos,concepções e resultados radicalmente divergentes. Parodiando Lacan,poderíamos dizer que A Psiquiatria Biológica não existe e que ,na verdade, existem discursos,disciplinas,ciências que tem como referente o biológico em variadas versões.[14]

Para os defensores do biologicismo,uma das concepções mais influentes da Psiquiatria Biológica,epistemologica/científica/“midiaticamen/ te”, o sintoma psíquico e o próprio psíquico, seriam causados biologicamente e deveriam ser pensados estritamente nesta dimensão.Não haveria qualquer razão para postularmos uma ordem propriamente psicopatológica ou qualquer autonomia da dimensão psíquica,já que elas seriam apenas epifenomênicas.

            Entre o psíquico e o psicopatológico haveria uma diferença que é  função de uma diferença puramente biológica . É a intervenção do biológico que pode transformar o psíquico em psicopatológico já que o psíquico,ele mesmo, não pode produzir nada, por ser apenas um produto.A causalidade nunca poderia ser psíquica,apenas extra-psíquica e neurobiológica.

            Os sintomas,as síndromes e entidades clínicas seriam,então, conjuntos epifenomênicos que se ordenariam apenas por laços de temporalidade,de simultaneidade e sucessão.Em lugar de uma lógica do psicopatológico, temos uma lógica baseada na ocorrência estatística de determinados eventos, que se propõe a ser uma razão pura, ingênua, não contaminada por teorias ou abstrações,sensível aos efluxos estatísticos da realidade clínica.

Estas concepções nortearam em grande parte a organização das nosografias contemporâneas(o CID 10 e o DSM IV),que, ironicamente, são apresentadas como ateoréticas,,denegando,assim, seus próprios pressupostos.

            Temos,de qualquer forma,uma “teoria completa” da clínica que articula coerentemente causa biológica,mecanismo fisiopatológico,manifestação sintomática e tratamento.

Existe,neste modelo, a proposição de uma sequência causal determinística,verificável empiricamente: há causas que causam causas que causam efeitos. Ou,dito de outro modo:

          a             b           c              ...  y    onde a é a alteração genética,b é a alteração da neurotransmissão e y o evento psíquico.

O modelo é bem simples,tem fecundidade heurística, possibilita o entendimento de vários fenômenos e sua validade pode ser demonstrada à partir de sua aplicação aos fenômenos psiquiátricos e ao problema da eficácia dos psicofármacos.

Podemos caracteriza-lo,sinteticamente,como ontologicamente materia/ lista, fisicalista, monista, reducionista e eliminativo.[15]

 

Aporias de uma Psiquiatria sem Psiquismo

O ponto fraco desta concepção e dos modelos que ultiliza reside no fato de que ela parte de uma aporia: afirma e nega simutâneamente o elemento psíquico.

A sequência causal postulada parte de um evento biológico(alteração genética,alteração da neurotransmissão) e chega a um estado psíquico (o sintoma),dotado, aparentemente,de propriedades diferentes do evento biológico.A diferença,no entanto,não é tratada. Passa-se por cima da própria formulação, nega-se o ponto de partida e a questão que deveria ser resolvida.

Como se relacionam,de fato e de direito, os registros neurofisio/ patológicos e psicopatológicos? Como alterações da noradrenalina ou da serotonina podem causar o delírio de culpa do melancólico? Como alterações da dopamina podem produzir o delírio esquizofrênico? O automatismo mental? Que relações podem haver entre os rituais obsessivos e os sistemas GABAérgicos? Ou com os ataques de pânico? Ou com os quadros conversivos e dissociativos? Como alterações quantitativas podem produzir modificações qualitativas? Como um fenômeno biológico pode produzir um fenômeno psicológico? Como um corpo pode produzir o psíquico e o psicopatológico?

São questões,obviamente,fundamentais e para as quais não há respostas consistentes. São, até certo ponto as questões iniciais,ou seja, retomam o perene e ancestral problema mente-corpo  não mais pelo viés da filosofia ou da religião,mas da clínica e da ciência.

Trata-se de tentar captar,no plano do encadeamento causal proposto, o momento em que o fenômeno fisiopatológico se transforma em um fenômeno psicopatológico. Momento terminal do encadeamento causal,o fenômeno psicopatológico representa um ponto de ruptura que se dá em um plano que é primariamente psíquico.É em uma trama psíquica,em meio às representações, cognições,afetos,impulsos,recordações e desejos,em uma subjetividade enfim, que o psicopatológico faz sua irrupção.

Como coloca J.Searle: “não temos qualquer ideia de como os processos cerebrais,que são fenômenos objetivos publicamente observáveis,poderiam causar algo tão peculiar quanto estados internos qualitativos de ciência e sensibilidade,estados que são,em um certo sentido,particulares àqueles que os possui.(...) Como fenômenos privados,subjetivos e qualitativos poderiam ser causados por processos físicos ordinários, tais como as descargas neuronais eletroquímicas que ocorrem nas sinapses dos neurônios?Como o cérebro transpõe o obstáculo, passando da eletroquímica ao sentimento?”[16]

O fenômeno psicopatológico é tanto um ponto de ruptura na trama da existência de um sujeito como tambem na própria sequência dos fenômenos biológicos que seriam sua causa.Há claramente um hiato entre aquilo que é a causa e aquilo que é o efeito,algo rateia.

Esta vertente da psiquiatria biológica tenta resolver a questão desqualificando,de entrada, um dos termos.Propõe uma explicação reducionista e eliminativa de uma descrição em nada reducionista e que tem de ser, necessariamente, seu ponto de partida.[17]

Em seu projeto mais radical,o reducionismo  “tenta explicar os fenômenos reduzindo-os às suas partes.(O comportamento pode ser reduzido às suas bases biológicas)[18]. As bases biológicas da conduta podem ser reduzidas aos movimentos dos músculos e à secreção das glândulas,o que,por sua vez,é resultado de processos químicos.Estes processos podem ser compreendidos a partir das mudanças das estruturas moleculares,que,por sua vez,reduzem-se a mudanças das relações dos átomos no nível molecular e que se expressa em índices matemáticos.A extensão lógica do reducionismo permite expressar o comportamento do homem em conceitos matemáticos” .[19]

Como afirma Bento Prado Jr :“(...) o temor de incidir em um dualismo metafísico leva a admitir que o acolhimento e compreensão dos fenômenos mentais implica a afirmação da existência de entidades não físicas “ao lado” do mundo físico. A confusão conceitual consiste em supor que a decisão quanto ao estatuto do sujeito ou da consciência está condenada a oscilar e escolher entre dois e apenas dois polos.(...) que teríamos de optar entre o materialismo reducionista e o dualismo metafísico”.[20]

Neste sentido,esta versão da psiquiatria biológica autorizou-se a confundir níveis e ordens que continuam a ser diferentes e só podem ser conhecidos em sua especificidade ou em sua autonomia relativa separadamente.Tentou anular  a emergência ,que é o surgimento neste ou naquele nível de complexidade de um fenômeno novo e único, causado mas não explicado totalmente pelo nível de complexidade inferior (segundo a máxima “se o superior vem do inferior,dele se distingue efetivamente”).Como obervava Lucrécio,podemos rir sem sermos formados por átomos ridentes ou podemos filosofar sem sermos formados por átomos filósofos. [21]

É notável observar como esta vertente,tentando escapar de um dualismo metafísico e adotando um materialismo reducionista, acabou por produzir uma psiquiatria bem eficaz, sustentada em um cérebro sem psiquismo,sem mente,sem mundo,sem sujeito,esvaziado.

É casual o fato de assistirmos,ao lado dos sucessos terapêuticos, uma degradação da clínica, substituida por entrevistas padronizadas,pela lista de sintomas,pela proliferação dos diagnósticos e das polifarmacoterapias?

Contrapondo-se a esta posição, colocam-se os idealistas,os mentalistas, os humanistas, os religiosos/espiritualistas,os psicanalistas e todos aqueles que, situando-se como materialistas no sentido ontológico,adotam uma perspectiva  emergentista, entendendo a mente  e/ou como um produto emergente da atividade cerebral, e/ou como produto do encontro de um cérebro com as formas histórico-sociais da existência do homem e/ou de seu encontro com o Grande Outro/A[22].

 

 

 

 

A Psicanálise Questionada

Para além de suas aporias, a psiquiatria biológica promoveu uma revolução na Psiquiatria, na clínica,na terapêutica,nos métodos,na ética,no ensino,afetando globalmente os discursos e disciplinas que a compõe.

Para seus defensores mais radicais,a velha ordem psiquiátrica construida por gerações de pensadores,psiquiatras, psicólogos,psicanalistas e neurologistas ao longo dos séculos XIX e XX teria sido soterrada.A nova ordem,baseada nas neurociências e na eficácia dos psicofármacos, teria recolocado,enfim, a Psiquiatria em seus eixos, intrinsecamente biológicos.O próprio termo psiquiatria biológica já não seria mais que uma redundância.

Disciplinas filiadas às chamadas ciências humanas,psicológicas, históricas,antropológicas nada teriam a dizer sobre estes eixos e são duramente questionadas quanto à legitimidade de sua pertinência ao campo clínico.É como se o desenvolvimento das neurociências implicasse no desaparecimento de outras disciplinas ou como se as neurociências trouxessem a prova material da falácia destas disciplinas.

As neurociências são apresentadas como se pudessem oferecer,ao mesmo tempo,as provas afirmativas da veracidade das posições da psiquiatria biológica e as provas negativas para a refutação de todas as outras disciplinas.Ocupam um duplo papel,empírico e metacientífico.

A Psicanálise, em particular,é um dos alvos preferidos desta ofensiva e anuncia-se,mais uma vez na história, sua morte,sua desaparição. Se os modelos biológicos podem explicar a psique e a psicopatologia e, se através dos psicofármacos,pode-se tratar eficazmente os transtornos psíquicos,que lugar resta para a psicanálise?

Há debates acalorados amplamente ultrapassados.Aquele que opõe regularmente neurociências e psicanálise ou psiquiatria e psicanálise,em uma relação de anulação ou de exclusão recíproca, não oferece mais ,na verdade,muito interesse,exceto para estes tipos de exercício de discussão que,com seu rumor,obscurecem as questões verdadeiras.[23]

A Psiquiatria é um campo de saber,i.é. um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos,mais ou menos organizados sistematicamente, passíveis de serem transmitidos.É produto da concorrência de  disciplinas, ciências,discursos díspares e contraditórios - psicopatologia, psicologia, neurologia,neurofisiologia,neuropsicologia,antropologia,cibernética biologia molecular, psicanálise...- que gravitam em torno do fenômeno psicopatológico.A reunião disto tudo é um imenso mosaico,um quebra cabeças.[24]

A Psicanálise,enquanto modo de investigação dos processos mentais,método de tratamento baseado nestas investigações e conjunto de teorias psicológicas e psicopatológicas em que são sistematizados os dados introduzidos a partir da investigação e tratamento[25], pertence,evidentemente, ao campo clínico.Ela se aplica à psiquiatria e estabelece com os discursos e disciplinas que a compõe relações das mais díspares.

Obviamente há imensas zonas de disjunção e conjunção entre estas disciplinas.Querendo ou não,aceitando ou não,os analistas e os neurocientistas são obrigados a se posicionar tanto em relação às questões fundamentais suscitadas na psicanálise pelas neurociências/biologia como pelas questões suscitadas nas neurociências/ biologia pela psicanálise, mesmo que seja para dizer que não há qualquer questão que possa ser tratada simultaneamente por ambas.

 

O Corpo e o Aparelho Psíquico

Os psicanalistas são confrontados,inicialmente, com a noção de corpo/cérebro trazido pela ciência contemporânea. Para alguns,estas noções da biologia não lhes dizem respeito e seriam absolutamente exteriores à psicanálise. Para outros,elas estariam situadas no limite ( entendido como fronteira ou como ponto extremo[26] ) do campo psicanalítico  e deveriam, portanto, ser abordadas psicanaliticamente.

Freud,desde o início  até os desenvolvimentos mais tardios de sua obra, não ignorou o lugar do corpo e a função que poderia ser concedida ao biológico e ao químico no movimento da sua especulação.[27]

Participou,intensamente,do ideário de sua época, cientificista e naturalista[28].Tinha intimidade com a pesquisa e a literatura biológica bem como a psiquiátrica.Suas referências a estas disciplinas são constantes e ultilizava com grande frequência seus modelos concreta ou metaforicamente. Considerou,em várias ocasiões, as teorias psicanalíticas como construções provisórias e precárias e acreditava que,talvez, o progresso da biologia pudesse resolver este estado de coisas.O Projeto de uma Psicologia Científica representa,de início, esta esperança e mostra que sua obra já começa com as tentativas e os fracassos da aproximação e com os dilemas e as contradições suscitadas pela relação psicanálise-biologia.

Em um de seus últimos textos, Esboço de Psicanálise, espécie de testamento,Freud escreve:“Só conhecemos de nossa vida mental duas coisas:seu órgão somático e o lugar de sua atividade,o cérebro ou o sistema nervoso,de uma parte, e nossos estados de consciência como dados imediatos,de outra parte”[29]

Seu aparelho psíquico se funda,inequivocamente, em um corpo biológico,mas dele se destaca.O modo de relação entre ambos é  problemático mas nenhum dos polos é negado,nem suas organizações específicas.Talvez os termos que melhor condensem esta forma de articulação sejam pulsão e apoio.

 Pulsão é “um conceito situado na fronteira entre o psíquico e o somático,como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente,como uma medida de exigência feita `a mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo”.[30]

É uma montagem  que reune quatro elementos díspares: a fonte (Quelle),processo somático que ocorre em um órgão ou parte do corpo, a pressão(Drang),seu fator motor,a quantidade de força ou a medida da exigência de trabalho que ela representa, a finalidade(Ziel) que é sempre a satisfação e o objeto(Objekt) ,a coisa em relação à qual ou através da qual a pulsão é capaz de atingir sua finalidade.[31] O resultado é uma verdadeira “colagem surrealista” como afirmava Lacan.[32]

Apoio é um termo que designa a relação primitiva das pulsões sexuais com as pulsões de autoconservação.As pulsões sexuais,que só secundariamente se tornam independentes,apoiam-se nas funções vitais que lhes fornecem uma fonte orgânica,uma direção e um objeto.[33]Esta relação é particularmente evidente na atividade oral do lactente.

Como escrevia Freud em 1905: “... a satisfação da zona erógena estava a princípio estreitamente associada à satisfação da necessidade de alimento.A função corporal fornece à sexualidade a sua fonte ou zona erógena;indica-lhe imediatamente um objeto,o seio;finalmente causa-lhe um prazer que não é redutível à pura e simples satisfação da fome,uma espécie de brinde de prazer”.[34]

Estas noções e conceitos trazem em si a marca de uma contradição[35] e não resolvem propriamente a questão da articulação entre o psíquico e o somático.Ao contrário,eles representam esta articulação paradoxal,são termos que nomeiam uma zona de ignorância.

A pulsão parte do somático,apoia-se no somático,torna-se pressão e apresenta-se no psíquico com um representante, podendo satisfazer-se com objetos variados.Neste movimento o corpo se apresenta mas é apenas representado dentre o conjunto de representações, diferente do que é em sua origem orgânica,ao nível psíquico.

Existe,então,o corpo suporte das funções corporais importantes para a vida no modelo das quais se opera o apoio,corpo da necessidade e,pelo viés deste brinde de prazer,deste lucro obtido à margem,encontramos o corpo erotizado e erógeno.

Não se trata de retomar toda a problemática do corpo em Psicanálise[36], mas de trazer alguns conceitos que evidenciam que não há,à princípio, uma contradição entre as noções de corpo oferecidas pelas neurociências e pela psicanálise,mas diferenças.De uma forma sintética, poderíamos dizer que a noção psicanalítica supõe e se apoia nas neurociências,mas dela se destaca.De um ponto de vista freudiano, poderíamos admitir,por ex, que os  psicofármacos agem na fonte(Quelle) e na pressão(Drang), o que resultaria em modificações da pulsão.

Seria necessário,por outro lado, que as neurociências incluissem em sua análise esse corpo erógeno e representacional apresentado pela Psicanálise(por ex,o corpo histérico).

 

Uma Introdução ao Outro

            As vertentes biologicistas apresentam o cérebro,a mente,o corpo, em uma dimensão estritamente biológica.Estes objetos passam por um processo de naturalização e são mostrados como outros fenômenos naturais. Para elas,no limite,esses “seres naturais” existiriam em um mundo natural, ordenado por leis naturais, biológicas.

A redução naturalista não deixa de evocar o mito bíblico de um paraiso onde o homem e a natureza seriam perfeitamente harmônicos.Neste Eden primordial,antes do pecado original,o homem era um ser natural,co-natural,sem qualquer diferença ou conflito com seu Unwelt.

O mito da gênese ultilizado,implicitamente, por esta concepção parte da co-naturalidade do homem e denega os efeitos produzidos, “após sua queda”, por sua inserção em um mundo cuja “natureza natural” é bem questionável.

Como afirma a Gênesis: (Então o Senhor) disse tambem à mulher: “Multiplicarei os sofrimentos de teu parto;darás `a luz com dores,teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio”.E disse,em seguida, ao homem: “Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer,maldita seja a terra por tua causa.Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de sua vida.”(...) E o Senhor Deus disse: “Eis que o homem se tornou como um de nós,conhecedor do bem e do mal”.[37]

  Expulsos do paraiso, estes seres se desnaturalizaram. A ingestão da “fruta proibida”,a fruta do saber,da ciência,da linguagem,o pecado original, desnaturalizou a mulher em sua relação ao sexo e à maternidade e o homem em sua relação ao sexo e ao trabalho. Para ambos tratava-se,então, de entrar/criar,sofrer/trabalhar em  um mundo humano “desnatural”.

Como coloca A. R. Luria, “o homem se diferencia do animal pelo fato de que,com sua passagem à existência histórico-social,ao trabalho e às formas de vida social a elas vinculadas,mudam radicalmente todas as categorias fundamentais do comportamento.A atividade vital humana é caracterizada pelo trabalho social e este,mediante a divisão de suas funções,origina novas formas de comportamento,independentes dos motivos biológicos elementares.(...) O segundo fator decisivo que determina a passagem da conduta animal à atividade consciente do homem é a aparição da linguagem(...) que levou ao surgimento de um sistema de códigos que, inicialmente ,designava objetos e ações e que,logo,começou a diferenciar as características dos objetos,as ações e suas relações  e que acabou por formar códigos sintáticos(e semânticos)[38] complexos.Este sistema teve uma importância decisiva para o desenvolvimento da consciência”. [39]

Se,na perspectiva darwinista,o homem está próximo de seus ancestrais símios e se partilha com os chipanzés 99% de sua carga genética,este 1% de genes que os diferenciam,esta pequena diferença quantitativa no plano biológico, pode traduzir-se em mudanças qualitativas fundamentais[40] e é nesta diferença que encontramos as condições biológicas de sua hominização.

Trabalhos etológicos mostram,por ex,que entre os macacos há sistemas de comunicação mas nenhuma estrutura de linguagem,hierarquizada.Que as habilidades que desenvolvem não são transmitidas.Que manipulam objetos mas são incapazes de confeccionar instrumentos e que estes rudimentos nunca são conservados.Que há condutas ritualizadas mas nunca cerimoniais e rituais.Que há limitações para o acasalamento consaguíneos,mas nunca proibições.Que não há culpa que acompanhe sus ações agressivas ou “transgressivas”.Que há percepção mas não reconhecimento de si próprio[41]

O processo de hominização implica,necessariamente,no encontro de           um corpo biológico/genético/organismo, com um universo estritamente simbólico,povoado de humanos.

É somente à partir de sua relação com os outros e com o Outro que o sujeito humano irá se formar.É no intercâmbio com seus semelhantes,em um universo regido pela fala,por leis simbólicas de trocas,proibições,prescrições, que este ser,seu cérebro, consciência e inconsciência, se constituem e que seu corpo ganha corpo.

Para Lacan, “os símbolos e o simbólico envolvem,com efeito,a vida do homem com uma rede tão total que conjugam,antes que ele venha ao mundo,aqueles que vão engendrá-lo pelo osso e pela carne que trazem no seu nascimento(...) e pelo desenho de seu destino,que dão às palavras que o farão fiel ou renegado,a lei dos atos que que o seguirão até onde ele não está ainda e para alem de sua morte mesma”[42]

O corpo está submetido à linguagem e,em consequência,ele se desnatura. Na criança,a libido é canalizada para certas regiões,as zonas erógenas à partir das demandas de seus pais e em função disso o corpo é subordinado à demanda do Outro,à linguagem,e suas diferentes partes tomam determinado sentido.O corpo é então desenhado,escrito por significantes, encravados para sempre na carne.A linguagem incide no organismo para produzir o corpo humano[43].

É à partir deste Outro que precede seu nascimento e que perdura após sua morte,que o sujeito deverá se constituir como homem ou mulher em relação à sua progenitura e descendência,em sua vida e na antecipação de sua morte,à partir de leis que que regulam as relações entre os sexos e as gerações.

O cérebro deverá oferecer as condições para que o processo de hominização se efetive, i.é deverá servir de suporte para a passagem do reino da natureza ao reino da cultura atravessada por todo sujeito em sua hominização.

Por isso deverá ser capaz de regular-se por este Outro,a Cultura,o Discurso Universal e de modificar-se à partir de suas relações sociais com os outros.É necessário que esta ordem se instale e que o cérebro apropriando-se dela se modifique para que possa finalmente nela se inserir .

À partir daí,tudo que lhe concerne,seus pensamentos,afetos, percepções,memórias,sensações,estarão indelevelmente marcados pelo simbólico.Seu corpo e seu cérebro,submetido a esta rede estará,em sua constituição biológica mesma,perpassado,atravessado,marcado definitiva/ mente por uma ordem diversa da ordem biológica.

As neurociências,a psicopatologia, a psiquiatria biológica e a psiquiatria podem prescindir desta dimensão?

 

A Superposição Clínica ou Sobre a Intersecção dos Campos

            Contra aqueles que afirmam que não há qualquer vinculação possível entre psicanálise e neurociências apresenta-se,soberana,a clínica.

            A clínica psiquiátrica,em qualquer de suas modalidades,é o ponto de articulação e a referência comum de todas estas disciplinas.Todas,sem exceção, tem de situar-se diante do psicopatológico, das esquizofrenias, paranoias,depressões,manias,histerias,transtornos ansiosos,do fetichismo... das neuroses, psicoses, perversões,

            A Psicanálise foi fundada à partir da clínica psiquiátrica,contribuiu intensamente para sua formação e foi ,de certa forma,a primeira teoria que conseguiu ordenar e explicar um vasto setor da clínica.Tornou-se,durante certo tempo e sob a denominação Psiquiatria Dinâmica ,uma concepção hegemônica da clínica.Na atualidade,a eficácia dos modelos neurobiológicos e dos psicofármacos coloca em questão suas teorias e seu método terapêutico.

            Os psicofármacos agem em praticamente todos os quadros psiquiátricos. Se tomarmos a classificação por finalidades terapêuticas – antipsicóticos, antidepressivos, ansiolíticos, estabilizadores de humor e antiepilépticos – podemos agrupar grosseiramente as condições clínicas em que atuam. ssim:

*AntipsicóticosÞ Esquizofrenias, Disturbios Delirantes, Episódios Psicóticos  

                  Agudos, Psicoses Orgânicas, Depressões com sintomas  

                  Psicóticos...

*AntidepressivosÞ depressões,ataque de pânico e transtornos de ansiedade

                     em geral (fobias,TOC...)

*Estabilizadores de HumorÞ Transtornos afetivos,bi ou monopolares.

*AntiepilépticosÞ epilepsias,transtornos impulsivos e transtornos afetivos bi 

                              ou monopolares

 

            O que há em comum em todos estes quadros e em seus fenômenos  típicos e característicos?

Pelo menos de um ponto de vista lacaniano podemos colocar que o  traço comum é o aparecimento no real de algo que,por alguma razão, não pode permanecer no plano simbólico.

O que é o real? Como afirma J.A.Miller “a pergunta mesma sobre sua natureza não convem ao real. O procedimento de definição busca uma verdade e precisamente o real não é da ordem da verdade.Ele deveria ser abordado à partir das respostas e não da questão”.[44]

Não é a ocasião para retomarmos a problemática do conceito de real na teoria lacaniana.Importa colocar que ele sofreu ao longo do tempo diversas mutações que alteraram profundamente seu sentido e lugar no corpo teórico.

Em um primeiro momento foi tomado como aquilo que se situava totalmente exterior ao campo analítico,impossível de ser abordado por ele.Em um segundo momento foi abordado sucessivamente como significado e como significante.E em um terceiro momento surge como algo que não é nem significante nem significado,um real outro que o sentido e o saber,totalmente heterogêneo à linguagem.[45]

Haveria,na psicanálise,tanto a experiência da linguagem como a do real,sob diversas modalidades.Sinteticamente,há fenômenos que obedecem a fórmula “estruturados como uma linguagem”e aqueles que escapam totalmente a este modo de organização.Em oposição aos primeiros,  chamados formações do Ics, J.D.Nasio propõe chamar os segundos de  formações do objeto a[46]

A expressão formações do objeto a permite agrupar em torno de um nome diversos produtos psíquicos que tem como características o fato de serem formações terminais que não resultam de nenhuma combinatória e que se apresentam na clínica como um fato compacto,na dimensão do fazer,do feito,particulamente sobre o corpo,como reais ou vindas do real.Implicam sempre em um gozo que é necessariamente inconsciente,indiferente à noção satisfação/insatisfação e autoerótico. [47]

A Depressão (uma hemorragia libidinal),a Mania (uma excitação mortífera),a Angústia (sinal e irrupção) e o Delírio e a Alucinação podem ser tomados como formações do objeto a, fenômenos em que há a percepção ou intrusão de um objeto que aparece no real ou que retorna do real.[48]Estes quadros,em sua disparidade, poderiam,então, ser agrupados, dentro da perspectiva adotado por J.D. Nasio, como formações do objeto a produzidas por forclusão.( com exceção da angústia)

Há uma notável superposição entre estes quadros,com seu modo específico de produção, e os quadros tratáveis farmacologicamente.Esta coincidência suscita diversas questões: os psicofármacos poderiam intervir no real? Poderiam modificar a experiência do real?Como abordar analiticamente os efeitos das medicações?

De um ponto de vista lacaniano poderíamos admitir,como hipótese, que os psicofármacos intervêm no real,que modificam a experiência do real e que  agem atraves da modulação do gozo.

 

A Psicofarmacologia e a Psicanálise

Quanto `a questão da eficácia dos psicofármacos os psicanalistas  adotam 4 posições básicas que podem ser resumidas em 4 afirmações dogmáticas:

a) “a psicofarmacologia  é um mito criado pela indústria farmacêutica”

b) “os psicofármacos são drogas e como tais produzem apenas estados de alteração de consciência ou estados de embriaguez”

c) “os psicofármacos agem, são eficazes, mas isto não tem qualquer importância para a psicanálise já que a psicanálise,por seus métodos e objeto,se distingue radicalmente da psiquiatria”

d) “os psicofármacos agem,são eficazes, e isto tem importância para a psicanálise,afetando seu campo que possui numerosas intersecções com a psiquiatria”.

            Pelo exposto anteriormente é evidente que adoto a posição d e entendo todas as outras como refutáveis e refutadas empiricamente.

            A posição a é indefensável já que a experiência clínica e as inumeráveis pesquisas científicas demonstram a eficácia dos psicofármacos.Ao abordar a psicofarmacologia como um mito esta posição cria um mito para seu uso próprio e se recusa a discutir as questões  suscitadas pela psicofarmacologia

A posição b fixa-se em uma equivalência entre a medicação e a droga recusando o avanço oferecido pela noção de Pharmakon,descrita anteriormente,que pode ser  tanto o remédio como o veneno. Se a droga visa o a mais,mais de prazer/mais de gozar, a medicação visaria o a menos,o menos prazer,a menor adptação.Esta posição acaba recusando um dos polos da tensão instaurada pelo Pharmacom.

A posição c entende que a psiquiatria e a psicanálise são campos absolutamente distintos,em sua problemática,objetos,métodos e que mesmo não negando a eficácia dos psicofármacos assume que esta questão não deve ser tratada pela Psicanálise.A superposição,evidente no campo clínico, coloca em suspeita esta posição.

            Parece-me evidente que as medicações agem e que isto tem um enorme interesse tanto para os psiquiatras biológicos quanto para os psicanalistas.Na verdade os psicofármacos são muito significativos para ficarem apenas nas mãos dos psicofarmacologistas.          Como afirma P. Fedida: “A pesquisa psicanalítica ganha mais,sem ceder em suas próprias exigências,em considerar a incidência dos novos psicotrópicos e em contribuir para a compreensão das mudanças que induzem, se não nos próprios processos,pelo menos em suas manifestações”[49]

            É cada vez mais comum a prática de co-terapia e do psicanalista, quando psiquiatra, medicar seus pacientes. São frequentes,portanto,os casos de pacientes que estão análise e que se ultilizam de alguma medicação.

Há,na clínica e na pesquisa,várias linhas de convergência e questões comuns.Cito algumas:

*Quais são os efeitos subjetivos concretos da introdução de um agente farmacológico?[50]

*Qual o papel e qual é a estrutura transferencial própria aos efeitos-placebo?[51]

*Quais são os efeitos do discurso biologizante sobre os pacientes?

*Como produzir a implicação subjetiva de pacientes que seriam desresponsabilizados pelo discurso biologicista

*Como manejar a transferência em situações de co-terapia?

*Como pensar a noção de sujeito à partir da ação dos psicofármacos?

*Como diferenciar os efeitos dos psicofármacos nos registros imaginário,simbólico e real?

*Como diferenciar o corpo nos registros real simbólico e imaginário?

*Podemos explicar os efeitos dos psicofármacos por uma ação na pulsão?

*Podemos explicar os efeitos dos psicofármacos por uma ação no gozo e no real?

 

            Para concluir, podemos dizer que,diante das questões suscitadas pela relação entre a Psicanálise e a Psicofarmacologia,seria necessário adotarmos uma postura de prudência e admitirmos a necessidade  de “uma espécie de pluralismo epistêmico que não implica qualquer tese metafísica;um pluralismo das formas de linguagem para a qual é possível falar significativamente,segundo registros conceituais diferentes,do mesmo mundo”[52]

            O debate continua...

 

NOTAS      

 


[1] Psiquiatra e Psicanalista- Médico Assistente Comissionado do Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP,Supervisor de Psiquiatras-Residentes e Membro da Escola Brasileira de Psicanálise Seção São Paulo

[2]A. Comte-Sponville,L.Ferry. - A Sabedoria dos Modernos, Martins Fontes São Paulo,1999

[3]Segundo a revista de divulgação científica  Galileu, um único laboratório envolvido no Projeto Genoma é capaz de produzir,por dia, um volume de informações 20.000 vezes maior do que as obras completas de Shekspeare!!!

[4] J. Searle- Mente Cérebro e Ciência- Edições 70-Lisboa,pg 13

[5] A. Comte-Sponville,L. Ferry – A Sabedoria dos Modernos – Martins Fontes 1999 ,pg 67

[6]S. Freud. - O Mal Estar na Civilização –Vol XXI da Edição Standard Brasileira –Imago Editora Ltda-1974

[7] D. Wildlocher – O Cérebro e a Vida Mental – Boletim de Novidades Pulsional,n 99

[8] S.Freud – Uber Coca – citado por D. Wildlocher em artigo supracitado

[9] D.Widlocher – O Cérebro e a Vida Mental – Boletim de Novidades Pulsional,n 99

[10] M.E.Costa Pereira – Psicanálise e Psicofarmacologia :Novas Questões de um Debate Atual- Boletim de Novidades Pulsional,n 99

[11] E. Zarifan – Os Limites de uma Conquista –Boletim de Novidades Pulsional,n 99

[12]T.A.Codás,R.A.Moreno – Condutas em Psiquiatria –Lemos Editora,1993

[13] Sigo,na descrição da neurotransmissão, J. Searle no livro O Mistério da Consciência-Editora Paz e Terra 1998

[14] ver livro o Mistério da Consciência em que J. Searle debate com vários autore as referências ultilizados pela psiquiatria biológica.

[15] Para definição destes termos consultar,por ex, A Sabedoria dos Modernos,pg 30

[16] J.R.Searle-O Mistério da Consciência,já citado

[17] Alguns autores entendem que o reducionismo seria um caráter contingente e não necessário dos modelos ultilizados pela Psiquiatria Biológica-ver,por ex,M. E. Costa Pereira em texto já citado

[18] O que está entre parênteses é acréscimo meu.

[19]Th. y Taylor –A Primer of Psychobiology. Brain e Behavior.NY 74,citado por  A.Comte-Sponville-em A Sabedoria dos Modernos já citado

[20] Bento P. Jr – Apresentação do livro O Mistério da Consciência,já citado

[21] A.Comte-Sponville- Sabedoria dos Modernos já citado

[22] A – Autre –O Grande Outro-  Lacan

[23] P.Fedida – A Química e o Psíquico- Boletim de Novidades Pulsional,n 99

[24] A. Bogochvol- Psiquiatria e Psicanálise –Correio da Escola Brasileira de Psicanálise –n.12

[25] Laplanche e Pontalis – Vocabulário de Psicanálise

[26] Aurélio B. de Holanda-Novo Dicionário Básico da Língua Portuguesa-1988

[27] P. Fédida- A Química e o Psíquico – Boletim de Novidades Pulsional,n. 99

[28] Durval M.N.Filho-Toxicomanias- Ed Escuta 1999

[29]S. Freud –Esboço de Psicanálise -Obras Completas Vol XXIII 

[30] S. Freud – A Pulsão e suas Vic issitudes – Obras Completas Vol. XIV

[31] idem

[32] J.Lacan-Os Quatro Coceitos Fundamentais da Psicanálise –Zahar Editore1979

[33] Laplanche e Pontalis- Vocabulário de Psicanálise- Martins Fontes Editora 5@ Edição

[34] S. Freud – 3 Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade – Obras Completas Vol VII

[35] Durval M.N.Filho –Toxicomanias- já citado

[36] Ver,por ex, a Metapsicologia Freudiana de Paul Laurent-Assoun onde discute o Corpo captado pela clínica,propõe uma metapsicologia do Corpo e tenta desdobrar a idéia do Corpo como função do Innconsciente

[37] Bíblia Sagrada- Edição Claretiana,1981

[38] O acréscimo é meu

[39] A.R.Luria –Pensamento e Linguagem-Artes Médicas-Porto Alegre 1987

[40] A. Green – Neurobiologia e Psicanálise –Corpo e Mente:uma fronteira móvel-São Paulo-Casa do Psicólogo,1985

[41] idem

[42] J.Lacan-Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise

[43] I. Gurgel- A Ginástica dos Significantes –na revista Correio n. 23 da Escola Brasileira de Psicanálise

[44] J.A.Miller – A Experiência do Real na experiência psicanalítica – Seminário Inédito-texto traduzido livremente

[45] idem

[46] J.D.Nasio – As Formações do Objeto a

[47] idem

[48] J.Lacan- As Psicoses -

[49] P. Fedida – O Químico e o Psíquico –já citado

[50] Mario E.Costa Pereira – Psicanálise e Psicofarmacologia –já citado

[51] idem

[52]Bento Prado Jr – Apresentação do livro o Mistério da Consciência já citado


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