Sobre a (não)condução de uma análise

Tania Inessa Martins de Resende

Luiz Augusto Celes

 

A experiência que se põe

Em trabalho mútuo de atendimento e supervisão, este texto encontrou inicialmente o seu motivo e o seu tema. O motivo: a questão sempre reiterada da condução de um percurso de formação em psicanálise. O tema, sobre uma outra condução, esta também não menos freqüente e intensamente problematizada: a condução de uma análise. Não se articulam com facilidade essas duas conduções sem que se traga para o ringue de nossa peleja as delimitações, ainda que somente com um objetivo didático, como se diz, entre uma análise didática, como também se diz, e uma análise… (que termo se usaria, "curativa"?). Uma rinha sem fim se anuncia já a partir do enunciado dessa questão. Numa formação, pelo menos duas análises se conduzem: a daquele que se forma, que tem, provisoriamente dizendo, o propósito da formação em psicanálise e aquela, pelo menos uma, que este analista, em formação, pois esta é permanente, conduz. Em ambas, impõem-se igualmente as questões de condução, suponha-se ou não diferenças qualitativas (e adjetivas) entre elas.

O tema que aqui se toma é o que se acaba de anunciar: o da condução de uma análise, com o fim, com o objetivo que é próprio a qualquer psicanálise, não importando sua adjetivação. Posto que esta, a sua adjetivação, não decide por determinações em sua condução, porque não altera seus fins, se não sob o risco de desqualificar a psicanálise de que se trata. Argumento que evidentemente não reduz em quase nada a multiplicidade sob a qual o fim (ou os fins), a meta (ou as metas) de uma psicanálise se tematizam.

Não se está, como aparenta, tomando-se o objetivo de se lançar, este texto, na peleja que acima se insinuou. Pois aqui se assumiu a univocidade de "condução" de uma análise e se decidiu de outra modo a delimitação entre as expressões "condução de uma formação" e "condução de uma análise". A primeira não diz do tema privilegiado que se toma neste trabalho, mas sim do seu motivo. Foi a diferença introduzida no primeiro parágrafo: o motivo que induziu à elaboração deste texto foi o da condução de formação em psicanálise; o tema, é o da condução de uma análise. As conduções da formação e da análise (ainda que possam ser articuladas de muitas e variadas maneiras) situam-se, no espaço desta reflexão, em planos ou lugares distintos. Assim é que, motivados pela questão da formação em psicanálise, numa certa singularidade ambiental em que se encaminha, se abriu a questão da análise, na especificidade de perguntar e interpretar sua condução.

O ambiente universitário onde a experiência de condução da análise se deu (ainda que essa experiência ela mesma não seja aqui narrada, mas somente alguns de seus efeitos sobre nossa reflexão) é o mesmo a respeito do qual também se tem desde Freud perguntado por sua adequação à formação psicanalítica. Este ambiente mostrou-se-nos, entretanto, aberto, na qual abertura se fez (faz) nossa dupla experiência: ambas as conduções de que falávamos. Mas não somente as experiências dos autores destas reflexões, como episódio isolado, e, sim, como testemunho (singular é claro) da abertura que na universidade se pode abrir para a experiência psicanalítica.

A universalidade segundo o que se caracteriza esse ambiente parece ter trago contribuição inestimável. E isso se deu a revelia de qualquer esforço de definição do lugar da interdisciplinariedade na experiência psicanalítica. O confronto, mas também uma certa indiferença para com ele, ambos, parecem ter propiciado a abertura de que falávamos. O confronto com posições tão distintas do entendimento sobre a ciência ou o saber, sobre seu modo de experiência, sobre seus procedimentos, técnica e metodologia, e entretanto a indiferença para com isso, sem que se sintetizem ou consolidem, caracterizaram o ambiente da experiência analítica cujo um dos seus aspectos aqui partilhamos.

Este ambiente não foi diferente daquele onde se realizam as diversas atividades próprias à formação do psicólogo, na dispersão que lhe é característica. A especificidade psicanalítica foi constituída na confluência de realizações de disciplinas acadêmicas, estágios de atendimentos psicanalíticos supervisionados, seminários de discussões e de pesquisas em temas de psicanálises e "afins", realizações de trabalhos escritos etc.. Nessa multiplicidade não se descuidou da análise pessoal dos envolvidos e interessados na experiência psicanalítica. Essa porém, esteve, formalmente, fora do ambiente universitário. Não as análises das quais se despertou a reflexão sobre sua condução, mas a daqueles em quem tais reflexões foram despertadas. Isso se deu por condições particulares da instituição universitária onde se desenvolveu a(s) experiência(s) de que este texto é testemunho.

O que merece ainda ser marcado é o fato de que não se teve (tem), em todas essas atividades, o propósito explícito da formação psicanalítica, melhor dizendo, não está presente o propósito institucional da formação psicanalítica; propósito que, ao contrário, é sustentado pelas instituições ou associações autodenominadas psicanalíticas. Mas é que, à revelia e aí inserida, a formação psicanalítica se engendra, se inicia e se desenvolve e se abre para sua continuidade.

No momento em que parecem redespertadas, e desta vez sem o risco intempestivo de serem levadas a suportar o epíteto de "heresias", as práticas e as reflexões sobre outras formas da psicanálise, sobre outros espaços de psicanálise, sobre os diversos caminhos de sua realização apropriada, estas elaborações testemunham uma prática. Não narram a prática, mas, na medida em que podem ser qualificadas apropriadamente de reflexões psicanalíticas, elas dizem do trabalho que foi sua origem, dizem, então, do trabalho psicanálise, na forma, releve-se, do testemunho.

Traz-se então as seguintes reflexões sobre a condução de uma análise, tendo por origem e fundamento a experiência de psicanálise em uma universidade brasileira.

Umas questões sobre o que quer uma psicanálise

Costuma-se definir o objetivo de uma análise como sendo o de tornar consciente o inconsciente. Estamos então falando dos objetivos iniciais postulados por Freud para a análise: partir do sintoma – através da hipnose, da sugestão e, finalmente, da associação livre –,buscar a idéia recalcada. Freud (1925d [1924]) defende a posição de que a regra fundamental da psicanálise houvera, em análise, alcançado seu objetivo, a saber, "levar até à consciência o material reprimido que era retido por resistências" (p. 54). Em 1914, ao perceber que um domínio intelectual sobre o material advindo em análise não era suficiente para que uma psicanálise alcançasse seus fins, fala então de "Recordar, repetir e elaborar", como especificidades de um novo procedimento técnico. Tornar consciente ainda é almejado e é mesmo Freud quem insiste: "Para ele [o analista] recordar à maneira antiga – reprodução no campo psíquico – é o objetivo a que adere, ainda que saiba que tal objetivo não pode ser atingido na nova técnica" (Freud, 1914g, p. 200).

É nosso propósito pensar sobre a finalidade do "trabalho psicanálise" (Celes, 1996). Partimos da suposição geral de que o objetivo expresso de tornar consciente o inconsciente, indiferente às suas diversas versões, pode levar o analista a uma postura de busca de causalidade, a um empenho em dar razões – ainda que inconscientes – para os comportamentos, atitudes, repetições do analisando, que em nada contribuem para se conduzir uma psicanálise no sentido de seu justo fim. A partir da experiência do trabalho psicanálise e com ajuda de alguns autores, discutiremos aspectos sob os quais a busca de causalidade como princípio de condução da análise, até mesmo no miúdo de cada sessão, pode ‘viciar’ o trabalho do analista, desqualificando-o enquanto psicanálise. Num segundo momento, tomaremos algumas considerações de Heidegger para auxiliar no delineamento desse perigo e talvez ler a proposta freudiana em outros termos, apontando caminhos para refletir sobre o aspectos da técnica de psicanálise que dirige e fundamenta a sua condução.

A questão assim colocada emergiu, concretamente, no iniciar de um percurso de analista, como resistência, no sentido mais tradicional de sua compreensão, qual seja, a de interrupção ou suspensão das associações. E uma resistência que primeiramente se anunciou introduzida pelo analista: notou-se que cada vez que seguindo o discurso de queixas dos pacientes – especialmente de uma paciente – perguntava-se o seu por quê inconsciente, a análise parava. Também as interpretações, que, no intuito de dar sentido, visavam uma causalidade (ainda que) infantil, faziam interromper-se a associação. Mas também a resistência de mesmo feitio se mostrou advinda da analisanda: quando essa paciente, quase literalmente, se perguntava "por quê?", a associação era suspensa.

Pontalis (1991) ao discutir a idéia de cura aponta que em psicanálise, por uma espécie de concessão ao modelo médico, muitas vezes limitamo-nos simplesmente a transpor uma causalidade orgânica para uma causalidade psíquica. "Não é fácil pensar diversamente do ‘isto (superficial, visível, enganoso) remete a (profundo, oculto, sabido pelo Outro)’ " (p. 50). Por sua vez, Fédida (1988) também formula essa questão. Em seus termos: "o hipotético levantamento da amnésia infantil – sem a qual, no entanto, uma análise não poderia ser dita terminada – leva o trabalho analítico a permanecer como uma atividade cujo resultado não poderia repousar sobre uma descoberta que o interrompa" (Fédida, 1988, p. 114). O levantamento da amnésia infantil, embora, em algum sentido, objetivo da psicanálise, pois uma análise não poderia ser dita terminada sem esse trabalho, não deve deixar entender que o trabalho analítico repousa sobre uma descoberta que em seu termo o interromperia. Talvez porque não haja nada a ser "descoberto", não existindo causas a serem apontadas.

Kristeva (1996) ao delinear modelos de linguagem que acredita poderem ser extraídos da obra freudiana, aponta um certo movimento. De um modelo de linguagem mais amplo e heterogêneo organizado através da articulação entre categorias lingüísticas (representações de coisas e de palavras) e excitação neuronial (onde as pulsões se apoiam), Freud passa a entender a linguagem segundo um modelo que a autora denomina "otimista". A heterogeneidade do primeiro modelo – onde o psiquismo não se reduz à linguagem, ainda que esta seja sua organizadora – é colocada em parênteses por Freud: "tudo se passa como se Freud simplificasse seu primeiro modelo (...) com vistas a descobrir uma lógica própria ao funcionamento do inconsciente" (Kristeva, 1996, p. 82, tradução nossa). Nesse segundo modelo, o inconsciente fica entendido como traduzível pela linguagem. Este modelo surgiria, segundo a autora, da convicção freudiana acerca da capacidade da fala em associação livre traduzir os conteúdos traumáticos inconscientes. Tal modelo é denominado otimista porque a concepção de o inconsciente estar articulado como uma linguagem fundamentaria uma função de sujeito: "eu" posso o decifrar, "eu" posso descobrir suas regras. "O inconsciente – construção teórica – será por essas duas razões a ‘Terra prometida’ da análise" (Kristeva, 1996, p. 88, tradução nossa). E isso, justifica Kristeva, como resultado direto da intenção freudiana de colocar o inconsciente sob o domínio do consciente. Este modelo repousaria no objetivo da psicoterapia – expresso na Interpretação dos sonhos – de submeter o inconsciente ao pré-consciente. Uma leitura possível dessa argumentação, acreditamos, é continuar pensando sob o signo do furor de encontrar razões: aqui o inconsciente, a terra prometida, que precisa ser decifrado, como causa das diversas mazelas psíquicas, e esse seria o objetivo da análise. O inconsciente assumiria assim o lugar do que é oculto, a razão e a causa que precisam ser elucidadas.

Como fugir desse desejo incessante de buscar causas? Desejo esse que parece emperrar, impedir a condução do trabalho de análise? Não nos parece que seja essa a herança privilegiada e original que Freud tenha deixado, a despeito de sua vontade de fazer da psicanálise uma ciência natural (1).

Entretanto autores tão atuais quanto os exemplificados acima, enfatizam semelhante questão, como se essa ‘denúncia’ precisasse ser rotineiramente feita, como um perpétuo alerta. Retomamos a mesma questão, despertos por alguns impasses de nossa prática, como já observamos, não para respondê-la de maneira cabal, nem para tentar dissolvê-la teoricamente, porque, afinal, tal tentativa resultaria em uma ocultação do risco da desqualificação psicanalítica mencionada, que, ao que parece, é recorrente. Por outro lado, "não dissolver teoricamente" não significa ignorar o problema, dá-lo como inexistente ou furtar-se ao esforço "teórico", atitudes que transformariam as respostas às questões de análise em puro experiencialismo. Em três perspectivas se desdobram essa aparente aderência da psicanálise ao discurso causal e que tomaremos como guias da reflexão que se segue.

Revelar e ocultar

Pontalis (1991) referindo-se à multiplicação dos quadros clínicos derivados de uma morfologia da realidade psíquica dos pacientes denuncia: "continuamos sob o domínio do discurso causal, com o qual, entretanto, o método psicanalítico teve de romper para abrir seu próprio caminho" (p. 60). Figueiredo (1996) em uma belíssima releitura de "Construções em análise" argumenta que as teorias psicanalíticas – como não poderia deixar de ser – estão de certa forma, comprometidas com a tarefa de dar, esperar ou buscar razões, mas que na prática analítica as construções, por exemplo, devem servir como dispositivos des-realizantes. Des-realizantes, no sentido de que não contribuem para a realização de uma história de vida. Sua eficácia, diversamente disto, diz respeito a produção de efeitos no campo dos afetos, não se tratando de construir a história esquecida – recalcada – do sujeito, mas de produzir uma emergência pulsional atual. Essa idéia possibilita pensar a condução da análise que não se guie pelo pensamento causal, ainda que, mas esta é uma outra questão, possa-se reconhecer na análise um "efeito" de historiação.

Heidegger (1977), ao falar de verdade – e ser – como desvelamento que vela, pode ajudar a continuar pensando a condução de uma análise de forma a escapar do princípio da razão. Para esse autor, verdade é entendida como desocultação do ente, mas a clareira onde o ente desoculta é simultaneamente ocultação: "o lugar aberto no seio do ente, a clareira, nunca é um palco rígido, com o pano sempre levantado sobre o qual o jogo do ente se representa (...) A desocultação do ente nunca é um estado que está aí, mas sempre um acontecimento. A desocultação (verdade) não é, nem uma qualidade das coisas no sentido do ente, nem qualidade das proposições" (p. 42). Assim, a verdade é em sua essência não-verdade, pois "pertence à desocultação como clareira o negar-se sob o modo da ocultação" (p. 43). Não só a verdade, o próprio ser da pre-sença (Dasein) não é; ele dá-se, e de tal forma que o ser presenta-se como um dar que joga velado no desvelar. Ou seja o "dar" do dá-se se oculta quando o ser se desvela, nesse sentido, o ser é velado (Heidegger, 1996). Enquanto algo de "verdade" do "sujeito" se desvela em análise, se nos apoiarmos na idéia de verdade desenvolvida por Heidegger, algo necessariamente se vela. Não é difícil imaginar: um aspecto da neurose sobressai em dado momento, uma corrente sexual surge enquanto outras são ocultadas.

Pode-se pensar a ocultação em análise ainda mais radicalmente, a saber: enquanto não é possível tudo desvelar. Assim pode-se entender situar, por exemplo, a idéia de "rochedo" (Freud, 1937c), dizendo da radicalidade do inconsciente, de sua irredutibilidade. O que, tecnicamente falando, tem implicações na (in)terminabilidade da análise. Jamais tudo pode ser propriamente dito, o limite que a análise alcança é a irredutibilidade do inconsciente, talvez até mesmo porque a sua substancialização – recurso, afinal de contas, parente próximo dos meios utilizados para se adotar o princípio de razão, em certas formas da ciência –, não deve ser senão, como alerta desde sempre o próprio Freud, tomado no sentido de uma construção auxiliar, abandonável quando dificulta a elaboração do que se quer. Numa expressão mais atual, pode-se dizer que o inconsciente em seu caráter substantivo deve ser entendido metaforicamente. A respeito do "o que se quer" elaborar com o conceito de inconsciente, se põe desde sua formulação na Interpretação dos sonhos (Freud, 1900 [1899]), e muitas páginas antes do exaustivamente enaltecido Capítulo VII, mais precisamente, da tópica ali expressa (que, diga-se de passagem, tem sido muito pouco objeto de interpretação crítica), "o que se quer" elaborar, repetindo, é o que Freud denomina trabalho. Especificamente na Interpretação dos sonhos, originariamente foi designado inconsciente o trabalho do sonho. Justamente o que, considerado em toda sua implicação, se mostra e se oculta no trabalho de interpretação (de um sonho).

A radicalidade da idéia trazida por Heidegger coaduna-se com a concepção ultimamente privilegiada do inconsciente: está no fato de que não é que "eu" não tenha meios de tudo revelar, que seja uma impotência do "sujeito" que investiga, ou que aprimorando a técnica de desvelar estaremos mais próximos do que se oculta. Aliás, nesse sentido, Heidegger (1995), discutindo a questão da técnica, aponta que esta coloca em perigo a relação do homem com a essência da verdade, pois provoca a entrada de um movimento furioso de tudo desvelar. Um perpétuo desvelamento – este é o perigo que a técnica traz –; logo um encobrimento do ser, pois que não se atém ao que se vela, não considerando que faz parte da essência da própria coisa não poder se desvelar, pois ela é sempre e ao mesmo tempo velada.

Enseja-se a possibilidade de se pensar a condução de uma análise de uma nova perspectiva: ao invés de ter como objetivo buscar a causalidade e a tudo dar sentido, apontar na fala a atualidade do infantil, não enquanto passado, mas como o que se realiza agora. A noção de des-realização empregada por Figueiredo (1996) talvez indique um possível caminho de entendimento da condução de uma análise, que seria de fato uma não condução, um deixar-se levar pela fala, elaborando resistências a essa fala livremente associada sem esperar chegar à "terra prometida".

Inadvertidamente, no entanto, na formulação inicial do parágrafo anterior, fizemos coincidir, e não pela primeira vez neste texto, o objetivo e a condução de uma psicanálise. Não é pelo fato de que, em psicanálise, quando se está falando de uma coisa, está-se falando de tudo. Não se trata, na psicanálise, de um sincretismo das noções e conceitos. É que, no caso específico, meios e fins se diferenciam e coincidem: pois o fim de uma psicanálise, entendida, como por exemplo incansavelmente repete Freud, trabalho de vencer resistência, não coincide com o seu meio entendido como trabalho de associação livre?

Metapsicologia e trabalho de análise

Se o objetivo da análise não se circunscreve a tradução do inconsciente, se o método psicanalítico precisa romper o domínio da causalidade, como o trabalho analítico pode informar a metapsicologia e vice-versa? Essa é uma questão fundamental que se impõe. Como efetuar uma ruptura com o discurso causal que uma teorização parece impor? Como fazer uma teoria que sirva ao trabalho e indique caminhos de sua condução, isto é, que não deixe o trabalho propriamente cego? Como fazer uma síntese que abra caminhos ao invés de fechá-los?

Ao definir a psicanálise como originalmente trabalho de tratamento de neurose, Celes (1998) viabiliza uma aproximação à questão. A psicanálise enquanto metapsicologia seria secundária, vamos dizer assim, frente ao privilégio do trabalho. Mas sabemos que a psicanálise também é teoria, assim o autor, buscando pensar uma relação possível, aponta, primeiramente, que a metapsicologia não é uma generalização do saber da histérica, do saber que o trabalho psicanálise deixa ver. Fazendo uma analogia com o que Freud entende ser o trabalho do artista (impessoalizar o desejo expresso na obra de arte), indica que a construção metapsicológica submete o "saber" – ou o "não querer saber" da histérica –, alcançado no trabalho analítico, às "leis" da ciência, a saber, rigor, conceitualização, universalização, objetividade, coerência. Ou seja, o analista parte da particularidade do saber do neurótico e submete-o às leis da ciência. Segundo o autor, "trata-se assim de ‘des-subjetivar’ o saber ‘subjetivo’ (de sujeito, ainda que o tenha sido de um bizarro sujeito inconsciente) do neurótico e, no mesmo passo, ‘impessoalizar a presença pessoal do analista’ " (Celes, 1998). Se essas rápidas considerações podem fazer uma aproximação à "epistemologia" psicanalítica, que de algum modo acaba por creditar à elaboração metapsicológica (substantivada) o caráter especulativo, convém, no entanto, lembrar que, como rapidamente apontamos acima, a propriedade da fundamentação da "objetividade" psicanalítica está em seu trabalho. Ensejando-se, primeiramente, uma questão "metodológica" e, secundariamente, a questão epistemológica da psicanálise. (2)

Permanecendo na sugestão de que a aproximação entre a construção teórica em psicanálise e a produção do artista indicam uma maneira de se entender como os seus meios e objetivos se afastam do domínio do princípio da razão, outras questões ainda se impõem. Depois de construído, como o saber chamado psicanálise informa, interfere no trabalho analítico? Como convivem teoria e prática, objetividade e subjetividade?

A literalidade da fala que seguimos em cada sessão adquire seu sentido "teórico" somente a posteriori, no relato, e o primeiro relato é o da supervisão, cuja proximidade com a teoria, isto é, de modo mais preciso, com a tematização, ainda está muito longe de ter sido caracterizada. Apesar desse problema em aberto, talvez permanentemente em aberto, se mostra que, em cada sessão, é, de alguma forma, um eterno reinício de se ater à fala como novidade o que está em jogo, na condução de uma psicanálise. A questão, no entanto, ainda se impõe: Bem sei ser a fala do analisando a fiança de minha escuta, mas a teoria, mesmo assim, não dirige a atenção livremente flutuante?

Elaboração e temporalização

Se a finalidade do trabalho psicanálise não se limita a meramente buscar o passado e talvez nem assim se caracterize, o que conduz (se é que se conduz) a análise? Talvez a idéia de elaboração que Freud introduz em 1914 possa ajudar. Freud dedica os últimos parágrafos do seu texto à elaboração. Um tempo para elaborar postula-se como necessário: reelaboração da resistência. Que tempo é esse? A que se refere um tempo para elaborar? Seguir essa questão parece ser um percurso interessante para se pensar o trabalho de análise.

No texto de Freud agora indicado, surge ainda junto com o conceito de elaboração uma nova forma de entender o tempo em análise. Na solicitação psicanalítica de não mais se buscar o passado e dedicar-se, ao invés, à fala atual, quando em transferência, anuncia-se uma mudança no entendimento da temporalidade em análise. A associação livre – que, mesmo enquanto recorda, é atual – pode abrir, manifestar a repetição, sendo possível então elaborá-la(?!), para que essa repetição atual torne-se passado. A recordação perde a primazia porque ela supõe algo passado. Na análise tudo é presente; no decurso da análise é que é possível dizer da recordação, fenômeno que Freud (1919e), surpreendentemente compreende como sendo o partido que o analista deve tomar a favor do infantil. Talvez não seja ir rompendo resistências para chegar a algum lugar, mas para elaborar a repetição atual. Não há um fim, há um trabalho incessante.

Busquemos novamente o auxílio de Heidegger. Passado, presente e futuro são modos específicos do presentar do ser. O ser acontece, não aleatória e indeterminadamente, mas de forma destinada. O destinar do ser – que não se trata de maneira alguma de determinação - ganha seu sentido no vigor de ter sido e no projeto. O passado que se presenta tem peso, destina, está presente, mas como vigor de ter sido. O futuro ao se presentar como ainda-não-presente, como projeto, dá sentido, destina. O recalcado – poderíamos pensar – não simplesmente vige, mas vige de um modo próprio que se presenta. Não seria então apontar um passado, mas a atualidade de um passado que agora se presenta. Elaborar não o passado, mas elaborar na/sobre a associação livre que percorre o recalcado, em transferência.

Stein (1997), discutindo Heidegger, enfatiza o entrelaçamento e os modos próprios em que o tempo se dá e sua relação com o ser-aí (pre-sença). O ser-adiante-de-si se assusta com a finitude aí implicada e se volta à facticidade do passado, o estar-jogado; a limitação de não poder ter escolhido seu mundo. Frente a essa dupla totalidade - ter que ser sem escolher e ser para morte sem poder impedir - o ser-no-mundo se refugia na ocupação; se ocupa para não se dar com a finitude representada pelo passado e futuro.

Se entendermos a neurose inscrita no domínio da ocupação, do que se presenta na atualidade repetidamente, ela fala não só de um passado, mas de um futuro, de uma dupla destinação que se atualiza no modo da ocupação. Assim permite pensar a condução da análise, ou em outro sentido, a elaboração, como sendo distinto do revelar de um passado. É possível refletir sobre a elaboração como o que se dá no atual de cada sessão, por exemplo, e que não faz referência a um tempo específico e sim a diferentes momentos?

Pensar sobre a condução de cada sessão analítica de modo a fugir do domínio do discurso causal – que interrompe o trabalho – levou à elaboração enquanto conceito que fala da experiência analítica e de seu manejo. Conduziu a Heidegger na tentativa de circunscrever em alguma medida a ânsia moderna por razões, oferecendo, simultaneamente, uma possibilidade de diferentemente refletir sobre a verdade na análise. Apontou a senda existente entre metapsicologia e técnica.

NOTAS

1 - "A psicanálise não precisa de uma Weltanschauung; faz parte da ciência e pode aderir à Weltanschauung científica", Freud, 1933a[1932], p. 220.

2 - Um resumo desta argumentação pode-se encontrar

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