Reflexões sobre a instituição psicanalítica na contemporaneidade

Ana Elizabeth Cavalcanti
Cármen Cardoso
Paulina Schmidtbauer Rocha

 

Trabalho para apresentação nos Estados Gerais da Psicanálise
Paris, Julho/2000

 

SITUANDO O CAMPO DE TRABALHO

Duas proposições já formuladas no âmbito do que foi escrito como convocação para os Estados Gerais da Psicanálise funcionaram, ao mesmo tempo, como instigação e enquadramento do trabalho.

A primeira, no texto de René Major "As Bases para os Estados Gerais da Psicanálise", que propõe debater "os problemas cruciais para o futuro da psicanálise, após a experiência de algumas gerações"; e instituir algo para além das "hierarquias, garantias e legitimidades em vigor", objetivando um confronto das instituições com a heteronomia e com aquilo que lhes é menos familiar.

A segunda, no texto de Elizabeth Roudinesco - Dix Propositions de Réflexions pour les États Généraux de la Psychanalise, quando interroga "quais serão as formas possíveis de uma instituição psicanalítica que a tornem capaz de resistir a essas duas derivações ...". As derivações a que se refere são a burocratização das grandes instituições e a divisão ao infinito de grupos que reivindicam legitimidade.

Sem perder de vista as provocações de Major e Roudinesco, que em última análise colocam em discussão a feição das instituições psicanalíticas na contemporaneidade, pretendemos pensar nas possibilidades de construção de instituições mais fraternas e democráticas e, simultaneamente, mais produtivas e criativas (tanto da perspectiva da clínica quanto da teoria) tornando-se imperativo pensar, também, nos entraves que, em seus trajetos, podemos identificar como resistência a essas práticas. Tomaremos como objeto de reflexão o projeto de formação da instituição à qual somos filiadas – o Círculo Psicanalítico de Pernambuco.

É necessário, inicialmente, circunscrever dois conceitos com os quais trabalharemos – o de instituição e o de organização.

Entendemos instituição como aquilo que funda e estabelece uma certa modalidade de relações sociais, definindo padrões de troca, produção e interação, dando sustentação à identidade de um grupo e afetando os valores e significações dos fatos e as experiências; e organização como a forma e o modo de operação de determinados dispositivos que dão concretude ao que é institucionalmente estabelecido, tornando realidade o projeto de um grupo e produzindo formas de gestão específicas para administrar a realização do projeto e dos vínculos que aí se constituem.

Em nossa convivência com instituições psicanalíticas percebemos que o conceito de instituição é freqüentemente confundido com o de organização. Costuma chamar-se de instituição o que é, de fato, a organização - uma sociedade, um instituto, etc, onde se materializam os princípios e propostas estabelecidos pela instituição. Entende-se, ainda, que essa instituição se representa em diversos níveis: o movimento psicanalítico, as escolas (de posições teóricas) que se desenvolveram em torno da produção sobre a psicanálise e, mesmo, os agrupamentos políticos que se têm constituído dentro do movimento.

Embora a mistura conceitual não tenha maior repercussão na dinâmica da vida institucional, fazer a distinção nos parece indispensável, porque é em torno desses conceitos que formulamos nossas hipótese, quais sejam:

Na elaboração dessas hipóteses tomaremos como referência, inicialmente, um eixo teórico sociológico a partir de posições de dois sociólogos contemporâneos (Ulrich Beck e Anthony Giddens) a respeito das sociedades pós-industriais e tradicionais. À luz dessa reflexão abordaremos as questões psicanalíticas considerando:

1º - nossa concordância com a posição de Joel Birman de que a produção freudiana pós-1920 pode ser entendida como uma crítica da modernidade e seus ideais civilizatórios, pondo em cena a questão da pulsão de morte de um modo que realça e dá uma nova relevância ao conceito de desamparo, tornando-o fundamental para a concepção das vicissitudes da constituição do sujeito psíquico e de suas relações com o mundo;

2º-algumas formulações freudianas: o mito de construção da civilização, apresentado em Totem e Tabu; a concepção do dinamismo dos grupos proposta em Psicologia de Grupo e Análise do Ego; as questões que afetam sua visão da modernidade, em O Mal Estar na Civilização; e as perspectivas sobre a psicanálise e a formação psicanalítica a partir de Análise Terminável e Interminável.

A articulação entre as hipóteses e esses posicionamentos teóricos apontados toma como referência empírica dois tempos do projeto de formação do CPP (Círculo Psicanalítico de Pernambuco), instituição a que somos filiadas.

UMA VISÃO SOCIOLÓGICA

Utilizamos, para delimitar o que chamamos de visão sociológica algumas caracterizações feitas por Beck e Giddens a respeito de três modelos de sociedade- a sociedade tradicional, a sociedade industrial e a sociedade pós-industrial (contemporânea).

Modelo de Sociedade

Características Marcantes

Sociedade Tradicional

Repetição, Continuidade, Ritualismo, Previsibilidade ("Dados")

Sociedade Industrial

Conhecimento e Controle ® Promessa de Felicidade, Previsibilidade (Técnica)

Sociedade Pós-Industrial

Sociedade de Risco, Oportunidade« Perigo, Futuro Incerto

O que se convencionou chamar de modernidade representa um movimento de rutura com os valores da sociedade tradicional, mas o processo de transformação não se constituiu por simples substituições, resultando que essas características não são sucessivas, mas simultâneas. A sociedade moderna rompeu a tradição e a recriou; destruiu a idéia de Deus (todo-poderoso, onisciente, subjugante) e reeditou-a, com variantes (o Estado, a Ciência).

Para Giddens, as sociedades atuais são afetadas pelo que ele chamou de modernização reflexiva, entendida como um processo em que cada nova modernização simultaneamente destrói outra e a modifica, num mecanismo contínuo de desincorporar formas sociais anteriores e reincorporá-las pelas novas formas sociais, numa dinâmica interminável que instala, ela mesma, o processo de transformação social, muitas vezes, silencioso, imperativo e compulsivo.

De certo modo, o conceito de atemporalidade (psíquica) também se pode aplicar na análise dos traços das sociedades contemporâneas: os impactos das várias formas de ordenamento social afetam o sujeito psíquico em modalidades simultâneas e mutuamente influenciáveis: expressões do mais radical tradicionalismo convivem em sociedades pós-industriais, onde as experiências de incerteza, de risco e de responsabilidade individual pela construção do futuro se colocam de modo acentuado.

O movimento psicanalítico, enquanto produção intelectual delimitando um específico saber sobre o homem e incluído, também, no sistema econômico pelo viés da prestação de serviços clínicos, é afetado pelos mesmos processos sociais. Não por acaso, podem ser identificados nos mecanismos de gestão das sociedades psicanalíticas e nas propostas para a prática da psicanálise, uma espécie de tensão permanente entre conteúdos que correspondem a formas sociais existentes fora do campo psicanalítico: tradição« destradicionalização; risco« conhecimento/controle; promessa de cura« cura impossível.

A PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

Quando supomos um modelo de instituição, como dissemos acima, que privilegia a posição instigante da incerteza e da pluralidade, estamos tomando como referência aquilo que foi possível produzir em psicanálise a partir de uma leitura do pensamento tardio de Freud.

Entendemos que embora possa parecer muito evidente que, em 1920, com a formulação do conceito de pulsão de morte, Freud coloca em questão seu projeto para a psicanálise, não é tão evidente que isso se tenha desdobrado em todas as vertentes do pensamento psicanalítico que o sucederam e, muito menos, nas práticas das instituições psicanalíticas, independente de suas filiações teóricas.

A psicanálise nasceu como um saber da modernidade. A hipótese do inconsciente foi produzida na quebra do discurso da tradição, em que se discutia a crença na existência de Deus, instaurando o homem, com suas produções, no centro do universo e produzindo substitutivos para as idéias totalizantes e universalizantes imbuídas dessa crença, tais como a imagem do "Deus" logos ou do "Deus" ciência e tecnologia, totens do iluminismo.

Até 1915-20 Freud sustentava o discurso de um projeto científico para a psicanálise, suportado na crença de que a ciência poderia promover o desenvolvimento e o progresso do espírito humano. Na proposta clínica havia, subjacente, uma promessa de cura e de resolução para os impasses existentes entre o sujeito e a cultura. Permaneciam, assim, em seu pensamento, os ideais da modernidade iluminista.

Só a partir de 20, quando se confronta com os limites de uma metapsicologia centrada num modelo representacional e formula a autonomia da força pulsional em relação ao campo da representação, é que abandona, pelo menos formalmente, o projeto científico. Estava assim, posta em questão a psicanálise enquanto ciência do determinismo psíquico, abrindo-se no discurso um lugar para o indeterminismo, o imprevisível e o irrepresentável.

Entendemos, como Birman, que nesse momento Freud abre mão dos ideais universalistas, até então presentes em seu pensamento e a figura do desamparo ganha um estatuto de conceito em sua obra, como alternativa para enunciar a posição de fragilidade estrutural do sujeito face aos sofrimentos que podem advir do próprio corpo (o mundo interno), das ameaças do mundo externo e dos relacionamentos humanos.

Nas sociedades tradicionais, reguladas pela religião e pela teologia, a condição humana espelhava-se num ideal de onipotência divina que, se por um lado, assujeitava o homem a esse ser onipotente, por outro, estabelecia a possibilidade de uma vida regulada por certezas e garantias.

Na sociedade moderna, a derrocada dos ideais onipotentes deixou o homem como que entregue à própria sorte, tendo que dar conta da sua vida e do seu futuro. O desamparo resulta, então, como conceito que fala, por excelência, da condição do sujeito moderno.

Se, num primeiro tempo, o sujeito freudiano perdia o amparo da tradição, continuava amparado por uma promessa de cura para o seu mal estar e de harmonia com os ideais civilizatórios. A psicanálise tinha esse tom salvador e assegurador que conserva até hoje em alguns discursos. No entanto, o sujeito do segundo tempo freudiano é marcado pelo desamparo de modo radical, precisando desenvolver meios para fazer face ao trabalho incessante imposto ao psiquismo pela força pulsional e seus efeitos traumáticos. É, assim, um sujeito sem garantias e sem certezas asseguradas, cuja existência depende de um esforço contínuo de criação e produção de sentidos.

É nesse segundo Freud, que vamos encontrar o pensador crítico da modernidade, revelando-se, de modo mais agudo, sobretudo através dos textos sobre a cultura, onde buscamos as principais referências para as questões que nos colocamos em relação à instituição.

O Mito Freudiano de Construção da Civilização

O mito construído em Totem e Tabu, fala da origem da civilização – a horda primitiva, indiferenciada, chefiada por um pai tirânico, todo-poderoso e dominador, único a diferenciar-se da horda, sobre a qual tinha total controle, ao mesmo tempo que exercia plena proteção.

Esse pai, representação máxima da potência e do excesso, tinha sobre os filhos, ao mesmo tempo, poder de vida e morte. Um dia, os filhos, unidos, se rebelam e assassinam o pai, instituindo, com o crime, a primeira sociedade que inaugura a civilização.

O banquete de celebração do novo poder (fraterno), pela devoração do pai, consolida a sociedade (comunhão entre os irmãos) e institui a figura do pai numa dupla vertente: o pai morto, representante dos ideais, valores, normas e leis, indispensáveis à civilização, recordado e evocado, presente como lembrança e nostalgia de um lugar impossível de ocupar; e o pai assassinado, perpetuado em sua dimensão brutal, despótica e violenta, conservado intacto (e incorporado) em sua onipotência; seu lugar, temido, é também intensamente desejado. Desejo que reedita, como fantasma, sua presença viva, simultaneamente ameaçadora e invejada.

A sociedade de irmãos se sustenta num acordo de solidariedade, fundamentado na interdição do lugar do pai e de outro assassinato. É, porém, um acordo que requer um trabalho incessante de renovação, sempre em confronto com a ameaça do desejo de onipotência e de retorno da violência. Também é possível admitir a possibilidade de que o desejo de onipotência de uns se associe à demanda de proteção de outros, pondo em risco o pacto de civilização.

Para Freud, a culpa pelo assassinato do pai, assim como a rivalidade fraterna e a inveja da onipotência paterna, jamais serão completamente resolvidas. A inveja preexistente ao assassinato tende a se exacerbar com o crime e a renúncia coletiva ao excesso pulsional é a única forma de evitar que se reinstale o caos anterior. Torna-se necessária, ainda, enquanto legado do pai morto, a sobrevivência de alguns traços da autoridade paterna - a demarcação hierárquica de lugares, o estabelecimento de alguns valores e regras e alguns limites que regulem as trocas.

Os Vínculos com o Líder

Talvez seja possível dizer que Psicologia de Grupo (Massa) fala de um outro mito – o do Grande Líder, uma espécie de reedição do chefe da horda. Analisando dois exemplos de massa (Igreja e Exército) Freud aponta que toda a estrutura de sustentação desses grupos está nos vínculos que unem cada membro do grupo ao seu líder; sem ele, a sociedade se esfacela.

Esse modelo, mítico enquanto representação de um tipo de chefe primário, de um grupo indiferenciado, aponta uma enorme fragilidade da sociedade entre pares. É o ideal narcísico (o poderoso Chefe das massas) que fascina a todos com a fantasia do amor interminável e igual para todos. Se confrontados uns com os outros, os irmãos sucumbiriam ao pânico e a desagregação; sem o líder, prevaleceriam a hostilidade, a aversão e a agressividade, evidências da narcísica intolerância à diferença.

A construção freudiana da psicologia dos grupos se desenvolveu sobre modelos de sociedades tradicionais (Igreja e Exército) e não dá conta da questão da liderança na atualidade em face da autoridade posta em questão. Ao mesmo tempo observa-se, nas sociedades contemporâneas, traços do processo apontado por Freud - ora uma freqüente nostalgia do grande líder, salvador e redentor, ora reações de hostilidade, aversão e intolerância às diferenças.

O Mal-estar na Cultura

O texto freudiano sobre o mal estar na cultura é uma declaração de desilusão com os ideais civilizatórios e, ao mesmo tempo, uma radical afirmação da tensão permanente entre natureza e cultura.

O desamparo, sinal ostensivo da fragilidade humana (em face às inesgotáveis fontes de sofrimento vindas de si mesmo, do outro e do mundo) é um marco da experiência contemporânea. Num mundo sem garantias e sem certezas asseguradas, a existência torna-se para o sujeito uma aventura de riscos insuportáveis e as soluções construídas para enfrentar o mal estar, sempre provisórias, não eliminam a ameaça do desamparo.

Segundo entendemos, Birman aponta duas saídas possíveis para a angústia frente ao desamparo: o masoquismo, opção pela submissão, uma "modalidade de subjetivação mediante a qual o sujeito se submete ao outro de maneira servil, seja de forma voluntária ou involuntária, pouco importa, para fugir ao horror do desamparo" (Fascínio & Servidão, pag 16); e a sublimação, uma forma de gestão do desamparo pela "tessitura de laços sociais e pela produção de obras no campo desses laços" (Mal-estar na Atualidade, pag. 132).

O conceito de gestão mais comumente utilizado, no campo do fenômeno organizacional, trata da escolha de opções possíveis para administrar a realização do projeto de uma organização, delimitando que essa escolha é sempre provisória e incompleta. Também no campo psíquico essa gestão seria da ordem do interminável.

Algo Interminável na Psicanálise

O último texto que escolhemos como referência para pensar a instituição psicanalítica tem, de certo modo, valor de testamento. Nele, ao falar das condições para conduzir uma análise, Freud argumenta que a formação de um analista depende dos resultados de sua própria análise e, portanto, daquilo que pode ser uma análise e do que se pode esperar de seus resultados.

Há nesse texto, dois Freud, em conflito. Um que fantasia um ideal de analista , que "deve possuir algum tipo de superioridade, de maneira que, em certas situações analíticas, possa agir como modelo para o seu paciente e, em outras, como professor" (pag. 282). Outro, que coloca o analista como sujeito da castração

Se para o Freud do puro ideal, a castração era um obstáculo intransponível, no outro discurso pode-se antecipar uma nova função da castração na constituição do sujeito psíquico, remetendo para o que, de cura, poder-se-ia esperar de uma análise: a possibilidade de destituição de posições narcísicas, a abdicação dos ideais de totalidade, de plenitude e de onipotência, a constatação dos frágeis limites do possível, no confronto incessante com os desejos que aspiram, com soberania, à impossível plenitude. A castração também põe em cena o desamparo

Se é a análise a via original no processo de constituir-se analista, é nesta mesma direção da cura que caminha a formação. A instituição também tem um papel a desempenhar neste processo, favorecendo um espaço de aprendizagem, de produção e de trocas, sem tentar ocultar a incompletude e o inacabamento da formação, ou criar alternativas de proteção à angústia do desamparo nas certezas dos preceitos técnicos, das regras práticas, das normas administrativas e dos regulamentos, deixando ao próprio analista a tarefa essencial de constituir seu reconhecimento.

O PROJETO DE FORMAÇÃO DO CPP

O CPP, instituição a que somos filiadas, como referimos acima, tem sido um espaço privilegiado de nossa experiência institucional e objeto permanente das reflexões que fazemos.

Tentaremos ilustrar, através de uma retomada (sintética) do seu trajeto, algumas de nossas hipóteses acerca das relações que podemos estabelecer entre os modos de gestão institucional e a feição que tomam as relações no âmbito da instituição. Como já explicitamos antes, entendemos que a gestão pode facilitar a construção de instituições mais fraternas e democráticas, em que as relações se constituem de modo mais simétrico e horizontalizado ou, ao contrário, sustentar práticas hierárquicas muito verticalizadas, em que os procedimentos burocratizantes cumprem um papel de denegar as tensões inerentes ao paradoxo instalado nos vínculos sujeito« instituição, instituição« psicanálise.

Nessa retomada fomos, inicialmente, capturadas pela fantasia de circunscrever dois períodos, claramente demarcados por pontos de ruturas.

O primeiro tempo seria o da instituição vista como espaço privilegiado da formação psicanalítica. Era um tempo de relações hierárquicas intensamente verticalizadas, com uma classificação dos sócios segundo as normas do CBP, sendo o trajeto de cada sócio traçado pelas normas institucionais (a escolha do analista para sua análise pessoal, as leituras, os seminários). Até a escolha das lideranças era determinada pelo CBP, sob a égide de um modelo centralizador, onde a construção do lugar de analista era garantida: bastava cumprir as normas estabelecidas e seguir o percurso programado (havia programas a cumprir). Junto com esse lugar, o título de analista e a promessa de um futuro bem sucedido.

Um nítido modelo de sociedade tradicional onde as certezas protegiam do confronto com o estranho, o diferente, o incerto, o indeterminado, com uma instância central, plena de poderes, respondendo pela solução das dificuldades.

Decerto, tomávamos como modelo a formação daquele analista idealizado por Freud durante longo tempo de sua obra, capaz de ser curado e terminar sua própria análise, oferecendo aos seus analisandos um projeto de cura e de análises bem sucedidas. Era possível, seguindo o caminho previsto, chegar ao "posto" de didata, cumprindo um ciclo de harmonia e crescimento institucional. O mito da sociedade harmônica, sem conflitos e tensões, mantinha-se preservado.

O segundo momento tem como marco a mudança de objetivo no projeto da instituição – da ênfase na formação para o compromisso com a produção no campo da psicanálise; a pertinência definindo-se pela produção individual e pelo reconhecimento entre pares.

Isso mudou radicalmente a organização e seus parâmetros de gestão e não foi sem traumas. A instituição deixou de ser um espaço assegurador; os lugares não mais estavam previamente formulados, cabendo a cada um a responsabilidade pelo seu próprio percurso e pela construção permanente de seu lugar de analista.

Assumimos, com dificuldade, que o projeto institucional resulta dos acordos estabelecidos entre os sócios. Antes de exercer sobre eles uma função normativa, os acordos sustentam um enquadramento institucional em que as tensões geradas no confronto sujeito« instituição e reforçadas, inclusive, pelo paradoxo instituição« psicanálise, jamais serão resolvidas ou ocultadas, sendo objeto de uma gestão permanente. Ficamos, todos sem exceção, sujeitos às ameaças do desconhecido e do risco de irrupção do irrepresentável. O impulso à criação tem que ser exercido como busca permanente, pois as formulações resultantes do esforço de elaborar essas tensões são sempre provisórias e parciais.

Rompíamos, com esse projeto, concepções tradicionais e mecanismos de gestão já consagrados, em troca de um futuro a inventar, ao mesmo tempo que nos aproximávamos das formulações tardias de Freud sobre o sujeito do desamparo; o legado do interminável marcando a rota da formação.

Constatamos aqui, que nessa primeira aproximação, nossa própria análise da história foi bastante tradicional, propondo uma clara distinção entre os dois tempos. Pudemos perceber depois, numa perspectiva mais matizada, relações bem mais complexas entre esses tempos e, mais precisamente, entre as duas formas de funcionamento institucional.

Como já referimos acima quando citamos Guiddens, as relações estabelecidas entre o tradicional e o não tradicional não são excludentes. Assim também ocorre no movimento psicanalítico que ora reproduz as concepções do Freud iluminista, ora se aproxima de suas concepções tardias. Como que reeditando, aliás, o movimento do próprio Freud até o fim de sua vida.

Na instituição, longe de demarcar tempos distintos, o que se instituiu a partir dos acordos entre pares, trazendo consigo a ameaça do desconhecido e criando tensões até então não experimentadas, mobilizou reações defensivas: uma tendência à repetição da ênfase nas normas burocráticas, a procura de identificações narcísicas induzindo processos identitários dirigidos a um líder, novamente entronizado na função de garantir e assegurar. Os dois movimentos coexistem, numa espécie de movimento pendular: de um lado, a fatal atração pelos valores tradicionais, de outro, a radical opção de não haver solução possível para o paradoxo, nem cura para o mal estar; ao contrário, a exigência de um esforço permanente para sustentar o caráter provisório das soluções encontradas.

Desde o primeiro tempo é curioso observar como, apesar da proposta de uma instituição que deveria definir-se por uma produção plural e diversa (estava posto na carta de princípios), a opção feita foi por um modelo de gestão centralizadora em que o grupo, para se legitimar, mantinha-se coeso em torno de uma liderança, representada pelo único analista didata da instituição. Os ecos dessa contradição foram silenciados e eclodiram com a entrada da segunda geração e do segundo didata, quando se operou uma modificação nas relações de poder. A primeira geração assumiu-se como fundadora e retomou seus pressupostos iniciais de pluralidade e diversidade.

Discussões subseqüentes resultaram no rompimento com o estabelecido, destituindo-se a função de analista didata, o que levou a reconhecer as análises dos analistas da própria instituição e de outras instituições. Como no mito da horda, o pai foi assassinado, agora de modo consentido. "Morto" o didata, qualquer um poderia ser reconhecido no lugar do saber, assumir responsabilidades pela formação, participar da seleção da terceira geração e coordenar seminários.

A terceira geração entra a partir do momento em que os seminários foram abertos a não sócios, sendo esse o máximo de abertura possível na época. As jornadas (para discussão teórica e clínica) são fechadas, e os Cadernos de Psicanálise - primeira publicação da instituição - são distribuídos apenas entre os sócios.

O saber pode circular entre pares, mas dentro dos muros protegidos da instituição, o que aponta para a prevalência ainda de uma lógica identitária, sob o império do narcisismo das pequenas diferenças. Os de fora são identificados como estranhos; seu encontro é evitado a qualquer custo.

O que se propunha a ser um modelo de relações de reciprocidade (menos assimetria de poder verticalizado) tornou-se, rapidamente, pretensão de relações igualitárias. Questionando todo tipo de autoridade, tornou-se impossível delegar o poder e fazer circular a função de representação. Face à intolerância, reinou o assembleísmo – todos juntos decidindo sobre tudo; uma fantasia de fratria sem pai, uma sociedade de irmãos auto-engendrada e auto-gerida. Longe de consolidar-se um eixo horizontal de relações, instala-se a crise, com um clamor pela lei, pelas normas e pelo controle.

Prega-se, aí, a importância de escolher um só autor ou só uma teoria para definir a identidade institucional. Justo no momento que se pensava privilegiar o campo identificatório voltam, com toda força, as formações identitárias. A Comissão de Formação rege a instituição; iniciando-se um período de constantes reformulações do projeto, com feições cada vez mais normativas, que resultaram em um regimento mais legalista que o da fundação. Ressuscita-se o pai assassinado, com todas as suas prerrogativas de poder, encarnado na figura da legalidade.

Um movimento articulado de recusa a esse retorno do regime legalista leva à constituição de grupos de trabalho, imbuídos da tarefa de propor um novo pacto paro o CPP.

É desse pacto, negociado a duras penas, que se chega ao segundo projeto, marcado pela mudança nos objetivos da sociedade - a formação passa a ser um componente da produção no campo da psicanálise, definindo-se que é esse o principal objetivo institucional.

No ordenamento estabelecido em torno desse compromisso com a produção (a aliança central do pacto) quatro pontos podem ser ressaltados: o acordo de investir na produção; a admissão de posições teóricas diferentes; a exigência de articular iniciativa pessoal e respeito ao enquadramento na construção de cada trajetória; o processo de reconhecimento sustentado na produção individual e na opção de pertinência societária.

No âmbito do enquadramento, três diretrizes se destacam: definir a especificidade do processo considerando o que é próprio da psicanálise (o trabalho com o inconsciente); admitir o processo institucional e a formação como inscritos num duplo registro – de espaços e tempos; entender que as funções de representação circulam entre diversos personagens, constituindo-se vínculos ao sabor dos movimentos transferenciais.

Cabe aos representantes institucionais (diretoria, coordenadores de seminário, supervisores - quando da instituição - e orientadores) sustentar o enquadramento, favorecendo a contínua possibilidade de elaborar as contradições e tensões inevitáveis do processo, nos debates ou em produções escritas. Sustentar o enquadramento significa, também, avalizar a exigência básica de compromisso com a produção.

Muda-se, assim, a ótica de significação do enquadramento e, junto com isso a significação da lei. Comum a todos e, portanto, desautorizando privilégios, a lei representa, tão somente, a possibilidade de instaurar um campo de mediação, ou seja um espaço de gestão que permite produzir, elaborar, falar; formas de subjetivação produzidas na "tessitura de laços sociais e pela produção de obras no campo desses laços" (citando Birman, de novo)

UNIFORME E SINGULAR: DUPLO DESTINO DA INSTITUIÇÃO PSICANALÍTICA

Fazendo trabalhar nossas hipóteses produzimos algumas formulações sobre a instituição que levam em conta essa multiplicidade de aspectos subjacente ao título: uma polaridade sem solução – pressão pela uniformidade e demanda de singularidade; um duplo destino e a impossibilidade de uma única via de solução

De um modo perigosamente esquemático, ousamos representar algumas das experiências marcantes da vida institucional, pelo menos de nossa perspectiva, sob a forma de polaridades cruzadas.

Essas polaridades, opções extremas das regulações possíveis, não se situam ao acaso mas associadas aos modos de investimento destinados à instituição, aos mecanismos de gestão e às conseqüências que eles induzem.

A instituição se apresenta com dupla inscrição: de um lado, como instância social e, enquanto tal despersonalizada, representa-se através de um projeto; de outro, como instância de vínculos, representa-se principalmente através daqueles a quem são atribuídas funções de representação (autor de referência, fundadores, líderes, dirigentes, alguns dos pares) sendo, assim, também personalizada.

Os líderes (representantes do poder de direcionamento) e os fundadores (representantes do poder da origem) são os destinatários mais freqüentes dos investimentos transferenciais, sendo colocados em posições ora anteriores a cada sujeito ora para além dele num processo de distanciamento que pode ser da ordem da diferenciação (e, portanto, da percepção dos limites e possibilidades) ou da indiferenciação (e, portanto, do ideal narcísico de onipotência e proteção).

Os movimentos de organização dos vínculos se situam entre dois eixos: um vertical, constituído pela dupla representação da figura do pai (os ideais identificatórios do pai morto e a reedição da presença forte e despótica do pai assassinado) e outro horizontal, suportado nos vínculos fraternos (reciprocidade de poder, interdição do lugar do pai, acordo de solidariedade).

Na dimensão de cada eixo, as representações podem se constituir como possibilidade ou como excesso.

O campo das possibilidades se atualiza na dimensão vertical pelo reconhecimento das instâncias de mediação (autoridade, enquadramento, valores de referência) e, no eixo horizontal, pelo reconhecimento dos pares e pela pertinência ao projeto coletivo. Nas duas alternativas, o exercício do compromisso e da responsabilidade social.

O que é da ordem do excesso se instala pela via do fascínio, da submissão às figuras de onipotência e da demanda de proteção (no eixo vertical) e pela instalação da fratria sem pai, nas pretensões igualitaristas e na recusa aos limites (no eixo horizontal). Nos dois casos, a destruição do vínculo social, perdendo-se a articulação com o passado e o compromisso com o futuro.

Na instituição psicanalítica essas alternativas são mobilizadas, de modo particular, nas opções de produção e na gestão da formação.

A política institucional em relação à produção tanto pode, num extremo, colocar a teoria no lugar do sagrado e, como tal, inquestionável, exigindo uniformidade, quanto pode posicionar-se por uma teoria sempre posta em questão, aberta ao confronto e admitindo que qualquer formulação será, sempre, provisória e singular.

Quando há espaço para afirmação da singularidade, torna-se possível exercer a autoria, que fala de uma produção fundamentada na clínica (experiência própria e intransferível) e, ao mesmo tempo, passível de reconhecimento. Se prevalecem as formações identitárias, a produção tende a ser dogmática, ou reprodutiva, no esforço vão de ser intérprete ou porta-voz - uma demanda de legitimidade em nome do autor.

Na gestão da formação também é possível privilegiar a constituição de espaços de aprendizagem e trocas sem escamotear, contudo, a exigência de iniciativa, de trabalho constante e, nem mesmo, o confronto com a inevitável solidão diante da constatação de que nada garante o lugar e que o esforço de construí-lo é interminável.

Quando, porém, não se pode abdicar da fantasia de que algo ou alguém (UM) pode assegurar o lugar de analista (através de um título, um grau ou uma autorização) a busca incessante é de obturar a angústia do desamparo pela sacralização da teoria, do autor, da norma, da lei transcendente.

No entanto, é evidente, opções assim tão bem demarcadas jamais acontecem. De certo, há uma tensão constante entre o percurso individual de cada analista e a vida institucional. O desejo de realizar os ideais narcísicos insiste em atuar, buscando na teoria, na segurança da técnica, na verdade dos escritos, no abrigo dos regulamentos e, mesmo, na ocupação dos lugares de status institucional, a fantasia desta realização. Cada um não cessa de perseguir aquilo que a instituição nunca pode dar. A sociedade, do seu lado, seja por apego às posições (teóricas, ideológicas ou políticas) ou por uma espécie de cumplicidade permanente com a face idealizada do discurso de Freud, também se refugia, por vezes, nos ideais onipotentes, qualquer que seja a forma sob a qual atuem.

Outras vezes, a experiência de assumir ser participante de um projeto coletivo, compartilhar uma produção comum e, confrontar, sem maiores dramas essa dimensão de desamparo inevitável, também pode ser fonte de experiências gratificantes, o suficiente para não desistir de viver.

É nesta tensão constante com a instituição, consigo mesmo, com a clínica, com as exigências de produção, com os pares e, não menos, com os ímpares!, que se forma um analista: no ato de desejar, produzir e desmontar ideais, tentando construir, apenas, um lugar possível.

NOVEMBRO 1999

Ana Elizabeth Cavalcanti
Cármen Cardoso
Paulina Schmidtbauer Rocha

BIBLIOGRAFIA

BIRMAN, Joel: O Mal na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999

BECK, Ulrich: Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna – São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997.

GIDDENS, Anthony: Para além da esquerda e da direita. O futuro da política radical – São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.

FURTADO, Ângela Porto, RODRIGUES, Gilda Vaz, CHAGAS, Nara França, ALVES, Stélio Lage, GONTIJO, Thais Dias (organizadores) et al: Fascínio & Servidão. – Belo Horizonte: Autêntica, 1999

FREUD, S.: Totem e Tabu in Obras Completas, Vol XIII, Rio, Imago Editora, 1974

FREUD, S.: Psicologia de Grupo e a Análise do Ego in Obras Completas, Vol XVIII, Rio, Imago Editora, 1974

FREUD, S.: O Mal Estar na Civilização in Obras Completas, Vol XXI, Rio, Imago Editora, 1974

FREUD, S.: Análise Terminável e Interminável in Obras Completas, Vol XXIII, Rio, Imago Editora, 1974


Clique aqui para voltar à página dos Estados Gerais da Psicanálise de São Paulo
  http://www.oocities.org/HotSprings/Villa/3170/EG.htm