SEGREDO E PODER

Helena Besserman Vianna

Os atos de cada indivíduo, sua coerência ou incoerência em relação ao que falam, pregam ou proclamam, as atitudes diante de amigos e adversários, é sempre o melhor juiz do que realmente é cada sujeito - em suma, estas posturas, caracterizam o perfil de grandeza ou pequenez do lugar que cada um ocupa na história, isto é, na vida. Coesão e cisão, associação e dissociação, gravitação e repulsão - a sabedoria da Natureza, reside no engenho em articular forças opostas para obter equilibrio. Líderes verdadeiros são aqueles capazes de acrescentar, somar sem subtrair, identificar sem eliminar diferenças.

Este retrato quase ilusório do exercício do poder será apenas uma utopia? Ou, retrata a necessidade dos indivíduos diante das frustrações com que se defrontam nas crescentes dificuldades sócio-político-economicas de seu cotidiano , em busca de um verdadeiro líder-Pai-Deus, que implante e assegure felicidade e solidariedade entre os homens?

Segredo e Poder, ou melhor ainda, o Poder do Segredo, é expressão ambígua e polemica, pois pode representar tanto proteção quanto ameaça. O segredo como fonte de poder, ou seja, o poder do segredo, está admiravelmente ilustrado na trama que se desenrola em torno da carta do livro de Edgar Poe - "A Carta Roubada".

Revelar a existência do segredo é uma ameaça ao poder instituído por ele em qualquer forma de sua utilização. Por outro lado, a revelação do segredo, é também, um contra-poder que ameaça o poder.

Uma das formas mais eficazes e utilizáveis durante algum tempo para a manutenção de segredos, são os arquivos mantidos em organismos que os tornam secretos. Arquivos que deveriam ser depositários e guardiães de documentos, dossiers antigos, etc., ou seja, uma parte da história de sua própria história. Entretanto, os arquivos não escrevem as páginas da história. Eles descrevem o que é importante para qualquer instituição, conhecendo ou escondendo fatos ou responsáveis, fatos estes, geralmente, de ordem ética e que podem comprometer a boa imagem de um país ou de uma instituição. Os arquivos, em geral muito úteis para a reconstituição do poder dos segredos em determinadas épocas, podem, entretanto, serem transformados em cinzas como os arquivos de Auschwitz, ou podem desaparecer como aconteceu com o massacre de negros nos Estados Unidos na década de XX, ou, simplesmente sumirem como tantos arquivos da história recente e passada do Brasil, e até mesmo como se deu com alguns documentos de arquivo da IPA, e da historia do movimento psicanalítico, sempre na tentativa de "assassinar a memória".

Os arquivos intimamente ligados ao poder do segredo, podem conter tanto a verdade como a interpretação do real de quem o confecciona. A subtração de dados importantes, as confissões epistolares, se misturam sem se separar, e sem que possamos, na mesma proporção nos preservar da intensidade que estas frestas possam provocar. Essa oscilação dos arquivos, tão investida do real, apesar de suas possíveis mentiras, convida à reflexão.

É no enunciado das respostas que se solicita a um arquivo ou à memória, ou nas explanações verbais, que se encontra o espaço em que se esboça a forma na qual os comportamentos pessoais e coletivos se misturam com as condições formuladas pelo poder ou pelo poder dos segredos.

No mundo de hoje, dominado que está pela economia liberal, o homem e seus valores estão reduzidos a objetos de mercadoria. Os valores éticos, políticos, e, evidentemente econômicos, passaram a ser contabilizados na moeda dominante, ou seja, em dólares. A desventura desta situação, que aliás não é nova, consiste em transmitir à sociedade em geral, a convicção de que esta suposta objetividade da existência de cada um, se constitua na plenitude do humanismo. A impostura dos segredos ou das notícias deformadas ou mesmo de flagrantes mentiras, só pode ser mantida, utilizando-se o poder do esquecimento e o recalque, mecanismos mentais que eliminam da sociedade a "existência de uma mente autônoma com capacidade para pensar e questionar." A conseqüência não é apenas o declínio do pensamento, mas seu recalque, como já foi assinalado por Jacoby, quando ressalta que a "amnésia social é o recalque que a sociedade realiza à lembrança de seu próprio passado. É a conveniência psíquica da sociedade de conveniência."

E no Brasil?

Salta à vista que a atual crise de poder que o Brasil atravessa, embora intimamente correlacionada com as dificuldades da economia mundial, tem suas próprias características, apresentando-se, talvez, pela primeira vez em sua historia, como uma crise de poder e do poder de segredos, que é simultaneamente econômica, social, política e ética. No entanto, não há quatro crises. O que vivemos é uma única crise de muitas dimensões, onde a solução para qualquer um dos vértices, depende da solução dada aos demais. Estamos vivendo uma crise que atinge violentamente o poder aquisitivo real de camadas sociais que até vinham se acomodando a um melhor nível de vida, conquistados anteriormente, tal como a classe média, os operários especializados, etc., que também se reflete no ofício de psicanalista. Os milhões de brasileiros conduzidos ao desemprego e a falta de perspectivas futuras, acarretam modificações na vida de outras faixas sociais, como as chamadas classes mais favorecidas, que, também ameaçadas pelo desemprego, sobressaltadas pelos assaltos e seqüestros, cerceada nos lucros obtidos na ciranda financeira e na manutenção de muitos de seus privilégios, passam a ficar ou a se sentir carentes, tornam-se mais reclusas, mais vulneráveis às depressões do mundo moderno. Todos nós conhecemos a crescente freqüência de diferentes modalidades de depressão, mesmo entre os psicanalistas, seja por decepção no que concerne a seus anseios, seja por carências outras (especialmente de pacientes particulares) nas quais é cada vez mais freqüente a auto- estima grandemente diminuída que busca saída na alienação quanto aos acontecimentos que os rodeiam, voltando-se somente para seus interesses particulares que desembocam em indiferença emocional, com conseqüente agressão tanto ao mundo externo quanto interno de cada um. Ou ainda em paliativos tais como buscar especialistas para fazer "marketing" da psicanálise, etc. O fato é que a crise de poder e de seus segredos, dentro e fora das instituições psicanalíticas, aniquila com as mistificações e atua na percepção e memória de todos, fazendo-os até recalcar o conhecimento de que o Brasil real é um país que tem potencial para crescer e se desenvolver, mas antes deve superar e resolver inúmeros e grandiosos problemas sociais.

Outro aspecto interessante da vida política e do exercício do poder no Brasil em seus quase 500 anos, é que, como uma das conseqüências do regime ditatorial implantado em 1964, a crise que hoje nos atinge em todos os setores, padece de dimensão ambígua: a modernização crescente de nossa sociedade exige formas mais democráticas de organização e institucionalização. No entanto, os interesses elitistas que se sentem ameaçados por esta democratização, são ainda suficientemente poderosos para impedir que ela se complete. Como conseqüência, temos a nação vivendo a grande frustração de saber existir uma vontade imensamente majoritária por um regime democrático e ser obrigada a alcançar sua demanda por alamedas estreitas e muitas vezes arriscadas, que exigem sofisticada racionalidade no seu percurso, como seja o de aceitar leis e projetos que até podem estar corretos, sem uma discussão ampla ou transparente com a sociedade. Guardadas as devidas dimensões não é o que se passa no que concerne a "formação" de psicanalistas nas autodenominadas instituições "oficiais" como únicas herdeiras de Freud?

Durante o regime ditatorial militar, por exemplo, a tortura a presos políticos, serviu à ideologia das ditaduras militares, com maior ênfase no período chamado de ""milagre econômico", cujos conceitos teóricos fundamentais da doutrina de segurança nacional se expressavam na divisão do mundo em dois blocos antagônicos, no alinhamento automático e diplomático do Brasil aos Estados Unidos, no sacrifício parcial de nossa soberania em benefício do conceito de interdependência, no monopólio da força no subcontinente americano confiado ao Brasil, e na luta contra todas as ideologias socialistas, inclusive as que se manifestassem dentro da Igreja. A tortura a presos políticos foi se sofisticando, especialmente na década de setenta, passando a possuir todo um corpo técnico especializado, não dependendo de eventual brutalidade perversa ou de sadismo vocacional de um militar, de um médico ou de um psicanalista.

Revelar a existência da tortura a prisioneiros políticos nos anos de ditadura militar no Brasil e em outros países da América do Sul através do descerramento de documentos guardados em arquivos até então secretos, constituía-se em ameaça, que, de certa forma permanece até hoje, apesar de vivermos em regime democrático.

No entanto, em relação a utilização maléfica do poder, o segredo da psicanálise é sua relação com a verdade. Verdade que não pode se enclausurar no exercício "privado" do ofício de psicanalista, se não se mantiver também em ligação com o social e político. Entretanto, no "setting" psicanalítico, defendemos o segredo da privacidade vivencial de cada sujeito, ainda que o poder político recorra a todos os meios a seu alcance na tentativa de abolir a privacidade individual. Embora bastante complexas, coloca-se sempre para o psicanalista, a questão das relações entre o que é íntimo e particular de cada um e o que é público.

Assim, como situar a responsabilidade do psicanalista e sua ética, diante do segredo e do poder do segredo?

No que tange a responsabilidade, não pretendo ancorar no porto seguro da explicação fácil e reducionista, construindo fortaleza de alicerces ilusórios e sofistas, na base do "somos todos iguais". (Vide declaração de Amilcar Lobo e outros). Pelo contrário. Penso que cada um de nós deve refletir e tentar obter o máximo de esclarecimentos quanto às suas posições de responsabilidade pessoal tanto na privacidade de seu consultório, quanto nos atos de sua vida pública. Sem esta transparência, as arbitrariedades éticas, morais e totalitárias de qualquer instituição, poderão ser vistas somente como inexorabilidade da natureza humana, - o "mal" será sempre projetado no outro, ou., seremos -levados a colecionar explicações sociais, políticas ou econômicas bem articuladas, para negar o que é cruel mas ao mesmo tempo, da mais alta importância : - a parcela que cada sujeito tem no destino que dá as suas pulsões.

Sem dúvida, trata-se de questão polêmica, uma vez que sei que qualquer um poderá contestar-me apelando para a concepção de que a noção de inconsciente, dissolveria a noção de responsabilidade. Isto pode ser entendido, pelo que acabo de expor, ainda que em linhas gerais, afirmando-se que se o sujeito é levado a funcionar por determinações que escapam a sua consciência, pode, então, ser colocado a serviço de posturas e idéias que só lhe parecerão inadmissíveis, a posteriori. Quando esta postura é adotada, encontra-se facilidade imediata para explicar "soi—disant" psicanalíticamente, qualquer ato - desde o "erro por boa-fé", até a "banalidade do mal", da "servidão humana", até o fanatismo religioso, político ou ideológico.

Entretanto, se uma responsabilidade é concebível a partir da psicanálise , esta responsabilidade é, sem dúvida , incalculável. No entanto, é a responsabilidade calculável que rege cada sujeito sóciopolítico, sujeito do Direito, sujeito da ação ,etc.(René Major).

O que diferencia então a responsabilidade por violência e a coerção exercida por poder destrutivo de forma consciente e racionalmente premeditada, de crime, erro, ou boa-fé, diante do inconsciente? É certamente, a passagem ao ato.

Penso que na ânsia de exercer o poder, subjugando os subordinados com promessas de feitos sedutores e, especialmente, com o poder da manutenção de segredos, a RESPONSABILIDADE de cada sujeito, deve ter a marca do singular.

Responsabilidade não existe por procuração. Todo sujeito que comete transgressões de respeito e ética contra seu semelhante ou contra a sociedade, utilizando-se do poder ou do poder de segredos para manter o poder, tem responsabilidade cívica e psíquica por seus ATOS, sejam estes cometidos em estado julgado de embriagues mental, ou executados com fria premeditação.

"Não ceder ao seu desejo" – recurso que nos ensina Lacan e já anteriormente advindo de Freud, não deve ser exercido por psicanalistas, no abrigo de uma posição confortável no seio de qualquer instituição, qualquer que seja sua orientação teórica. Pelo contrário. Ainda assim, o que observamos na historia e progressão de diferentes movimentos psicanalíticos, história que em verdade ainda não foi plenamente contada, é a utilização da instituição como guarida para o exercício do poder e seus segredos, quase sempre inconfessáveis, ou, na melhor das hipóteses, guardados no mais absoluto silencio, o mais longo tempo possível. (Vide caso Kemper-Cabernite-Lobo-presidentes da IPA, COPAL, etc., como um exemplo-sintoma).

O que pode o psicanalista dizer sobre estes fatos de seu lugar como psicanalista, sem se desviar do conhecimento que deve ter das facetas do inconsciente?

E, no campo político, pode o psicanalista, em nome de sua necessária "neutralidade benevolente" em seu trabalho privado, esquivar-se da confrontação da ética do sujeito face aos Direitos do Homem?

Penso que a subjetividade, sempre que possível, deve ser conduzida ao conhecimento da objetividade. Dito de outra forma, levar a subjetividade a conjugar-se com a objetividade é ficar livre do poder de segredos que oprimem e ser livre para pensar, falar e questionar o que a objetividade representa, a sociedade e a historia. Quando a praxis política e pessoal é alicerçada somente na subjetividade ou em "slogans" abstratos, tem-se como conseqüência o aprisionamento da vida real. Por conseguinte, deixo para futuros questionamentos a questão que proponho- ou seja, a de que os psicanalistas devem se manter sempre sensíveis à tensão que existe entre o pessoal e o político, sem abdicar de um deles ou reduzir um ao outro, mesmo em situações do poder do segredo, particularmente quando o poder é exercido maléficamente para os que dele dependem em seu desenvolvimento, como é o caso da maioria das instituições psicanalíticas.

Repito uma citação de J.R. Freyman (Le sujet face au totalitarisme- Apertura,1989,Ed.Springer –Verlag) que ouvi recentemente proferida por um colega checo -Dr. Engel, que participou comigo em Tours (out,1998) em jornada sobre "Ética e Psicanálise". ..."Mesmo que o totalitarismo e os atos de exercício arbitrários e maléficos do poder e da manutenção de segredos que criam o poder de algumas instituições psicanalíticas não sejam conceitos psicanalíticos, conduzem consigo a marca da denegação e da castração, o que não deixa de produzir efeito na constituição do desejo."

Por outro lado, o processo psicanalítico deveria estar em oposição radical aos atos totalitários ( dentro e fora das instituições psicanalíticas), uma vez que este processo e, especialmente, seu término, conferindo ao desejante a posição de psicanalista, consiste exatamente na obtenção de liberdade interna para questionar, não se submeter cegamente, e , abstrair-se da posição de sujeito suposto saber, vinculado a um Mestre (didata?) produzindo teorias psicanalíticas que passam a se constituir em verdadeira teologia para seus discípulos.

Ainda que algumas sociedades psicanalíticas tenham se atualizado democraticamente em seus padrões de ensino e transmissão da psicanálise bem como no relacionamento com outros saberes, esta postura não torna menos significativa a atividade deliberada de cada psicanalista.

Qualquer psicanalista pode produzir simultaneamente o melhor e o pior na clínica, na teoria, nos movimentos institucionais ou em suas relações com o social, com a filosofia, as artes, e com os progressos atuais da biologia ou da genética – temas que estão sendo aqui discutidos e que serão também debatidos nos Estados Gerais da Psicanálise, na Sorbonne, em julho de 2000.

"Um espírito livre não pode passar sobre os acontecimentos e os seres, um olhar indiferente", escreveu Raymond Aron.

Como tal, o psicanalista que se recusa, em nome de qualquer DOGMA, a tomar posição diante do que pode ser intolerável ou que venha a macular a historia de sua vinculação psicanalítica institucional ou independente, priva-se, na verdade, de sua liberdade, renuncia a sua responsabilidade ética humanitária e adota postura que eu não hesitaria em qualificar como totalitária.

Por outro lado, o distanciamento cada vez mais alarmante de muitos psicanalistas das noções fundamentais concernentes ao inconsciente, as funções das pulsões (de vida e amor e de morte), a prática maléfica do poder exercido através da transferencia tanto no "interior" de seu ofício ou em suas atividades "públicas", aliadas a manutenência no gosto pelo autoritarismo em cargos institucionais e no resguardo supostamente permanente do poder dos segredos, não serão fatores dos mais importantes no que hoje se debate como "crise da psicanálise?"

Helena Besserman Vianna

(Versão com modificações de palestra proferida em Buenos Aires- setembro de 1999, intitulada "Secreto Y Poder", em homenagem aos 80 anos do mais democrático dos presidentes da IPA , - Dr. Horacio Etchegoyen).


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