Psicanálise e Instituição Judiciária: Atuação em Vara de Família

Claudia Amaral Mello Suannes

Resumo: Este breve comunicado visa analisar alguns aspectos da perícia psicológica em Varas de Família. Situa o contexto no qual ela ocorre e discute se o psicanalista, ao atuar como perito, teria apenas a função de fornecer elementos para a convicção do juiz, ou se o próprio ato de realizar seu estudo já se constituiria como oportunidade de realizar uma intervenção terapêutica nas famílias.

A perícia, em um processo judicial, é um estudo técnico sobre um determinado assunto, o qual tem por objetivo subsidiar a decisão relativa à questão que está sendo tratada. As perícias psicológicas em processos de Vara de Família são solicitadas, basicamente, em situações nas quais o casal separado não chega a um acordo em relação à guarda dos filhos ou ao sistema de visitas do genitor não detentor da guarda.

Antes de entrar nas especificidades dos conflitos de que trata a Vara de Família e da atuação que se realiza junto a estas Varas, proporia um recuo para questões mais genéricas que, a meu ver, são importantes para situar o contexto no qual trabalhamos: a relação do usuário com a instituição judiciária, a noção que o Direito tem de conflito e, finalmente, como os operadores do Direito estruturam e resolvem os conflitos judiciais. Se uma pessoa entra com uma ação judicial, ela o faz porque há uma disputa, de natureza mais diversa, estabelecida entre ela e um outro. Sozinhos, os oponentes não conseguiram pôr fim ao impasse e demandam ao juiz que faça a função que eles, por si só, não conseguiram.

Ingressa-se, portanto, com uma ação judicial sob a pressão de uma vivência de insatisfação. Esta insatisfação, por sua vez, liga-se à representação do outro como limitador de experiência de prazer ou de quietude almejada pelo sujeito. Recorre-se à autoridade judicial, então, na esperança de que ela possa restituir (ou instituir) um estado no qual as próprias exigências sejam atendidas, o que pode ser expresso na expectativa de que a paz que foi perdida no embate com o outro seja

devolvida, ou nos desejos de obter algo do outro ou, ainda, de impingir lhe algum tipo de controle ou interferência.

Para entrar formalmente com um processo judicial a pessoa terá que buscar um advogado, que será o profissional encarregado de representá-la nos autos e defender seus interesses.

Exceto nas ocasiões em que é ouvida em audiência, durante todo o correr da ação judicial é através de seu advogado que a pessoa fala no processo. Portanto ela " fala" representada por um outro e esse, por sua vez, fala de acordo com a lógica que é própria do discurso jurídico.

O Direito visa garantir condições básicas de convivência social por meio de regulação das ações humanas que podem contrariar aquilo que está estabelecido na lei. Denomina-se lide, ou conflito de interesses, a situação na qual duas pessoas pretendem desfrutar, ao mesmo tempo, daquilo que os processualistas chamam " bem da vida " (tudo aquilo que corresponde a uma aspiração de uma pessoa, seja material, cultural, afetiva, etc.), sendo que a prevalência dos interesses de um implica em não atendimento aos interesse do outro. Na medida em que duas pessoas têm interesses que se contrapõem, o juiz terá que decidir qual das pretensões está mais amparada na lei (embora haja casos em que não atenda completamente a pretensão de nenhum dos dois).

Assim, ao representar seu cliente, o advogado tentará demonstrar que seu cliente tem razão porque está mais amparado no Direito que seu oponente.

Se analisarmos as petições veremos que são relatos de situação de desacordo, nos quais se tenta demonstrar que partiu do outro a ação (ou omissão) que resultou em conflito. Em seguida, há referência a uma norma, a qual atestaria que a atitude (ou falta de) do outro infringiu um princípio de convivência social ou não respeita as leis. Por fim, é solicitado que alguma providencia legal seja tomada para que o sujeito obtenha aquilo que está requerendo.

Vê-se, então, que entre a vivência de insatisfação do sujeito que decide entrar com uma ação judicial à enunciação do seu problema em linguagem jurídica, há progressiva alteração na configuração do conflito.

Determinada pela atuação dos mecanismos psicológicos do sujeito, o desejo inconsciente que é mola propulsora para a formulação do pedido permanece muitas vezes desconhecido para ele próprio e se expressa de forma lacunar.

O discurso manifesto, por sua vez, que encobre e revela o conteúdo latente que está subjacente ao pedido, vai sofrer, através da atuação de seu "porta voz", uma outra modalidade de repressão (mais próxima da noção que o senso comum tem do termo, que o conceito psicanalítico, já

que envolve uma supressão voluntária). O advogado, então, vai desmontar o discurso de seu cliente e remontá-lo de acordo com lógica que é inerente ao pensamento jurídico.

O discurso original do sujeito, expressão de desejo ou insatisfação, dá lugar a um discurso sobre o merecimento.

Os pedidos judiciais são apresentados de modo a parecerem legítimos, portanto, merecedores do bem que está sendo pleiteado. De acordo com esta argumentação, então, o fato de estar amparado na lei confere uma legitimidade ao desejo, o que tornaria o sujeito merecedor da satisfação almejada.

Este tipo de apresentação do problema está presente em disputa de qualquer natureza: ocorre em litígio estabelecido entre pessoas que têm uma relação casual, circunstancial e restrita à questão do conflito, como batida de carro ou questões trabalhistas. Ocorre em litígios de família, estabelecidos entre pessoas que são objetos de investimento libidinal, umas para as outras, e que, no caso de terem filhos em comum, que possuem ligação anterior e posterior ao litígio, portanto que persistirá à resolução judicial.

No primeiro caso, independente da repercussão que a decisão judicial terá para os envolvidos, a resolução do problema jurídico de certo modo encerra o contato entre as pessoas.

Nas ações de Vara de família, porém, o ato jurídico não terá como conseqüência o rompimento dos laços psicológicos das pessoas envolvidas e, no caso de haver filhos em comum, não levará a afastamento concreto e não impedirá a participação de um na vida do outro.

Devido à natureza do vínculo existente entre as "partes", como são chamadas as pessoas nos processos, as ações de Vara de Família encobrem questões mais profundas e complexas, sendo que os problemas explicitados nos autos são, freqüentemente, deslocamento de questões que não encontraram outra via de representação. Na medida em que o aparente problema é resolvido, o conflito se coloca em outra questão, reacendendo o impasse. Este constante deslizamento de conflitos leva à cronificação do litígio.

Como já mencionado, as perícias psicológicas em processos de Vara de Família são solicitadas, basicamente, em casos de guarda de filhos e regulamentação de visitas.

Embora a criança (ou adolescente) seja o objeto da disputa judicial, ela é considerada pela lei um sujeito de direitos. Desse modo a decisão relativa à guarda e às visitas terá como vetor teleológico os interesses dos filhos. A perícia psicológica tem por função analisar a situação mais benéfica para a criança.

Existe, portanto, um pressuposto técnico e formal que justifica a necessidade de se realizar estudo psicológico nestes casos: determina-se perícia nos casos cuja solução requer o esclarecimento de questões técnicas.

Além da necessidade formal porém, há um reconhecimento, por parte dos operadores do Direito, que os litígios de família têm uma lógica própria, a qual não é apreendida através de entendimento racional, o que torna a configuração do conflito escorregadia e de difícil resolução em termos jurídicos.

Se acompanharmos os processos de Vara de Família, veremos como são repletos de queixas e denúncias. Acusações graves e banais são apresentados com a mesma ênfase; pedidos para que o juiz resolva questões corriqueiras são concomitantes ao relato de situações que aparentemente seriam graves e envolveriam riscos ou sérios prejuízos para a criança.

Depreende-se também da leitura destas petições, que os litígios são apresentados como se as partes envolvidas fossem estranhas umas às outras, como se a pessoa com quem se disputa algo não tenha sido, ou seja ainda, objeto de investimento libidinal. Os conflitos são enunciados como resultado de inadequação do outro, como problema externo ao sujeito, como se a pessoa que pede alguma coisas não tivesse implicação pessoal no estabelecimento daquele quadro.

Em meio a profusão de ataques e acusações mútuas, a determinação de estudo psicológico representa uma mudança de rumo na compreensão do litígio.

Por meio deste ato, exercendo uma atribuição inerente ao cargo, o juiz faz a função de dar estatuto de psicológico a algo que é vivido pelas famílias como um problema jurídico, concreto e externo a cada um deles.

O acompanhamento dos casos mostra que, independente das motivações pessoais do magistrado para pedir o estudo psicológico ou da compreensão que ele possa ter do caso, este ato tem papel importante para as famílias, na medida em que nomeia a natureza do problema que está em pauta.

Nesses anos todos trabalhando com Vara de Família, ouvindo a queixa dos casais separados e os pedidos formulados ao juiz, freqüentemente me pergunto (e pergunto às famílias) de que modo a pessoa vislumbra que o juiz possa resolver conflitos subjetivos. As pessoas envolvidas neste processo parecem representar o juiz como sendo capaz de exercer uma ação que os alivie de seu sofrimento. Ao formularem o pedido de resolução judicial, é como se decretassem a impossibilidade de pensar ou de lidar com as próprias questões e atribuíssem a um terceiro a função de fazê-lo.

Como, possivelmente, está subjacente a este pedido um sentimento de impotência, há uma tentativa de reversão deste estado através da suposição da onipotência do juiz.

Por esta razão me parece que ao determinar a perícia e, conseqüentemente, nomear a questão, o juiz (entendido aqui como função e não como pessoa) dá um passo importante rumo a um processo de simbolização do conflito que, naquele momento, as famílias ainda não conseguiram dar: fica estabelecido no rito processual que a decisão será posterior à análise.

Se partimos da idéia de que o juiz pode representar para estas famílias a exteriorização de uma função psíquica, a determinação da perícia poderia ser interpretada como introdução, na vida dessas pessoas, de um novo personagem nesta "cena" que é montada no judiciário. Um personagem que vai lidar com a dimensão do psicológico e que, portanto, também poderá funcionar como exteriorização de uma função, a analítica.

É neste contexto, então, que os casos chegam para perícia.

Para realização do estudo, propriamente dito, são realizadas entrevistas, observação lúdica (quando necessário) e eventualmente, pode-se valer do uso de técnicas projetivas. Ao final é apresentado um laudo por escrito.

A primeira função da perícia, a meu ver, é realizar um movimento de direção contrária na estruturação do problema jurídico: na perícia são as famílias (e não seus representantes) que falam e a escuta não está voltada para os aspectos legais, fatuais e pragmáticos. Desse modo, o estudo psicológico restitui a voz à pessoa e aos processos inconscientes que subjazem ao seu pedido formal.

Na medida em que se parte do pressuposto que pai e mãe têm funções distintas e importantes para a criança, a questão não se coloca para o psicanalista como oposição entre dois polos, ou seja, não se trata de um conflito de interesses no qual o vínculo com o pai exclua a mãe de seu lugar, ou vice versa. Desse modo, o problema não se configura como conflito dual, mas triangular.

A perícia, portanto, não estará direcionada para a avaliação de qual genitor é merecedor da guarda ou da visita aos filhos, ou, tampouco, para a detecção de qual deles estaria mais apto para exercer as funções parentais, mas para a compreensão da dinâmica das relações familiares.

Por outro lado, atenção flutuante, que guia a escuta do analista, leva a uma compreensão de que questão que faz aquela família sofrer e pedir ajuda no Judiciário não é, muitas vezes, aquela que está configurado nos autos.

Desse modo, a entrevista, naquilo que pergunta ou cala, destaca ou não dá relevância, marca a existência um outro modo de ouvir as mesmas questões.

A escuta cumpre a função de subjetivar e metaforizar aquilo que para o sujeito é muito objetivo. Pode constituir uma oportunidade da pessoa se ver acolhida nessa escuta e, conseqüentemente, ouvir a si própria e ressignificar o próprio discurso. O uso que fará desta experiência varia de acordo com seus recursos pessoas, como aliás ocorre em qualquer intervenção que se pretende terapêutica.

Quando o laudo é escrito ele apresenta uma situação que é multifacetada e complexa. Por um lado, fala de relações que são necessariamente conflitivas e que, portanto, não são passíveis de resolução através de ações pragmáticas. Por outro, nomeia coisas que estão deslocadas e, desse modo, produz uma outra configuração para o conflito.

Depois de finalizado o estudo, o laudo é apresentado nos autos, segue a tramitação de praxe e depois o juiz toma a decisão que põe fim, ao menos temporariamente, ao "conflito de interesses". Independente de qual for a decisão, esta nunca vai por fim ao conflito interpessoal.

Entretanto, a decisão judicial tira a família do caos no qual ela está mergulhada e dá inicio, portanto, a um processo de simbolização que não será levado adiante ali. O juiz ressignifica o conflito e o devolve para a família com uma outra configuração, a qual tem uma organização que pode torná-lo possível de ser pensado.

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Claudia Amaral Mello Suannes, Av. Brigadeiro Faria Lima, 1811 conj 1325,
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