A psicanálise e a des-colonização do desejo.

Eduardo Leal Cunha

"O grão do desejo quando cresce é arvoredo, floresce Não tem serra que derrube, não tem guerra que desmate Ele pesa sobre a terra mais que a lei da gravidade E quando faz um amigo é tão leve como a pluma Ele nunca põe em risco a felicidade Quando chegar dê abrigo, beijos, abraços, açúcar Só deseja ser comido, o desejo é uma fruta E com ele não relute pois quem luta não conhece a força bruta nem todo o mal que ele faz Satisfeito é uma moça, sorrindo feliz e solta Beijo o desejo na boca que o desejo é bom demais."

Paulinho da Viola e Capinam

O objetivo deste trabalho é apresentar uma série de questões em torno do que gostaríamos de chamar de luta contemporânea pela afirmação do desejo.

Um pressuposto fundamental em nossa argumentação – e o próprio Freud nos ensinou o quanto pode ser útil ter um pressuposto1 – é de que uma marca da contemporaneidade é a incapacidade – ou pelo menos uma imensa dificuldade – dos indivíduos em se afirmar subjetivamente a partir da colocação do seu desejo em circulação. Entende-se aqui esta circulação não só como a busca de sua realização mas sobretudo a sua inscrição no campo do simbólico, submetido à intermediação de um outro.

  1. Freud, S. "Cinco lições de psicanálise" in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro, Imago, 1985 Vol.XI p.29

As questões levantadas procuram se inserir no que acreditamos ser a dimensão política da psicanálise. Aqui, a referência necessária é o caráter revolucionário do pensamento freudiano, a série de pequenas e grandes revoluções que o surgimento da psicanálise provocou no pensamento ocidental, na história das práticas médicas e, principalmente, no modo como cada indivíduo em particular interpreta e enuncia a sua experiência da vida cotidiana. Inclui-se ainda neste raciocínio uma hipótese de trabalho que nos é muito cara: tais revoluções – rupturas, mudanças e deslocamentos – são um produto da necessidade que a psicanálise tem de dar conta, através da interpretação mas também em ato na sua prática clínica, da sua própria descoberta, dos pontos críticos, e míticos, da sua teoria – o inconsciente e a pulsão.

Isto significa dizer que para dar conta, mesmo que no nível da teoria, das demandas da pulsão e decifrar os mistérios do inconsciente é preciso estar sempre, a cada novo momento, produzindo novas rupturas, mudanças e deslocamentos – na própria psicanálise e em suas formas de intervenção sobre o humano.

Retomando um pouco o foco principal desta investigação, é importante dizer que esta insistência em uma dimensão política – que alguns certamente preferem chamar de ética – da psicanálise está ainda diretamente vinculada ao que nós podemos colocar como sendo a nossa pergunta originária: como um sujeito pode se afirmar diante de uma trama de sentidos que se pretende absoluta? Ou, como diria Barthes, como um sujeito pode se revoltar – e lutar – contra a arrogância de uma linguagem2; para, em seguida, insistir na linguagem, do seu desejo – sempre a anunciar uma verdade irresoluta, recorrente, mas, ao mesmo tempo, escorregadia, mutável. Se a verdade do sujeito está sempre em mutação e o desejo é plural como seria o demônio – "meu nome é legião"3 – é preciso sempre haver um novo espaço para que ele se manifeste e este espaço se faz necessário na linguagem, mas também no corpo do sujeito. Aprendemos desde cedo, nos livros, nos seminários, na prática clínica e na nossa análise pessoal, que a cada novo reordenamento da consciência, a cada operação de encouraçamento do eu, lá está o inconsciente a reinventar o caos, lá está a pulsão a romper barreiras e fragmentar o que se pretendia rocha inabalável.

2 . Barthes, R. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo, Cultrix, 1977 pp.53-4

Dito em outras palavras – e aí assumindo a dimensão política que nós pretendemos destacar: a cada vez que o sujeito é aprisionado nas tramas de vínculos sociais, e econômicos, e cada vez que seu discurso se encontra preso nas malhas de um sentido que não lhe pertence, diante do qual ele se coloca como estrangeiro, este sujeito precisa reagir, precisa inventar novas palavras, de modo a recolocar seu desejo em circulação. Sendo que a nosso ver, e é bom adiantar isso desde já, o seu trabalho nesta direção se dará principalmente através da produção de fantasias, de fantasmas a assustar o senso comum, a boa verdade estabelecida. É, em última instância, sobre estes movimentos, estes pequenos – e às vezes grandes – gestos de rebeldia, de reinvenção do ser humano no seu cotidiano, que estamos desde o primeiro momento falando e nos questionando. Quando nos referimos a este enfrentamento ao qual o sujeito é conduzido nos parece claro que o que está em jogo são relações de poder. Preferimos contudo chamá-las de relações de dominação, nas quais encontramos um discurso de poder4 que se esforça por dominar o desejo, por colonizá-lo – e é possível que, seguindo a pista de Birman, seja inevitável falar em uma colonização do corpo5 – e um sujeito que se coloca como dominado, expropriado de seu próprio desejar, em uma relação de submissão pela via da força – ainda que simbólica – e da opressão. Aqui, trata-se portanto da luta pelo estabelecimento de um domínio, um campo de ação, onde o sujeito possa se afirmar pela enunciação e busca do seu desejo.

3. Barthes, R. Fragmenos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro Francisco Alves, 1981 pp.70-1

4. Barthes, R. Aula. São Paulo, Cultrix, s/d p.11

5. Birman, J. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999 pp.58-60

Para investigar estas relações de dominação e a luta travada pelo sujeito na contemporaneidade, algumas considerações e formulações – teóricas e mesmo políticas – fundamentais serão tomadas de empréstimo da discussão sobre as relações coloniais. O que nos interessa sobretudo é o confronto entre colonizador e colonizado – também uma relação de dominação, de opressão, de expropriação e de morte.

Antes, contudo, de expor alguns pontos de vista e muitas interrogações em torno destas relações de dominação, consideramos importante uma reflexão – talvez insuficiente mas ainda assim importante – sobre o papel que a psicanálise e o movimento psicanalítico podem representar neste conflito que marca a nossa atualidade. É claro que o que pretendemos ressaltar nesse momento preciso de nossa argumentação é o que talvez possamos definir – caindo evitavelmente no risco de um juízo de valor – como o papel negativo da psicanálise, o modo como nós psicanalistas corremos o risco de ficar ao lado, não do sujeito que luta pela afirmação do seu desejo, mas ao lado dos instrumentos de poder que o dominam. Para isso é preciso enxergar em que medida o pensamento psicanalítico, no seu saber e no seu fazer, se tornou também ele um discurso de poder, um discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpa6.

Essa passagem, essa transformação, que pode representar de certo modo a estagnação, a morte de uma forma de pensar e produzir conhecimento e bem-estar, se dá sempre que uma visão de mundo, um modo de enunciação da realidade e do humano, dificulta no sujeito – em cada indivíduo em particular – a produção, a invenção de novas formas de ser. Ou ainda, usando uma lógica que nos é cara: quando uma determinada verdade enunciada limita, ou mesmo impossibilita, a produção de novas tramas fantasmáticas – produção esta que é, a nosso modo de ver, o caminho privilegiado pelo qual o sujeito pode elaborar novas identificações, novas formas de enunciação de si e, em última instância, novas formas de organização do eu7.

6. Barthes, R. Aula. São Paulo, Cultrix, s/d p.11

Queremos chamar atenção para algo que a prática clínica nos ensina cotidianamente: a produção de um saber, de uma verdade sobre o sujeito, se faz através da construção mas também, e talvez sobretudo, da desconstrução. Um saber que não se desconstrói, que não permite ruptura, é um saber que conduz, em última instância, à morte do sujeito. A grande virtude e mérito da obra teórica e clínica de Sigmund Freud é a sua imensa capacidade de se auto-des-construir.

Relações de dominação, colonialismo e colonização

Nos dicionários, uma colônia é definida, entre outras coisas, como uma possessão, o domínio de um território por um Estado (poderíamos dizer: um poder) estrangeiro. Nesta nossa investigação, e seguindo o pensamento de estudiosos do mundo colonial e pós-colonial, a colonização vai ser sempre entendida como uma tentativa, infelizmente muitas vezes bem sucedida, de subjugar o outro – e o seu desejo8.

7. Cunha, E.L. Imagem e semelhança: metapsicologia da identificação. – Tese: Mestrado em Teoria Psicanalítica. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, 1992

8. Bhabha, H. O local da cultura. Belo Horizonte, Editora Universidade Federal de Minas Gerais, 1998

É, obviamente, de uma relação de poder que estamos falando, mas utilizar palavras como dominação, colonização, dominador, dominado, opressão, revolução – palavras que a princípio podem nos parecer tão distantes da prática psicanalítica, não só nos permite ressaltar aspectos tais como a violência envolvida inevitavelmente nestes processos, como também nos deixa mais próximos de algumas metáforas territoriais que nos serão úteis e ainda coloca alguns rostos humanos nesta trama e aponta para uma situação que a nosso ver é fundamental: o sujeito que luta pela enunciação – e realização – do seu desejo e que nós estamos colocando no lugar do "dominado" é antes de tudo, na realidade, um indivíduo; e este indivíduo cotidianamente se coloca diante de um outro, portador de um

discurso de poder, a quem atribui o papel de dominador. Em uma época na qual a violência e o enfrentamento entre seres humanos se acham tão banalizados, o vocabulário da questão colonial tem a vantagem de destacar com muita veemência o caráter dual, binário, de poder, que pode se estabelecer entre dois indivíduos, grupos, povos, raças, nações e estados. E nos permite também lembrar, talvez, que a luta pela liberdade nada mais é do que a luta pela afirmação do desejo.

É fundamental, no entanto, que nós situemos precisamente ainda estes "conflitos coloniais" que formam o cerne da nossa investigação, no momento atual, nessa espécie de limbo pós-colonial globalizado no qual percebemos que os mecanismos de dominação e a homogeneização dos discursos aparentemente atingiu seus pontos máximos de sofisticação e eficiência, mas, ao mesmo tempo, deixam revelar seu fracasso iminente pela incapacidade de dar conta do desejo humano, de aprisioná-lo em uma linguagem e códigos de conduta tão fechados, impermeáveis, à negociação, à flexibilização e à mudança.

"Nossa existência hoje é marcada por uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de viver nas fronteiras do ‘presente’, para as quais não parece haver nome próprio além do atual e controvertido deslizamento do prefixo ‘pós’: pós-modernismo, pós-colonialismo, pós-feminismo... encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão.(...) O afastamento das singularidades de ‘classe’ ou ‘gênero’ como categorias conceituais e organizacionais básicas resultou em uma consciência das posições do sujeito – de raça, gênero, geração, local institucional, localidade geopolítica, orientação sexual – que habitam qualquer pretensão à identidade no mundo moderno. O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses ‘entre-lugares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade." 9

Talvez aqui se apresente desde já uma das nossas principais hipóteses de trabalho e possível resposta ao nosso questionamento original: é como resultado do confronto entre identidades e padrões de comportamento tidos como desviantes, minoritários ou inferiores (gays, negros, sadomasoquistas, árabes, etc.) e o senso comum, a Doxa9 que tanto impressiona Barthes, que o sujeito pode encontrar elementos e signos de reconhecimento - fragmentos de linguagem, traços identificatórios – que lhe permitam produzir novas tramas

fantasmáticas e experimentar novas possibilidades de identificação e enunciação do eu que dêem conta e até mesmo criem novos destinos para o seu desejo. Este confronto, no entanto só se faz possível a partir do momento em que as minorias abandonam o gueto; ou quando o povo submetido ao domínio colonial se rebela e força o colonizador a enfrentar no seu dia-a-dia a força de uma cultura e uma tradição que não podem ser submetidos ao jugo da sua linguagem estrangeira. É a inclusão da cultura dominada (ou sub-cultura, se preferirem usar esta denominação em referência a determinados grupos) no mercado de trocas simbólicas – e, em última instância, na sociedade de consumo – que força à coexistência à coabitação em um certo território e até em um mesmo campo do imaginário.

9. Bhabha, H. O local da cultura. Belo Horizonte, Editora Universidade Federal de Minas Gerais, 1998 pp.19-20

10. Barthes, R. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo, Cultrix, 1977 pp.53

É quando a diferença reivindica e força seu direito de existência igualitária, enquanto diferença, que a Doxa, o senso comum, a linguagem dominante se vê obrigada a se transformar, se desconstruir, em certa medida, e absorver o aparecimento do novo.

É dessa maneira que a oposição, a relação dual entre dominador e dominado, entre a "cultura" e o desejo, pode ser vencida. É no aparecimento do que Bhabha chama de interstícios que se pode produzir um entre-lugar, um espaço de produção do novo, que não signifique para o sujeito nem o aprisionamento do seu desejo pelo recalque, nem o esmagamento do eu pela força do excesso pulsional.

Assim, o que estamos propondo é, em certa medida, recolocar a questão dos destinos da pulsão, bem como suas relações com o eu, e o trabalho de produção fantasmática no contexto das relações de dominação e, por que não dizer, de colonização. O ponto de partida é um sujeito que se vê subjugado a partir do momento em que seu desejo não pode ser reconhecido. Isto vale tanto para o homossexual que aprende desde cedo a localizar sua sexualidade à margem e vê seu corpo invadido pelos discursos médico, psicológico, e mesmo, infelizmente, psicanalítico – sempre em busca da "causa" do seu desvio – quanto para o negro que é obrigado desde sempre a portar uma máscara branca que lhe daria acesso ao mundo civilizado. Não é à toa que o manifesto de Frantz Fanon começa com a pergunta óbvia: "o que quer um homem negro."11

O que estamos chamando de colonização do desejo é justamente esta ocupação do território desejante do sujeito, do campo de domínio no qual ele pode se enunciar r tomar corpo. Submetido às mascaras do homem branco, a uma leitura do seu corpo e do seu desejar que não reconhece sua tradição; submetido, enfim, a um discurso de poder que o coloca em um posição de desconhecimento de si o homem negro já não sabe o que deseja – talvez simplesmente porque a única linguagem em que lhe seria possível enunciar esse de-

11. Fanon, F. Peau noire, masques blancs. Paris, Seuil, 1952 p.6

sejo é uma linguagem a qual ele não conhece e que, por sua vez, não o reconhece.

Se nos voltarmos neste momento ao confronto entre duas individualidades, quando uma é colocada no lugar do dominador e a outra tem seu desejo subjugado o que vamos ver é uma interlocução estéril, onde é possível nenhuma operação de reconhecimento – e aí, só há lugar para algum tipo de violência. Quando o racista nega a existência humana do negro diante dele, não há alteridade possível – e os dois se vêem presos nesta armadilha onde a única forma de contato é a violação do corpo do outro.

Da mesma forma, a cada momento, somos despossuídos de nossos corpos, e temos o território do nosso desejo ocupado não só pelo discurso médico – que recomenda como devemos exercitar a nossa sexualidade ou como devemos higienizar e purificar o nosso corpo – mas também pela propaganda que nos ensina o que é o belo e o que é preciso fazer para conquistá-lo e uma outra série de discursos morais e religiosos que delimitam os limites do prazer e transformam o território do desejo em domínio da culpa. Essa história não é nova, e certamente Foucault já nos ensinou muito sobre ela12. A questão que se coloca agora no entanto é não só o nível extremo de eficiência destes discursos de poder mas a sua eficiência e uniformidade; e também o aparecimento de certos efeitos um pouco trágicos deste estreitamento do campo de gestão de cada um de nós sobre o nosso próprio desejar. Efeitos que são conseqüência também de um certo esvaziamento do nosso potencial reativo e da falência de alguns valores absolutos – ideológicos mesmo - que poderiam se contrapor à arrogância descomunal do senso comum e de uma verdade baseada na universalização dos valores em referência a uma sociedade globalizada e respaldada pelo crescimento inexorável do poder do conhecimento científico, um poder

12.Foucault, M. História da sexualidade I – a vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1984

construído sempre com base na afirmação de uma verdade inegociável que tem como objetivo exatamente – ao menos na sua versão popular, de divulgação – a sobreposição total do individual pelo universal. E me parece ser esta, inclusive, uma das impossibilidades fundamentais da psicanálise em se constituir em um discurso científico.

O eu diante do desejo – identificações, identidades

Se o sujeito se encontra, então, diante de um impasse; se os destinos do seu desejo estão barrados por uma trama discursiva que lhe nega lugar, a saída estará portanto, a nosso ver, na produção de novas tramas, de novos sentidos, e aí, o caminho para nós está na produção de novas fantasias e na enunciação de um novo eu, elemento chave inevitável do "eu desejo" – ainda que saibamos que o desejo muitas vezes se faz à revelia do eu, consideramos que é só no momento em que o eu pode enunciar o desejo que o sujeito ganha forças para enfrentar as forças que o colonizaram e subjugaram.

Se o corpo é colonizado, se a carne é ocupada pela ciência e nele já não sobra lugar para o desejo, é preciso lembrar ainda que o corpo é também ponto de localização e ancoragem do eu; e que talvez seja a partir do eu que o sujeito possa reconquistar o seu corpo.

Ao fazermos esta afirmação, sabemos contudo que é preciso enfrentar antes de tudo um certo preconceito contra o eu, visto em certas tradições da psicanálise como lugar da razão e da consciência. Para fazer isto, o que propomos é retomar a idéia de um eu com uma parte inconsciente mas principalmente pensar o eu como a fantasia ou construção pluri-fantasmática que enuncia a corporeidade e permite ao sujeito de apresentar a si mesmo. Nesse sentido, o que nós poderíamos chamar de um eu forte, capaz de permitir ao

sujeito o enfrentamento dos discursos de poder não é o eu fortalecido de uma psicanálise

13. Birman, J. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999 pp.58-60

de tradição norte-americana – que implica numa onipotência e onisciência sobre o desejo, bem como o controle sobre a demanda pulsional – mas um eu maleável que tem as tramas fantasmáticas, suas pequenas ficções, que o constituem sendo permanentemente construídas, desconstruídas, reconstruídas, a partir de um eixo básico que garanta a sua integridade. Este eu em mutação seria o correlato necessário de um sujeito sempre a produzir novas tramas fantasmáticas, realizar novas identificações e se transformar a cada momento da exigência pulsional; capaz, enfim, de no confronto com o outro, se ligar a diferentes traços identificatórios, circular entre identidades distintas e assim poder reconhecer a diferença e a alteridade, sem que isso tenha um efeito esmagador sobre ele. É certamente esse sujeito que nos momentos de crise, entre todas as escolhas possíveis, pode se decidir por viver um novo amor, ainda que esse novo amor seja o amor de transferência em uma análise.

Para entender as coisas desse modo é preciso defender a tese de que o que está em jogo na cultura contemporânea como supervalorização da individualidade e do privado em detrimento do coletivo e do público trata-se não de uma supervalorização do eu, mas de uma supervalorização do que talvez devêssemos chamar de campo do si mesmo (sem querer neste momento absorver nenhuma concepção de "Self), de um certo domínio do narcisismo, que busca negar a existência do outro – em oposição ao eu, que se dando pela via identificatória faz necessária a presença – e sobrevivência – do outro14. O que quero dizer é que o eu carece (até mesmo no sentido de carência afetiva) do reconhecimento do outro – talvez da mesma forma que na noção de identidade que pressupõe a diferença – enquanto o narcisismo, o estabelecimento do sujeito e sua permanência em um domínio do

14. Cunha, E.L. Imagem e semelhança: metapsicologia da identificação. – Tese: Mestrado em Teoria Psicanalítica. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, 1992 pp.116-139

si mesmo se faz pela negação do outro, pela sua introjeção no campo narcísico.

Se o eu passa então a ocupar um lugar fundamental no nosso raciocínio, e também a idéia de identificação, como enquadraríamos ainda a noção de identidade? Uma resposta possível neste momento da nossa investigação é que são as identidades – de grupo, raciais ou das chamadas minorias – que vão permitir ao sujeito encontrar pontos de referência e força para que a partir da produção fantasmática possam construir "uma forma singular de existência e de um estilo próprio para habitar seu ser."15

Para avançar um pouco na nossa argumentação, e levantar mais algumas questões, gostaria de discutir rapidamente agora uma realidade que a nosso ver pode nos ensinar muito sobre a colonização do desejo e a luta pela libertação: a luta dos homossexuais pela afirmação do seu desejo e pelos seus direitos civis.

O desejo homossexual e a luta pela independência do corpo.

A nosso ver a discussão sobre a formação de uma identidade gay, ou sobre as várias identidades de grupos homossexuais que reivindicam direito de cidadania pode nos permitir algumas das questões surgidas a partir desse contraponto entre a questão colonial e os destinos do desejo na contemporaneidade. Essa discussão poderá, evidentemente em um segundo momento, se articular ainda à outras questões identitárias que vêm construindo especialmente ao longo deste século a luta pelos direitos humanos e civis, seja o movimento feminista, o movimento negro ou mesmo a questão das identidades nacionais e étnicas.

No caso específico dos homossexuais, a constituição de uma identidade gay, marcada por uma série de signos de reconhecimento, e a formação de um mercado consumidor significativamente poderoso – especialmente nos Estados Unidos e já em

15.Birman, J. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999 p.45

diversos dos países da Europa – têm forçado alguns discursos dominantes, a absorver o desvio e encontrar no bojo do seu código, formas de reconhecer o direito igualitário de certas diferenças. Ao lado de algumas modificações na legislação passando a permitir a união civil entre pessoas do mesmo sexo – o que na verdade nós podemos interpretar como um nova enunciação, e portanto uma transformação, do modelo matrimonial heterossexual –, a própria tomada em consideração das práticas sexuais desviantes e do que se acostumou a chamar de promiscuidade gay nas políticas de saúde pública de prevenção da AIDS revela uma necessidade de interlocução e a flexibilização do discurso moral de modo a absorver novos agentes produtores de sentido, de verdade.

Ao procurarmos uma visão panorâmica da militância gay norte-americana nas últimas década o que encontramos é um movimento que mais ou menos se repete: a partir de uma primeira afirmação radical da diferença e da liberdade, o movimento pelos direitos civis dos homossexuais "evoluiu" para uma certa integração das suas demandas na lógica da sociedade de consumo de maioria heterossexual e hoje os gay lutam predominantemente por uma assimilação das suas expectativas de vida aos valores da burguesia protestante de classe média e o que passa a ser mais importante já não é o direito de um travesti ao respeito e amparo legal mas a entrada dos homossexuais nas forças armadas, o direito a se casar, adotar filhos e constituir uma família monogâmica "tradicional". O que me parece é que neste percurso a afirmação da diferença apesar de vitoriosa na conquista de direitos civis e na legitimação de alguns padrões de comportamento, se vê rapidamente substituída por uma supressão da diferença – uma colonização da diferença pela tradição moral burguesa heterossexual; talvez simplesmente porque a questão das liberdades individuais – e da afirmação positiva de um desejo desviante, sem lugar – é permanente, já que sua inclusão na linguagem da norma só é possível pela sua estagnação, pelo sacrifício da possibilidade de inauguração de novos sentidos.

De todo modo, é importante notar que já nessa visão panorâmica encontramos não só a "negociação" – a produção de novas alternativas a partir do confronto entre forças antagônicas – que Bhabha tanto defende como temporalidade necessária para afirmação de um desejo do colonizado16, quanto um certo "reformismo" que ele condena e que acaba por sufocar o desejo integrando-o a uma tradição no qual ele não tem lugar genuíno, onde ele só pode estar na medida em que abre mão justamente da sua capacidade desejante, transgressora.

Para reforçar ainda uma vez mais os pontos de contato entre a luta do homossexual pela afirmação dos eu desejo e a luta colonial, gostaríamos de fazer mais alguns comentários. Nessa direção, consideramos importante retomar a noção – que nós talvez um pouco irresponsavelmente estamos retirando de Barthes – de um discurso de poder que engendra o erro e a culpabilização daquele que o recebe: na luta colonial é olhar eurocêntrico do colonizador, e sua enunciação do universo, do mundo e, sobretudo, da natureza humana que vai fundar simbolicamente a dominação, a hierarquização da relação entre dois seres humanos diferentes – sendo que aqui é importante situar a nossa reflexão neste espaço mínimo, individualizado, porque o que nos interessa, mesmo em um nível político, é uma política das individualidades; o impacto que a dominação ou a afirmação da liberdade tem sobre cada indivíduo em particular e seu modo de funcionamento psíquico, sua relação com seu desejo e aquilo que chama de seu eu.

Já no caso do homossexual – e talvez não seja leviano falar nas mulheres – o que nos propomos é falar na colonização do sexual, no domínio colonialista do corpo – na sua transformação em possessão da razão – na subjugação do desejo a uma racionalidade e a uma ordem moral estabelecidas por um discurso dominante.

16. Bhabha, H. O local da cultura. Belo Horizonte, Editora Universidade Federal de Minas Gerais, 1998 pp.51-52

Seguindo esta linha de raciocínio nos é inevitável lembrar que a mesma ciência que durante tanto tempo classificou a homossexualidade como doença e ainda hoje a trata como um desvio a ser tratado e explicado, em algum momento enunciou o discurso que afirmava a superioridade dos brancos sobre os negros.

Revoluções

"No momento em que desejo, estou pedindo para ser levado em consideração... na medida em que de fato batalho pela criação de um mundo humano – que é um mundo de reconhecimentos recíprocos."17

O que Fanon destaca no trecho acima é a imbricação fundamental entre a afirmação do desejo e o reconhecimento do sujeito. Despossuído do seu desejo, alienado do seu ato desejante, o sujeito não encontra reconhecimento possível – e aí, talvez devamos considerar a possibilidade de que ele não reconheça a si mesmo e muito menos ao outro.

É contra essa realidade que acreditamos, pequenas revoluções precisam ser feitas. E escolhemos a palavra revolução não só em homenagem ao revolucionário Frantz Fanon e também não apenas para lembrar o que chamamos de caráter revolucionário do pensamento freudiano. Preferimos falar em revoluções para destacar não só aspecto transformador de certos atos mas sobretudo a violência que pode marcar estes atos. O desejo não realizado é violento porque é uma não resposta a uma demanda que não cessa – e para por o seu desejo em circulação o sujeito se vê imerso nessa própria demanda, se vê tomado pela pulsão de morte e age, nem que seja contra si-mesmo. Se não há destino possível para o desejo, o caminho para a demanda pulsionla, para a força que invade o su-

jeito é a agressividade e a morte, ainda que a própria morte.

17. Fanon, F. Peau noire masques blancs. Paris, Seuil, 1952 p.177

E se é o corpo, a carne, que o domínio se configura – e, por que não dizer, se materializa – é no corpo que muitas vezes a batalha se dá. Em referência a isso, dois exemplos marcantes, vindos de fontes completamente diversas: em primeiro lugar, um evento contemporâneo, o movimento gay norte-americano chamado "barebacking" 18 que arregimenta adeptos principalmente na Internet e cuja principal proposta é o contato corporal total e a troca de fluidos através de sexo não seguro, sem preservativo, mesmo entre homens soronegativos e soropositivos. A despeito de outras derivações do movimento, como a série de relatos sobre o ato sexual que, para cada um dos narradores, marcou a sua contaminação – a chamada "fuck of death" o que noa aparece aí desde o primeiro momento é a revolta contra o domínio do corpo e do ato sexual pela medicina e o bom senso, seu enquadramento em uma moral monogâmica heterossexual ou mesmo simplesmente a vigilância e ingerência dos discursos dominantes sobre o limite mínimo do eu – o domínio sobre a própria entrega sexual, sobre o próprio prazer. Não importa qual o preço a pagar, não importa qual o gozo a ser obtido, o que o sujeito quer, independente de qualquer outra discussão é que seu corpo esteja novamente sob o controle do seu desejo.

O outro evento que nos parece significativo ao falar da batalha pelo resgate do próprio corpo nos vem da experiência das mulheres escravas na América do Norte:

"O assassinato, a automutilação e o infanticídio são a dinâmica profunda de toda resistência... essas formas extremas capturavam a essência da autodefinição da mulher escrava... O infanticídio era visto como um ato contra a propriedade do senhor – contra seu lucro extra – e talvez isto, conclui Fox Genovese, ‘levasse algumas das mais desesperadas a sentir que, ao matar uma criança que amavam, estariam de certo modo restaurando sua posse sobre ela.’"19

18.Sobre isto, o melhor é consultar algumas revistas e periódicos gays que acompanham o movimento. Ver, por exemplo: "Bareback riders – the new freedon fighters" in (not only) blue nº21 pp.20-23 Austrália, June 1999 ; "Bareback – la fin du safe sex" in Tetu nº33 France, Avril, 1999

Para escapar a esses impasses, para escapar à violência – e talvez ao gozo – o que propomos, seguindo as trilhas de Bhabha, é algum tipo de negociação, de tradução. Mas ressaltamos que essa negociação não é consentida, nem a tradução arquitetada conscientemente por cada uma das partes em conflito. O que nós gostaríamos de chamar aqui de negociação ou de tradução é basicamente, a produção de novos discursos, de novas formas de enunciação para o sujeito, de novos destinos do desejo, a partir do conflito puro e da reação ao domínio sobre o corpo o desejo e o sujeito. O que se buscaria aqui – e talvez seja impossível descartar de todo a violência e a agressividade, pois afinal de se trata de uma luta por independência – é a articulação de antagonismos e não o acordo ou o consenso; o que se busca aqui é sobretudo a produção do novo.

Retomando a partir daqui os argumentos de Barthes em torno do fascismo da língua, o que estamos dizendo é que essa negociação, essa tradução, o que vai permitir ao sujeito fazer essa passagem entre uma língua e outra, de modo a poder dizer o seu desejo. É a passagem entre um código de ordenamento e reconhecimento e outro que pode permitir ao sujeito se deslocar da sua fixidez identificatória e se enunciar através de novas palavras, manifestando o seu eu desejante em um enunciado que desrespeita tanto a sua língua de origem quanto a linguagem do outro, a Doxa, que ele enfrenta. Diante da impossibilidade de dizer o seu desejo e vê-lo reconhecido o sujeito teria duas alternativas, duas maneiras de travar a sua luta pela independência: ou se deixa sob o comando da pulsão e a sua violência pode acabar se voltando com si mesmo, contra seu próprio corpo, contra sua própria vida; ou enfrenta o inimigo a partir da afirmação de sua diferença, derrubando a arrogância da linguagem dominante, minando a sua verdade e forçando a produção de novas palavras, de novos sentidos onde o seu desejo já possa encontrar lugar e destino.

19. Bhabha, H. O local da cultura. Belo Horizonte, Editora Universidade Federal de Minas Gerais, 1998 p.40

Nesta segunda alternativa me parece que a existência, diante do sujeito, de diferentes identidades ao qual possa tomar como referência, de diferentes possibilidades identificatórias, terá um papel altamente positivo e facilitador para a sua batalha. Assim, voltando novamente o nosso olhar para o movimento gay, ou mesmo para o movimento negro, é a força do grupo, a afirmação coletiva da diferença que fornece a cada sujeito em particular as palavras que ele precisa para construir uma nova trama fantasmática onde o seu desejo tenha lugar e destino. Muitas vezes, essa luta – e no caso dos grupos minoritários isso é muito interessante – usa alguma coisa como táticas de guerrilha: quando a comunidade homossexual assume signos de virilidade como o corpo musculoso ou o bigode e os transformam em signos de reconhecimento de uma identidade gay o que está em jogo é uma afirmação da diferença por uma certa subversão – para não falar perversão – dos signos de reconhecimento que outrora marcavam o discurso dominante heterossexual e servia para estigmatizar os que não os possuíam.

É importante no entanto destacar que o estabelecimento e afirmação da diferença só servem aos propósitos da dominação quando essa diferença é definida, estabelecida, pelo discurso colonizador, enquanto mecanismo de exclusão e justificativa da submissão do outro ao seu código de valores, estabelecendo aí a relação de poder. Se é o colonizado que enuncia – e reafirma – essa diferença pura, que nega a predominância, a superioridade e verdade da lógica dominante, ela tem efeito contrário, reativo, afirmativo – black is beautiful, it’s ok to be gay. A diferença, quando enunciada pelo dominador, pressupõe no dominado o desejo de suprimí-la, de ascender à normalidade, de pelo menos parecer branco, europeu, heterossexual. O discurso do dominador busca a eficiência máxima ao pretender que o dominado, o excluído, deseje ser aceito, se proponha a fazer todos os esforços para negar, superar, a sua diferença.

Para finalizar, podemos resumir de alguma forma as nossas idéias dizendo que os movimentos de direitos das minorias, fundados em identidades específicas – a identidade gay ou negra, por exemplo – criam uma linguagem e códigos de reconhecimento alternativos, estruturados sobre o desejo do grupo; o que acontece é que se esta língua, em sentido bem amplo, consegue ultrapassar o limite do gueto e forçar uma interlocução com a linguagem dominante, o senso comum, ela acaba por forçar o confronto e portanto a negociação.

Confronto aqui precisa ser entendido em um sentido mínimo, dos pequenos enfrentamentos do cotidiano, os pequenos desafios de convivência entre os diferentes; momentos em que a satisfação do meu desejo ou a simples consecução de um objetivo prático e/ou imediato me exige o diálogo, a aceitação de um outro que não pode ser descrito no meu código atual ou de origem – às vezes o que outro diz não tem tradução na minha língua, portanto se eu precisar mesmo conversar com ele vou precisar falar a sua língua, me identificar com ele em certa medida, aprender muitas palavras novas – nesse processo posso acabar me vendo a partir de um outro lugar, colocando em questão o código e sinais de reconhecimento que engendravam a minha identidade e talvez assim enxergando novas possibilidades de enunciar o meu desejo, que nesse meio tempo já se transformou.


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