O DSM-IV E O OBJETO DA PSICOPATOLOGIA
OU
PSICOPATOLOGIA PARA QUÊ?

Mário Eduardo Costa Pereira (1)

O propósito deste trabalho é o de lançar idéias que auxiliem na delimitação do objeto da psicopatologia e que chamaremos, provisoriamente, de "objeto psicopatológico".

O método escolhido será o de uma aproximação negativa, através de uma via crítica, escolhendo por interlocutor o representante maior da tendência atualmente hegemônica entre as abordagens racionais do sofrimento psíquico: o DSM-IV.

Nosso esforço será o de conduzir a perspectiva pragmático-operacional, sustentada por aquele Manual Diagnóstico, aos limites de sua própria racionalidade, na esperança de fazer brotar daí uma visão mais clara do campo psicopsicopatológico naquilo que este tem de específico.

Cabe explicitar desde início que tal proposta metodológica não implica a suposição de que o objeto psicopatológico esteja já aí, como dado a priori ao fato clínico e simplesmente aguardando que alguma teoria adequada possa trazer-lhe à luz em toda sua consistência de realidade. Nem, tampouco, supõe a radicalização da posição oposta, e mesma antagônica, que consistiria em pensar que o objeto psicopatológico é apenas uma construção histórica e social e que sua delimitação deveria obedecer tão-somente a uma necessidade pragmática organizada em função das exigências da prática e da ética.

Entre esses dois extremos, nossa abordagem partirá de um campo referencial bastante concreto: o das práticas clínicas efetivas realizadas com o homem que sofre. No caso deste trabalho, acompanharemos o recorte específico do campo do psicopatológico introduzido na clínica médico-psiquiátrica pelo DSM-IV.

Para tanto supomos, tal como pretendia Jaspers, que a Psicopatologia não constitui em si mesma uma disciplina médica e que o próprio enfoque médico já implica um recorte particular desse objeto tão dificilmente delimitável que é o psicopatológico.

Consideramos, com Pierre Fédida (2), que do ponto de vista das práticas contemporâneas, a Psicopatologia constitui uma vasta encruzilhada onde se reunem disciplinas provindas dos mais diversos horizontes metodológicos e epistemológicos em torno das condições de sofrimento mental. Cada uma dessas disciplinas imprime um recorte específico sobre este campo intuitivamente delimitado, visando determinar o seu próprio "objeto psicopatológico".

Decorre daí que categorias amplas, de vastíssima tradição na história das concepções racionais sobre o padecimento psíquico, tais como "melancolia", "paranóia", "angústia" ou "mania", recebem delimitações teóricas completamente diferentes segundo a disciplina que as aborda. Ao mesmo tempo, estas entidades clínicas mais "tradicionais" convivem com outras inteiramente singulares e que só fazem sentido no interior do registro teórico-epistemológico que lhes deu origem: noções como as de "transtorno de pânico", "neuroses narcísicas" ou "angústia vital" exemplificam tal fato.

É neste terreno de interface, de enganos e de sobreposições que a proposta do DSM-IV vem consolidar sua especial racionalidade, a qual ocupa posição hegemônica e organizadora das concepções científicas e mesmo culturais sobre o sofrimento humano. É em função de seu papel axial na psicopatologia contemporânea que voltamos nossa atenção crítica aos fundamentos do DSM.

Buscaremos, assim, apresentar de forma sintética os pressupostos do DSM-IV para, em seguida, examiná-los criticamente, tendo em mente as seguintes questões:

1) Qual a pertinência e as conseqüências de tal recorte do objeto psicopatológico para as práticas científicas e clínicas contemporâneas?

2) O quanto os sucessos e limites de tal delimitação operacional do campo da psicopatologia permitem pensar a especifidade do "objeto psicopatológico"?

Para a psicanálise, em particular, a elucidação dessas perguntas é decisiva não apenas para poder situar a especificidade de sua própria abordagem psicopatológica, como também para fundar seu diálogo intercrítico com as demais disciplinas do campo da psicopatologia em bases que superem as meras proposições de caráter político e ideológico (e, por que não, mercadológico).

Como ponto de partida de nossa análise da proposta do DSM-IV, convém lembrar que o próprio termo "psicopatologia" comporta uma fecunda ambigüidade. Fortemente marcado por suas raízes psiquiátricas, "psicopatologia" evoca antes de mais nada a disciplina encarregada da descrição sistemática das formas clínicas e dos mecanismos patogênicos das chamadas "doenças mentais".

Dessa perspectiva, ela estaria fundamentada na observação e classificação minuciosas dos fenômenos psicopatológicos, estes concebidos como realidades consistentes por si mesmas e apresentando regularidades que permitem generalizações através de um processo de indução.

A descrição clara, fina e precisa da "entidade mórbida" (conforme a expressão de Jean-Pierre Falret) constitui a base semiológica de um processo especulativo em busca da etiologia. Convém lembrar que a idéia de que as alterações mentais teriam um estatuto de "doença" constituiu-se gradualmente em psiquiatria, não estando totalmente clara nas proposições de seus fundadores. Bercherie, por exemplo, sustenta em seu livro Histoire et structure du savoir psychiatrique (3) que a abordagem médica proposta por Pinel e Esquirol dos fenômenos psicopatológicos baseava-se na descrição e classificação sistemáticas de grandes "síndromes" psíquicas, sem que a concepção de "doença mental" estivesse ainda definida.

Kraepelin, o grande sistematizador da psicopatologia, radicaliza a concepção falretiana de "entidade mórbida", consolidando de forma definitiva a vocação nosológica da psicopatologia. De seu ponto de vista, trata-se de discernir sob bases clínicas as diversas formas de "doença mental", as quais teriam o mesmo estatuto das doenças físicas tratadas pela medicina.

A revolução jasperiana consistiu em fundar a psicopatologia como disciplina estritamente fenomenológica. Em sua Psicopatologia Geral, de 1913, Jaspers não renuncia propriamente à noção de "entidade mórbida". Ele apenas a toma de forma heurística, a partir da tradição psiquiátrica, reconhecendo seu caráter impreciso e arbitrário.

Preocupado em evitar qualquer substancialização excessiva da noção de "entidade mórbida", Jaspers passa a delimitar o campo da psicopatologia não mais como o da descrição dos sinais e sintomas das diferentes "doenças mentais", mas como o da busca de "intuições categoriais" oriundas do contato clínico com o doente mental, na esperança de poder traduzir a experiência efetivamente vivida (Erlebnis) pelo paciente, em seu estado de padecimento psíquico. Já no início de seu grande tratado, afirmava Jaspers:

"O objeto da psicopatologia é o fenômeno psíquico realmente consciente. Queremos saber o que os homens vivenciam e como o fazem. Pretendemos conhecer a envergadura das realidades psíquicas. E não queremos investigar apenas as vivências humanas em si mas também as condições e causas de que dependem os nexos em que se estruturam, as relações em que se encontram, e os modos em que, de alguma maneira, se exteriorizam objetivamente. Mas nem todos os fenômenos psíquicos constituem nosso objeto. Apenas os ‘psicopatológicos’." (4)

Vê-se, assim, a concepção jasperiana como inserida em uma concepção médica tradicional de "patologia".

O texto prossegue com o argumento de que os limites entre "normal" e "patológico" são obscuros em toda a medicina, o mesmo se passando entre os campos da "psicologia" e o da "psicopatologia". Daí o fato de Jaspers não dar valor à busca de um conceito preciso de "enfermidade mental", pois tal insistência seria arbitrária, infrutífera, impedindo o avanço do trabalho do psicopatólogo. Seu esforço seria o de tornar compreensível, tanto de um ponto de vista genético (em relação à continuidade da "história interna da vida", para usar a expressão de Binswanger) como das condições atuais do quadro clínico, as vivências psicopatológicas do paciente.

Aos processos irredutíveis à compreensão, oriundos de uma causalidade natural, Jaspers, acompanhando Dilthey, propõe que se busque sua explicação.

O método fenomenológico jasperiano fundaria a psicopatologia como disciplina científica e forneceria as bases para o conhecimento psiquiátrico deste século.

A psicanálise traz, com Freud, a desanaturalização dos processos psicopatológicos e, sobretudo, uma "desnosologização" da psicopatologia. Passa a ser concebível uma psicopatologia do homem normal, uma psicopatologia da vida quotidiana.

Daí a ambigüidade, de que falávamos, do termo "psicopatologia". Inscrito na cultura como estudo sistemático das doenças mentais, o "pathos" da psicopatologia é igualado na vertente psiquiátrica dominante ao conceito grego de "nosos", a doença em sua materialidade objetiva. Nesse sentido, este uso psiquiátrico estaria mais apropriado se a expressão empregada fosse a de psiconosologia.

De fato, o termo grego "pathos", polissêmico por excelência, remete a três áreas semânticas essenciais e distintas:

- a passividade

- o padecimento / sofrimento

- a paixão

Freud restitui essas três dimensões semânticas ao termo "psicopatologia", que em sua perspectiva passa a ser a disciplina racional das paixões e dos sofrimentos próprios à alma - Psychè – estando esta colocada em posição de passividade em relação a forças internas ao sujeito.

Vemos assim, ao relembrarmos ainda que brevemente os projetos kraepeliniano, jasperiano e freudiano, que o termo "psicopatologia" abriga concepções absolutamente irredutíveis umas às outras, implicando racionalidades distintas e, por vezes, antagônicas. Nesse sentido, seria mais apropriado falarmos de "Psicopatologias", no plural, reservando a expressão no singular apenas para referir a este campo turbulento e inconciliável de encontro das diversas abordagens sobre os mesmos fenômenos diferentemente recortados. O termo "Psicopatologia" aparece, assim, como inseparável dos de "tensão dialética" e de "confusão babélica de línguas" (5).

Diante desse impasse constituinte da própria psicopatologia, o projeto empírico-pragmático que fundamenta o DSM reclama-se do qualificativo de neo-kraepeliniano, no sentido da delimitação precisa das entidades clínicas psiquiátricas.

O Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Psiquiátrica Norte-Americana (DSM) constitui o resultado melhor acabado das propostas empírico–operacionais da chamada Escola de Saint-Louis, liderada por Feighner, Robins e Guze na década de 70. A criação de um sistema operacional de diagnóstico para pesquisa como o RDC (Research Diagnostic Criteria) e, posteriormente, do DSM-III derivam diretamente das proposições daquele grupo.

Diante do panorama de "confusão de línguas" existente entre as diversas disciplinas implicadas na psicopatologia - que, como vimos, freqüentemente chegavam a utilizar a mesma designação para objetos teóricos muito diversos - e diante dos esforços já identificáveis desde o início do século, sobretudo no contexto norte-americano, de unificação da linguagem da psicopatologia, a Escola de Saint-Louis esforçou-se para criar um sistema objetivo, fidedigno e pragmático de classificação dos ditos "transtornos mentais".

O próprio termo "transtorno", tradução para a língua portuguesa do original inglês "disorder", já expressa um esforço de "descontaminação" da linguagem nosográfica de suas tradicionais raízes médicas. Era necessário constituir um sistema idealmente "ateórico", não submetido aos pressupostos de qualquer uma das inúmeras disciplinas concorrentes no campo da psicopatologia. Retornava-se ao esforço de Kraepelin por fundar clinicamente os conhecimentos sobre o padecer mental, através da criação de uma nosografia rigorosa e objetiva.

Contudo, certas diferenças são marcantes entre o projeto kraepeliniano e o do DSM. Enquanto Kraepelin necessitava pensar as entidades psicopatológicas como equivalentes às doenças orgânicas, seguindo o famoso aforisma de Griesinger segundo o qual "as doenças mentais são doenças cerebrais", tudo se passa diferentemente na perspectiva do DSM.

Inspirado em um pragmatismo radical, o DSM não necessita, de forma alguma, da noção de "doença mental" para fundamentar seus procedimentos. Tanto é assim, que o termo "doença" praticamente desaparece das categorias do DSM, substituído por "disorder"- o transtorno: algo está em desacordo com uma "ordem" operacionalmente definida.

O que o DSM busca como objetivo maior é a fidedignidade da categoria diagnóstica: diante de uma mesma configuração sintomatológica, clínicos e pesquisadores oriundos de diferentes orientações teóricas e de ambientes culturais diversos devem poder chegar ao mesmo diagnóstico. Para tanto, um sistema ideal de classificação deveria fornecer critérios explícitos, operacionalmente definidos, diretamente verificáveis e que reduzissem ao mínimo o uso de inferências teóricas não-diretamente observáveis para a definição de cada quadro mental. O DSM aspira, dessa maneira, constituir uma forma pragmática de superação dos impasses colocados pela "confusão de línguas" no campo da psicopatologia.

Explicitamente, o DSM renuncia a ser uma psicopatologia. Ele busca ser apenas constituir um sistema classificatório fidedigno dos padecimentos psíquicos.

Sua racionalidade organiza-se em torno da busca de categorias confiáveis, provisórias, operacionais que permitam a superação dos mal-entendidos terminológicos no terreno da psicopatologia. Seu critério de objetividade para a delimitação das entidades diagnósticas repousa na descrição formalizada do plano empírico dos fatos clínicos. Tal delimitação de categorias psiquiátricas mostrou-se, de fato, particularmente fecunda para disciplinas que operam com uma metodologia empírico-experimental em suas abordagens do sofrimento psíquico, tais como a epidemiologia, a psicofarmacologia, as neurociências e mesmo a programação de emprego de verbas públicas em políticas de saúde mental.

Esta dimensão "sanitarista" remete a uma outro aspecto fundamental da racionalidade do DSM, que tem origem na epidemiologia e na medicina social.

Para organizar de forma satisfatória os investimentos em saúde pública, incluindo-se aqui o campo específico da saúde mental, o administrador deve saber quais são as entidades clínicas mais freqüentes e prevalentes em uma certa comunidade e conhecer a real eficácia das diferentes modalidades terapêuticas disponíveis, de modo que possa estabelecer de forma objetiva as prioridades em termos de relações entre custo e benefício.

Note-se que tal perspectiva considera a medicina uma forma de intervenção concreta na ordem da vida e nas instituições sociais, de onde decorre dimensão ética. O próprio fato do sofrimento mental passa a ser encarado como questão de saúde pública solicitando a intervenção do estado.

Dessa forma, no contexto contemporâneo, balizar a prática clínica pela eficácia torna-se um ideal ético. Surge a necessidade de se demonstrar a eficácia de uma prática para que esta possa ser reconhecida, pelo menos em um plano oficial.

A atual hipervalorização da chamada "Medicina Baseada em Evidências" (MBE), que pretende testar a pertinência de um determinado procedimento clínico através da análise sistemática e rigorosa do conjunto dos trabalhos experimentais que visam testar sua eficácia, reflete a tendência crescente à intervenção do estado e das instituições científicas no campo singular da clínica (6).

Cada vez mais, a MBE assume o papel de legisladora do que é pertinente ou não – e ainda mais – do que é legítimo ou não de se fazer no interior das práticas clínicas. Assiste-se a uma hipervalorização da MBE como forma de proteger os clínicos de questionamentos, sobretudo os com implicações jurídicas, de suas condutas com seus pacientes. O que resulta, na verdade, em uma padronização normativa do que se está cientificamente legitimado a fazer enquanto clínico.

A MBE tende a substituir a clínica pela epidemiologia, decretando, de certa forma, um horizonte da morte do clínico, do terapeuta e do artesão que se dedica à arte de curar. Tal postura apenas radicaliza uma tendência hegemônica desde o século XVII, que concebe a medicina como disciplina fundada na abordagem objetiva das doenças, sinais e sintomas buscando produzir conhecimentos práticos sobre a enfermidade. Dentro desse ponto de vista, não se pode dizer que existe qualquer crise de conhecimento ou de produção de evidências em medicina. O que entra em crise é a prática clínica como forma de intermediação entre os conhecimentos gerais das disciplinas clínicas e o singular daquele sujeito que sofre. É nessa forma de racionalidade (7) e de postura ética que se inscreve o DSM.

Não se deve, contudo, supor que as conseqüências de tal forma de normatização das práticas clínicas restringe-se apenas ao campo particular da medicina. Pelo contrário, suas conseqüências são suficientemente poderosas para que se possa antever repercussões consideráveis sobre todas as formas de prática fundadas na clínica.

Daí resulta a necessidade da crítica rigorosa das classificações empírico-operacionais, das quais o DSM-IV é o representante maior, tanto da perspectiva de seus fundamentos epistemológicos quanto de seus usos político-ideológicos.

Contudo, por prudência metodológica, é preciso que não se perca de vista que a análise crítica, e se usamos de uma certa liberdade terminológica – desconstrutiva – de qualquer proposição hegemônica em qualquer campo, expõe-se sempre a riscos consideráveis que podem abolir sua validade.

Em primeiro lugar, uma das fontes de descaminho é a tentativa, geralmente desastrada, de dissimular a dimensão política da própria análise realizada. Nunca um trabalho crítico dos fundamentos de uma doutrina, nem mesmo o projeto lakatiano de um confronto de teorias, implica apenas o exame da consistência das racionalidades em questão.

Na verdade, a dimensão crítica é inseparável do substrato ideológico, e por que não dizer sócio-econômico-cultural, de onde emerge.

Por outro lado, o risco correlativo é o de se manter o debate num plano exclusivamente político, esquecendo-se das questões de fundo.

Uma postura freqüente, mas em geral infecunda, consiste em congelar a abordagem empírico-pragmática do DSM sob a forma de uma caricatura que ressalta seus traços negativos de forma grotesca e nega de maneira totalizante a possibilidade de que qualquer progresso efetivo possa dela advir.

Tal postura de reducionismo fácil simplifica a crítica mas retira-lhe a consistência. E, sobretudo, impede a revitalização dialética da própria crítica, o que seria o benefício esperado de tal procedimento.

O resultado é um esgotamento dos argumentos e a transformação da crítica em uma língua morta, para retomar a feliz expressão de Daniel Widlöcher.

No contexto atual do debate psicopatológico, não basta mais repetir à exaustão que o esforço normalizador do DSM conduz à eliminação do sujeito. A tal ponto simplificada, tal crítica corre o risco do patético e do obscurantismo, pois esquece-se dos inegáveis progressos práticos derivados desse tipo de abordagem.

De outra parte, as disciplinas mais distantes em relação às propostas metodológicas do DSM, tais como a psicanálise, a análise existencial e certos setores mais humanistas da própria psiquiatria, parecem não ter ainda modulado uma linha pertinente de debate e de crítica. Destes pontos de vista, e em particular do psicanalítico, depurada a retórica maniqueísta aplicada sobre aquela abordagem, os argumentos reduzem-se a uma única proposição, repetida indefinidamente, sob a máscara de diferentes apresentações: o DSM inscreve-se numa lógica objetivante, que exclui o sujeito da implicação com seu próprio sofrimento.

Esse argumento parece ao mesmo tempo incontestável, mas parcial. Exigir do DSM que não se inscreva na perspectiva da racionalidade biomédica que o fundamenta, é esperar que ele responda a uma exigência a qual ele absolutamente não se propõe. Sua consistência e seus sucessos relativos repousam justamente na objetividade dos dados produzidos, deixando a questão da interpretação psicopatológica e do uso clínico de seus eventuais achados aos cientistas, aos clínicos e à sociedade. Se isso não ocorre de forma tão transparente na prática e se a influência de fatores econômicos e ideológicos é tão marcante nos usos concretos dados às pesquisas fundadas no DSM, tal fato não pode ser atribuído de forma maniqueísta exclusivamente à psiquiatria operacional, mas também à própria cultura contemporânea e à incapacidade de elaboração de uma resposta crítica suficientemente consistente.

Ainda não temos, por exemplo, um debate minimamente inteligente sobre as conseqüências subjetivas a longo prazo do fato de alterarmos de forma biológica um estado psicopatológico- neste caso, um debate que fuja das petições de princípio e que examine as situações concretas tais como elas se apresentam efetivamente na clínica contemporânea.

Ao invés de simplesmente se fazer o processo fácil dos neurocientistas, rotulando-os de reducionistas biológicos, coloca-se todo um campo de interlocução e de pesquisa sobre a incidência da palavra do médico que apresenta e introduz o fármaco no efeito clínico singular que este pode produzir. Nesse sentido, caberia estudar a tradicional noção de "efeito placebo" e não considerá-la apenas como um dado inelutável a ser incorporado à pesquisa experimental, interrogando seus fundamentos. Sabe-se por exemplo, através de estudos de metanálise, que certos fármacos antidepressivos agem de forma eficaz em 70 a 75% dos casos, enquanto os controles tratados com placebo, no mesmo estudo, respondem positivamente em quase 50% dos sujeitos! O que seria, então, de fato operativo no efeito placebo, que faz com que os resultados com as substâncias ativas sejam por vezes apenas discretamente superiores aos obtidos com placebo?

Correlativamente, poderíamos perguntar sobre um outro elemento clínico evidente, mas sistematicamente desviado da pesquisa farmacológica: o chamado "efeito antidroga", ou seja, sujeitos que por questões pessoais não apresentam os resultados esperados com certo tratamento farmacológico ou que tendem a sentir com muito maior intensidade os efeitos colaterais previstos para aquele tipo de tratamento. Que estranha forma de rejeição é esta que se opõe de forma radical à ação terapêutica de uma droga comprovadamente eficaz?

O estudo dos julgamentos de valor e das concepções ideológicas embutidas na delimitação "operacional" das categorias do DSM, por sua vez, não foi sequer esboçado. Basta lembrar, a título de exemplo a definição pretensamente "pragmática" e "ateórica" dada pelo DSM-IV aos "Transtornos de personalidade": "Um padrão persistente de experiência interior e de comportamento que desvia marcadamente das expectativas da cultura do indivíduo."

De outra parte, à discussão, de nosso ponto de vista absolutamente estéril, sobre se a racionalidade biomédica coloca-se como uma espécie de "avesso da psicanálise", poderíamos pensar as formas efetivas nas quais se dão as experiências clínicas concretas que reúnem essas duas abordagens teoricamente antagônicas.

Para podermos traduzir o que ocorre, de fato quando se trabalha psicanaliticamente em um contexto médico ou mesmo universitário, necessitamos de categorias menos definitivas, menos estritas e mais cheias de nuances, tais como as de "interstício", "ambivalências", "clivagens", "sobreposições", "convivência de contrários e contraditórios", enfim, de uma terminologia mais apropriada ao panorama das contradições e das paixões humanas.

Essas questões, trazidas aqui a título de exemplo, podem multiplicar-se indefinidamente e de forma fecunda, desde que consiga-se sair dos pressupostos preconceituosos e análises cristalizadas às quais, desafortunadamente, já nos habituamos neste campo. O projeto empírico-operacional do DSM traz, sem dúvidas, conseqüências éticas e práticas extremamente significativas, solicitando um esforço renovado de crítica criativa, que denuncie os abusos ideológicos e que aproveite inteligentemente de seus progressos efetivos. Torna-se, pois, urgente para a constituição de uma Psicopatologia apta a responder aos problemas contemporâneos, que possam ser criados novos e inusitados objetos de pesquisa e que surjam, conforme propõe Pierre Fédida, novas curiosidades capazes de revitalizar o debate psicopatológico.

Se retornamos ao nosso ponto de partida, vemos que a delimitação pragmática de categorias nosográficas pode constituir um progresso do ponto de vista de algumas necessidades práticas, mas não substitui nem muito menos torna superada uma problematização propriamente psicopatológica do sofrimento mental. Dessa perspectiva, o chamado "objeto psicopatológico" só pode - e só deve - ser definido de forma ampla, referindo-se à noção intuitiva das diferentes formas do padecer humano, deixando-se a delimitação formal ao cargo de cada uma das disciplinas que dele se ocupa. O que constitui, nesse mesmo movimento, a psicopatologia como campo de tensão de modelos, de diálogo intercrítico e de constante exigência de reengendramento epistemológico.

Finalmente, é preciso lembrar que o campo concreto da clínica é o palco onde ocorre o embate não-redutível a qualquer síntese harmônica do universal com o absolutamente singular.

Dessa perspectiva, o próprio campo da clínica deveria ser descrito como "psicopatológico" e dever-se-ia tratar dos padecimentos próprios ao praticamente exposto a estas enormes e irredutíveis tensões.

Decorrem daí importantíssimas conseqüências:

(a) A instalação de uma "contradição interna" a cada vez que uma prática clínica resolve imprimir à força seus postulados universais a um sujeito particular. A irredutibilidade do segundo aos primeiros cria uma tensão que retorna necessariamente seja no campo da clínica ou nos fenômenos da vida privada.

A escuta atenta desses fenômenos de "insubordinação" é um elemento indispensável para o desvelamento de uma paixão singular que não se cala e cuja acolhimento no plano teórico constituiria, aí sim, o terreno próprio de uma "psicopatologia" digna deste nome.

(b) Os progressos ditos científicos por via da observação, descrição, formulação e experimentação de hipóteses e generalização indutiva não podem ser simplesmente descartados do campo da clínica sob risco de um insuportável obscurantismo e de colocar os partidários dessa perspectiva uma posição de defensores retrógrados do passado.

Coloca-se, isto sim, o problema da elaboração teórica dessa tensão universal-particular no campo da clínica das paixões.

E por último, mas não menos importante, a psicopatologia, do fato mesmo de sua ancoragem na clínica, não pode resumir-se a uma ciência do geral do padecimento psíquico, mas deve esforçar-se ao projeto pós-moderno de dar conta do sofrimento singular, tal como ele dá-se a conhecer nas condições particulares de observação de nossas práticas clínicas.

Isso é todo um projeto, de futuro incerto, mas que depende da fecundidade dos debates que poderão, eventualmente, dar-lhe consistência concreta.

NOTAS

1 Psiquiatra, psicanalista e professor do Dpto. de Psicologia Médica e Psiquiatria - UNICAMP. Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade Paris 7. Diretor do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da UNICAMP.

2 P. FEDIDA & D . WIDLÖCHER., "Présentation", Revue Internationale de Psychopathologie, 1990, 1, pp. 3-4.

3 P. BERCHERIE, Histoire et structure du savoir psychiatrique, Paris, Ed. Universitaires, 1991.

4 K. JASPERS [1913], Psicopatologia Geral, Rio de Janeiro, Atheneu, vol. I, p. 13.

5 Conforme S. IONESCU, Quatorze approches de la psychopathologie, Paris, Nathan, 1991.

6 Sobre o problema da "Medicina Baseada em Evidências" remetemos à tese de doutorado de Amarillys Z. Trana intitulada A semiologia biomédica e seus limites: desvendando caminhos entre o sutil e o evidente e apresentada em abril de 1999 no Curso de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da FCM/UNICAMP.

7 Utilizamos aqui a noção de "racionalidades médicas" desenvolvida pela profa. Madel T. Luz. Grande parte das idéias aqui expostas sobre as implicações da BEM são aplicações para o campo da psicopatologia das teorias da Profa. Luz sobre as práticas médicas contemporâneas.

Mario Eduardo CostaPereira
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