O DESAMPARO DO HOMEM CONTEMPORÂNEO*

Urania Tourinho Peres

 

* Reunião preparatória ao V Fórum Brasileiro de Psicanálise, Psicanálise e Desamparo, Recife.
Publicado no livro "Mosaico de letras: Ensaios de psicanálise" de Urania Tourinho Peres, Editora Escuta, São Paulo.

 

"O homem sobrevive a morte de Deus, assumida por ele mesmo, mas, fazendo isso, ele se propõe ele
mesmo perante nós" (1).

Estamos aqui reunidos para falar do desamparo. Um encontro preliminar a um grande fórum, onde psicanalistas de todo o Brasil se reunirão para debater o tema. Duas questões a mim se impuseram ao começar a trabalhar esta conferência: tomar o tema em sua atualidade e interrogar a psicanálise e o psicanalista diante desse tema e dessa atualidade. Em seguida, uma outra preocupação: situá-lo dentro da nossa clínica, na medida em que a psicanálise é sobretudo uma clínica.

Não é difícil pensarmos que o homem neste final de milênio e século pode ser considerado como vítima de um grande desamparo. As crises da economia global, o alto nível de desemprego, as mudanças no conceito de trabalho, as crescentes diferenças sociais, as guerras, a fragilização da figura paterna e figuras de autoridade, as alterações nas relações e estruturas familiares, uma desorganização nas relações entre o público e o privado, a explosão do universo virtual, confinando o homem a uma vida cada vez mais segregada e isolada, onde até o sexo vem intermediado pelo computador e, sobretudo, a explosão da violência, das drogas e dos atos perversos. Entretanto, se o homem é vítima ele também é o responsável, o agressor. Este século que ora finda foi cenário de dois momentos de maior atrocidade na história da humanidade: os campos de concentração e a explosão de Hiroshima. Alemanha e Estados Unidos, os dois protagonistas. Assim, não é surpreendente que nos interroguemos: mas, que mundo é esse? Os grandes contrastes a que somos confrontados, tendo por um lado o depoimento da ganense Humu Laminu, de 13 anos, que teve o clitóris mutilado aos sete anos pela avó, tradição que assinala a passagem à fase adulta e que domina em 28 países da África e atinge dois milhões de meninas por ano (2). E as últimas descobertas e o aprimoramento de técnicas que prolongam a vida humana em níveis nunca alcançados. É ainda deste século o aparecimento da Aids, que sela definitivamente o sexo e a morte.

Vivemos o sabor de uma era que se finaliza, porém estamos desamparados por não saber o que nos aguarda. Se voltarmos nosso olhar para a realidade próxima, o Brasil, creio que nunca fomos tão abandonados pelos poderes públicos. Os serviços de assistência ao público, sociais, de saúde, educacionais atuam dentro do mais extremo maltrato, sobretudo aqui no Nordeste. O Nordeste é a região mais desamparada do País. A fome, a doença, a miséria estão tão presentes em nosso cotidiano que nos levam quase que inevitavelmente a uma espécie de insensibilidade defensiva. Uma cegueira. Resultados de quatro pesquisas Datafolha feitas em todo o País durante o ano de 1998, publicados no suplemento da Folha de S. Paulo, intitulado "Mapa da Exclusão", em 26 de setembro de 1998, indicam que o Brasil tem hoje, pelo menos, 25 milhões de miseráveis, representando 24% do total da população brasileira na faixa etária a partir dos 16 anos.

Por isso mesmo, um encontro como esses é importante, na medida em que nos leva a refletir sobre questões que são fundamentais para a nossa prática, mas que se volatilizam muitas vezes em um discurso teórico dissociado da realidade. Fala-se em crise de psicanálise, aliás fala-se em crise de tudo por tudo; crise, creio eu, é uma palavra que se presentifica em todos os tempos e em todos os universos, entretanto o que de fato ocorre é um temor por parte dos psicanalistas de um confronto verdadeiro com a realidade em que vive. Ninguém procurou estar mais próximo do homem que Freud, basta-nos a leitura do seu texto O mal-estar na civilização para percebermos a sua extrema acuidade e sensibilidade, porém, em verdade, seguimos pouco e mal o mestre. Talvez nos ancoremos na suposição infantil de que, afinal, tudo ele já disse.

Uma breve análise que podemos fazer do nosso século, seguindo Eric Hobsbawm, vai-nos indicar que estamos vivendo um fim de século no qual o número de homens mortos ou abandonados à morte por decisão humana foi o maior de toda a história da humanidade. Uma estimativa das megamortes nos mostra a cifra exorbitante de 187 milhões, ou seja, o equivalente a um entre 10 da população mundial no ano de 1900. Por isso mesmo o nosso século recebe a avaliação do século mais assassino que a história registra, as maiores fomes da história e o genocídio programado.

Talvez essa situação de calamidade possa nos fazer compreender o porquê desse autor nos apontar para uma falta de memória histórica entre os jovens de hoje. Diz ele:

A destruição do passado, ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que viveu. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio (3).

Essa afirmativa não pode deixar de nos remeter ao nosso ofício de psicanalistas, na medida em que a nossa tarefa outra não é senão a integração do passado histórico na atualidade da vida de nosso paciente. Historiar no presente o vivido do passado.

Ainda para o autor citado, o século XX viveu uma época de catástrofes e ele chega a denominar um período a partir de 1914, I Guerra Mundial, até algum tempo após a II Guerra Mundial de "Era da catástrofe". Fase de grandes calamidades: duas grandes guerras mundiais e rebeliões e revoluções globais. A revolução comunista que surge como uma alternativa para a sociedade capitalista e burguesa dominante no século XIX, chegando a dominar um terço da população do globo, acaba por não se sustentar, gerando uma crise universal de conseqüências ainda não totalmente delineadas. Os impérios da Era dos Impérios igualmente acabam por ruir. Os regímens totalitários e fascistas tendem a avançar e é curioso o assinalamento de que uma aliança temporária e bizarra entre o comunismo e o capitalismo liberal foi a grande responsável pela sobrevivência da democracia.

O mundo deixa de ser eurocêntrico, nos moldes do século XIX, que irá resultar no "esforço para criar uma ‘comunidade européia’ única e inventar um senso de identidade a ela correspondente". Os Estados Unidos empenham-se na conquista do espaço de grande pioneiro, possuidor de uma potente economia industrial, modelo da produção e cultura de massa que acaba por conquistar o mundo. Entra-se na era da globalização, onde o "globo passa a ser a unidade operacional básica". Diz-nos ainda Hobsbawm:

Talvez a característica mais impressionante do fim do século XX seja a tensão entre esse processo de globalização cada vez mais acelerado e a incapacidade conjunta das instituições e do comportamento coletivo dos seres humanos de se acomodarem a ele.

Todos esses acontecimentos se fazem acompanhar de profundas alterações em nível dos comportamentos sociais e individuais. Entretanto, se marchamos para uma globalização, por outro lado, seguimos uma trajetória cada vez mais dirigida ao individualismo. Para Pascal Bruckner (4), o indivíduo como criação histórica surge entre o desconcerto e a exaltação. Livre da arbitrariedade dos poderes por uma série de direitos que garantem a sua inviolabilidade, sofre, entretanto, a autorização de ser o seu próprio amo, com uma fragilidade constante. A partir do momento em que se liberta de obrigações e se reconhece como seu próprio guia, orientado unicamente pela luz de seu entendimento, o indivíduo perde ao mesmo tempo a segurança de um lugar, de uma ordem, de uma definição. Ganha a liberdade, porém perde a segurança.

Esse homem denunciado por Rousseau, que vive no inferno permanente de ter que prestar contas ao outro, sabe que a busca de ser ele próprio ou de conhecer-se, em verdade, implica no reconhecimento do outro. Ainda que já no século XII Angelus Silesius tenha afirmado: "Não sei o que sou, não sou o que sei". Rousseau, entretanto, vai definitivamente marcar essa multiplicidade na unidade do eu, ser um em sendo vários, tornar legítima uma multiplicidade dentro de uma unidade. Para Rousseau, um personagem infinitamente muito menos misericordioso que Deus se introduz no diálogo de cada um consigo próprio: o outro... "O outro essa mirada, esse discurso acerbo que me dissocia de minha própria existência" (5). Ainda para Bruckner, Rousseau inaugura a figura profundamente moderna do homem ridículo, desfalecente, desbordante de uma sentimentalidade boba, feliz com qualquer coisa, à mercê das extravagâncias de seu humor.. (6)

Esse autor nos apresenta uma análise aguda do homem contemporâneo, que podemos sintetizar da seguinte maneira: o homem moderno, que procura extrair de si mesmo as razões de ser e os seus valores, quanto mais livre se propõe, mas propenso se encontra para livrar-se da angústia, a invocar uma razão malvada que o mantém sob sua autoridade. Uma obsessão por uma maquinação, uma desordem premeditada, um factum cruel (7). A vitória do indivíduo sobre a sociedade carrega o peso de uma exigência desmedida. A liberdade de pensamento, de escolha e opinião não se deixam acontecer sem um pesado tributo: cada qual passa a ser o responsável por si, assume a tarefa de construir-se e encontrar um sentido para a própria existência. As crenças, os preconceitos e os costumes protegiam contra o azar e o imprevisto, a obediência às leis do grupo e da comunidade propiciavam tranqüilidade.

O homem do passado podia perfeitamente submeter-se a todo tipo de mortificações, de sacrifícios, que nos parecem hoje em dia odiosos, esses lhe garantiam um lugar, lhe inseriam em uma ordem imemorial na qual estava vinculado aos demais através de todo tipo de deveres. Contava com um reconhecimento e estava investido de uma responsabilidade limitada. Enquanto que o homem moderno, liberado em princípio de qualquer obrigação que não se haja outorgado, ele mesmo, sucumbe sob a carga de uma responsabilidade virtualmente sem limites. Isso é o individualismo: o deslocamento do centro de gravidade da sociedade para o particular, sobre quem descansa a partir de agora todas as escravidões da liberdade (8).

No momento em que o homem sente que a condução de sua vida depende dele próprio não há como culpar um fator exterior. Surge então "a consciência infeliz" do homem contemporâneo, presa a auto-acusação. O homem culpa a si próprio. Ele carrega dentro de si o sentimento da insuficiência. Impossibilitado, na maioria das vezes, de atingir um ideal que erigiu para si a partir de uma liberdade que lhe é acenada, o homem atual permanece muitas vezes mais prisioneiro de suas perdas do que de seus ganhos. Se, no passado, a melancolia era característica do homem de gênio, excepcional, hoje a depressão é a maneira como se exprime a "democratização da exceção" (9).

Esse homem aprisionado às exigências de um ideal que o alimenta e ao mesmo tempo o destrói vive o conflito entre o que efetivamente é capaz e o que verdadeiramente ele deseja. Sofre, portanto, uma fratura entre as exigências de um ideal do eu e as possibilidades de seu eu ideal fragilizado, fratura essa que se presentifica na constituição e manifestação do seu narcisismo. Seguimos Freud, quando nos introduz a melancolia no campo das neuroses narcisistas. O homem atual é, pois, candidato fácil às assim chamadas depressões ou neuroses do narcisismo.

Hobsbawm nos chamou a atenção para a falta de memória histórica do jovem de hoje, e Teixeira Coelho, em seu depoimento sobre a depressão "As fúrias da mente", relata-nos:

Nesses instantes de depressão aguda, a mais leve memória do passado é insuportável (...) O futuro não existe – se existisse, não estaria deprimido – e o passado é inaceitável. O presente uma tortura (10).

O jovem de hoje, afastado das tradições, eliminando os rituais, impelido para uma libertação da família onde uma figura paterna fragilizada se contrapõe a uma mãe vacilante nas suas conquistas de autonomia, defronta-se com uma sociedade que não lhe abre espaço e não oferece respostas às suas aspirações de realização e autonomia, acaba por submergir-se nas perdas que lhe foram inevitáveis, sem atingir os ganhos que lhe foram acenados. Assim, o nosso jovem hoje defronta-se com o enigma de seu futuro, na medida em que em sua grande maioria não recebe pré-traçada as linhas de seu destino. As universidades decaem (o descaso pela universidade federal em nosso Estado é uma evidência), o mercado de trabalho se reduz, as relações afetivas se banalizam e se tornam efêmeras. Nesse particular, é interessante observarmos o uso do verbo ficar para significar, não um estado de permanência, mas, a transitoriedade de um contato afetivo-sexual. A Aids atemoriza e torna paradoxal a liberdade sexual atingida. As figuras de autoridade perdem prestígio, o homem público recebe o descrédito por uma promessa que nunca é cumprida e por uma palavra na grande maioria das vezes recebida como mentirosa. Assistimos recentemente ao escândalo de ver a figura do presidente, da que se pretende ser a maior nação do globo, exposta na intimidade de sua vida sexual e humilhada perante um público que o julgava culpado ou não-culpado. Um pedido de perdão decorrente de uma maquinação política.

Vivemos uma época complexa e cheia de paradoxos, onde uma tecnologia avançada nos faz sentir momentaneamente grandiosos e onipotentes. Comunicamo-nos com absoluta mediatez com os amigos onde quer que possam estar, podemos assistir de nossas casas ao iniciar de uma guerra, como se contemplássemos uma ficção, pois, em verdade, o mundo nos chega através dos múltiplos canais de televisão, sem qualquer esforço significativo. Os computadores quase escrevem por nós e a Internet já se imiscui na vida sexual de muitos.

Alain Ehrenberg, em seu recente livro La fatigue d’être soi, apresenta-nos um interessante estudo antropológico da depressão, considerando-a como a doença da vida moderna, na medida em que se tornou, a partir dos anos 60, a indicação do mais freqüente estado de sofrimento humano. Uma patologia das mudanças que acompanham as grandes mutações do após-guerra. Ele parte de duas hipóteses centrais: a primeira, afirmando ser a depressão a patologia de uma sociedade onde a culpabilidade e a disciplina deixam de ocupar o lugar privilegiado de fundadoras das normas dominantes, cedendo espaço para a responsabilidade e a iniciativa. O homem vê-se sobretudo exigido nas suas aptidões mentais e iniciativa, tendo menos que se conformar com as regras sociais que impunham pensamentos conformistas. A conseqüência é o predomínio de uma patologia da insuficiência e do disfuncionamento, em detrimento de uma doença da falta e do enfrentamento da lei. A depressão nos revela o homem de hoje, ou seja, um homem em pane. Culpa e responsabilidade sofrendo um deslocamento inevitavelmente comprometem as relações entre o permitido e o proibido, o público e o privado. O homem ganha liberdade mas perde segurança. O direito de escolher a própria vida passa a ser uma exigência. Essa liberdade deixa de ser apenas a maneira de se inserir nos costumes de uma sociedade e constitui a categoria de norma das relações entre o indivíduo e a sociedade. A obediência à disciplina se substitui pela independência. Dissemina-se a idéia de que tudo é possível, dando lugar ao temor de não estar à altura, não corresponder ao que ele próprio e os outros esperam de si. Dominam, então, o vazio e a impotência. Se tudo é possível, a impossibilidade irá decorrer de uma insuficiência.

A segunda hipótese repousa sobre a idéia de que a depressão se nutre do declínio da referência ao conflito que teria sustentado a noção de sujeito, como nos foi legada no fim do século XIX. Freud teria sido o artífice dessa conjunção conflito-sujeito, através da sua teorização sobre as psiconeuroses de defesa.

A neurose domina o indivíduo dividido pelos seus conflitos, debatendo-se entre o que é permitido e o que é proibido, a depressão entretanto atua sobre o indivíduo aparentemente emancipado das interdições, porém cindido entre o possível e o impossível. A neurose seria a resultante do "drama da culpabilidade", enquanto a depressão resultaria de uma "tragédia da insuficiência" (11). "A depressão é o drama de uma nova normalidade, que é ao mesmo tempo nova normatividade" (12).

Freud e Janet, ainda que seguindo caminhos opostos, teriam em fins do século XIX e início do século XX introduzido e fortalecido a noção de psíquico, marcando a possibilidade de caracterizar-se uma doença do espírito. Para Freud, as noções de trauma e conflito constituem o fio condutor do seu pensamento; para Janet, a noção de déficit, de uma insuficiência, seria o ponto determinante. Janet defende uma "deficiência inata da capacidade de síntese psíquica", assim como na estreiteza do "campo de consciência". A divisão da consciência seria um fator primário. Freud, enfatizando a noção de trauma, vai situar como secundária a divisão da consciência. Ainda que oscilante, em um primeiro momento, no abandono das causas hereditárias e degenerativas na etiologia das neuroses, a psicanálise vai-se fortalecendo dentro de um campo onde o sujeito marcado pelos seus conflitos, oscilante entre os imperativos da lei, é dominado por uma culpabilidade que delineia as marcas da sua subjetividade. Freud desvendou o homem culpado e Janet, o homem insuficiente.

Acompanhamos desde a primeira metade do século XX uma modificação nas normas que definem o sujeito. "Tornar-se semelhante a si mesmo singulariza o espírito geral da nova normalidade" (13). A clínica analítica desvia sua atenção do conflito, da culpa e da angústia e dirige-se mais para o vazio, a insuficiência, a compulsão ou impulsão. "Na nova normatividade e na nova psicopatologia, trata-se menos de identificação (às imagens parentais bem-desenhadas ou os papéis sociais claramente definidos) que a identidade"(14).

Outro aspecto prevalente: não se trata apenas de tornar-se a si mesmo, de buscar a identidade, mas é necessário agir por si próprio, apoiar-se nos seus recursos internos. Há uma ênfase na ação individual. Iniciativa individual e liberação psíquica aparecem como indicadores da normalidade e, no lado patológico, a dificuldade para a ação se vincula à insegurança na identidade. A psiquiatria se vê impelida a considerar o distúrbio psicomotor como a perturbação fundamental da depressão: pane da ação em detrimento do distúrbio de humor. Herdeira sobretudo do viés aberto por Janet, do homem deficiente, a psiquiatria procura expandir os seus domínios, enfatizando a grande expansão da depressão nos nossos dias. Se, no passado, a melancolia habitou os homens de gênio, a depressão impõe-se hoje em um quadro de insuficiência. Se o século XIX nos defrontou com a patologia da loucura-delírio, o século XX trouxe-nos a evidência do homem neurótico, submergido em seus conflitos, temores e culpas. Estamos às portas do século XXI e não podemos deixar de observar que a depressão e a adição às drogas nos acenam para um grande desafio.

No ano 2000, as patologias da pessoa são as da responsabilidade de um indivíduo que se liberta da lei dos pais e dos antigos sistemas de obediência ou de conformidade às regras exteriores. A depressão e adição são como o direito e o avesso do indivíduo soberano, do homem que crer ser o autor de sua própria vida enquanto permanece. "O sujeito no duplo sentido da palavra: o ator e o paciente". (Hanna Arendt) (15).

A droga, efetivamente, tem uma grande pregnância no momento em que vivemos. Não apenas as euforizantes ou entorpecentes mas, igualmente, as medicinais. Se olhamos para a psiquiatria, o tema da cura se deixa confundir com o da droga. Curar ou drogar? Essa é uma importante questão. Os avanços da neurobiologia, da neuroquímica e da psicofarmacologia traduzindo-se em medicamentos do espírito nos invadem com as promessas de bem-estar e felicidade. A biologização do psiquismo ganha terreno. Os desequilíbrios neuroquímicos são os responsáveis ... mas como agem eles? A pessoa é objeto de sua doença.

"O ponto-chave é a análise dos mecanismos bloqueando a transmissão de informação no sistema neuronal" (16). A serotonina é a grande vedete da psiquiatria, "considerada como o vetor neuroquímico do equilíbrio da pessoa (M. Briley) (17). Um psiquiatria americano chega a escrever em seu livro The good news of depression: "Você não poderia escolher um melhor momento na história humana para se sentir infeliz".

A década de 70 é marcada pelo início das pesquisas que iriam resultar no aparecimento dos Inibidores Seletivos da Recaptação da Serotonina, que seriam autorizados ao mercado por volta do ano de 1987. O prozac domina como a pílula da felicidade.

Não concordamos com Ehrenberg, quando enfatiza o deslocamento das noções de conflito e culpa para a insuficiência e o fracasso. Pensamos que, se hoje em dia o homem se debate na luta para conseguir sua própria realização, o conflito pela impotência e a culpa pelo não-sucesso se materializam em uma esfera de auto-recriminação, ponto central de um estado depressivo. Ainda que podendo atribuir a uma entidade externa, como o governo, por exemplo, ou a família, sobretudo no caso do jovem, homens e mulheres vivem sob a ameaça de uma liberdade que se presentifica e diante dela uma realização ou irrealização que recai sobre a própria responsabilidade. Insuficiência e culpa caminham, pois, de mãos dadas. E é, acima de tudo, sobre o homem culpado, vítima de seus conflitos e insuficiente diante de sua liberdade, que a psicanálise dirige a sua atenção. Aqui não há promessa de bem-estar e felicidade, mas de resoluções e liberdade diante de sua própria verdade.

Freud, desde os seus primeiros escritos, chama-nos a atenção para a dimensão de desamparo que acompanha o ser humano. O bebê é um desamparado que necessita da ajuda externa de uma pessoa experiente para satisfazer as suas necessidades e viver as primeiras experiências de satisfação. Essa situação de insuficiência que acompanha o desamparado é, pois, constitutiva da nossa condição humana e vai presentificar-se na falta estrutural que marca nossa condição de falantes.

Toda a obra freudiana é pontilhada com uma ou outra referência à necessidade de proteção que nos acompanha pela vida, entretanto vamos nos deter nas colocações especialmente feitas no período entre 1927 e 1930, O futuro de uma ilusão e o O mal-estar na civilização. Destacamos uma passagem desse primeiro texto citado:

Como já sabemos, a impressão terrificante de desamparo na infância despertou a necessidade de proteção – de proteção através do amor –, a qual foi proporcionada pelo pai; o reconhecimento de que esse desamparo perdura através da vida tornou necessário aferrar-se à existência de um pai, dessa vez, porém, um pai mais poderoso.

Freud refere-se à origem da religião e ao surgimento da idéia de Deus.

De Lacan, a quem devemos a riqueza do desenvolvimento do conceito pai na psicanálise, mostrando-nos a tripartição do pai imaginário, simbólico e real, a ênfase na função paterna, e ainda os conceitos de metáfora paterna, nome-do-pai, nomes-do-pai, vamos selecionar a seguinte passagem, contida no texto do seu seminário sobre O homem dos ratos, intitulado O mito individual do neurótico.

Pelo menos numa estrutura social como a nossa, o pai é sempre, de algum modo, um pai discordante relativamente a sua função, um pai carente, um pai humilhado, como diria Claudel. Existe sempre uma discordância extremamente nítida entre o que é apercebido pelo sujeito no plano real e a função simbólica. É nesta in-coincidência que reside aquilo que faz com que o complexo de Édipo tenha o seu valor – de modo nenhum normatizante, mas mais freqüentemente patogênico.

Não vamos desenvolver o conceito de desamparo na obra freudiana, nem toda a extensão que as noções de pai e função paterna ocupam em nossa teoria psicanalítica, porém queremos marcar como em Freud a questão do desamparo se vincula ao pai e como Lacan nos aponta para a complexa e problemática inserção do pai em "uma estrutura social como a nossa".

Consideramos que o homem da atualidade vive o fim de um século acentuadamente marcado pela violência, no sentido amplo das grandes guerras e revoluções e no sentido particular das relações interpessoais. Caracterizamos esse homem como tendo perdido a estabilidade que uma sociedade tradicional oferecia através da limitação da liberdade individual e assujeitamento a padrões preestabelecidos e por ter ganho uma promessa de conquistas ilimitadas. Em princípio, o self made man pode ascender na escala social sem barreiras que não sejam ditadas pela própria responsabilidade. Entretanto, vimos também, e aqui permito-me usar uma palavra que Lacan repetiu na citação que escolhemos, essa liberdade é ela própria caracterizada, na maioria das vezes, por uma discordância entre o que é oferecido e o que acaba por se tornar possível. Entre o que surge como ideal e o que se corporifica como atingível. Uma discordância entre um ideal do eu e um eu-ideal. Estamos, pois, diante de uma patologia do narcisismo. Daí compreendermos por que a depressão se apresenta como o quadro patológico dominante. E por que a psiquiatria se movimenta, no sentido de dar a essa afecção o lugar outrora ocupado pela neurose, ao tentar substituir o conflito pela insuficiência.

O tema do desamparo nos conduz, pois, à questão do narcisismo, esse processo que passa pelas identificações para cristalizar-se em uma identidade. É possível que possamos afirmar que o homem de hoje sofre uma crise de identidade. Os papéis masculinos e femininos se embaralham, as idades perdem a sua estabilidade (os mais velhos se apresentam como jovens e os mais jovens querem ocupar o lugar dos mais velhos), as hierarquias se alternam. Nesse caminho, podemos compreender a discordância na função paterna, introdutora da lei, e a figura do pai carente e humilhado como dificultando a resolução da situação de insuficiência, pois, estando na origem do processo identificatório, irá propiciar uma falha no "quadro de identidade de origem", como diz Sibony (18).

Sabemos que "o campo do investimento narcísico é central e essencial" e que é em torno dele que se decide o destino do desejo humano; sabemos também que esse narcisismo se constrói sempre através de um enfrentamento ao narcisismo do outro e que muitas vicissitudes podem ocorrer a partir dessa situação de origem, marcada pelas relações às figuras parentais. Assim, pois, chegamos ao campo do edípico e da constituição narcísica do eu.

A importância da relação à imagem especular não deve, pois, nunca ser elidida, na medida mesmo em que ela é o ponto organizador, no imaginário da relação com o outro.

Analisando a trilogia de Claudel, L’Otage, Le pain dur e Le pérè humilié, no seminário A Transferência, Lacan vai-nos dizer que estamos em frente da tragédia da modernidade, a tragédia do homem contemporâneo. É o trágico moderno que o poeta nos apresenta e é dele que é retirada a figura do pai humilhado. É importante também assinalar a presença da mulher que diz não, da mulher que recusa: Sygne de Coûfontaine.

O pai de que se trata é o próprio pai dos pais, o papa, que, ameaçado de ser capturado, recebe asilo de uma mulher, Sygne. Essa mulher é obrigada a abrir mão de seus desejos e sofrer toda espécie de sacrifícios e torturas, no movimento de salvar a figura do pai, agora tornada impotente. Retornar a imagem de um pai forte e digno. Mas há também o pai abjeto, autor de todas as maldades infrigidas à Sygne, que é o personagem Toussaint Turelure, sobre quem, ao final de sua análise, Lacan deposita o estigma da humilhação. Entretanto, o que nos é mostrado no fim da peça é que essa mulher que aparentemente a tudo renunciou reserva para o final uma negativa, uma recusa, mostrando-nos que ela não cedeu a uma parte de seu ser. Phillipe Julien em seu texto O abandono do pai nos diz:

O não de Sygne, depois de ela ter dado tudo, esse "não", para além da salvação realizada do Papa e do Rei, não é pesar nem remorso pelo que ela consumou mediante o seu sacrifício. Mas inscreve o limite indelével. É o ato do verdadeiro ateísmo: deixar o outro para lá. É essa Gelassenheit, a desistência, o largar de mão, o abandono que falava Mestre Eckhart e que seria retomado por Heidegger.

Angelus Silesius o escreveu num dístico inflamado, onde distingue duas modalidades de Gelassenheit: abandonar-se a Deus ou abandonar Deus. (19)

Se a recusa da mulher a exime de sustentar a figura do pai, assim como marca a humilhação daquele que outrora fora o seu algoz, vamos então nos interrogar: o homem atual, o homem de nossos dias é, pois, o homem fruto do pai abandonado e humilhado e de uma mulher que, apesar de ter renunciado ao que ela reconhece o seu próprio ser, revela, entretanto, perante a morte, que, de verdade, essa renúncia não se consumou, pois a conduziu, no momento derradeiro, a poder proferir o não de sua renúncia?

Lacan se pergunta: essa peça não será para nós o indício de um sentido novo dado ao trágico humano? (20)

Claudel nos coloca no cerne da problemática do pai, problemática que nos foi aberta de uma maneira dramática por Freud. O drama do parricídio original vem selar, com a morte, a possibilidade da existência simbólica daquele que então encarnará a lei e abrirá as portas de nossa condição desejante. O mito da morte do pai é o mito da nossa inserção na ordem da cultura, o mito da modernidade.

Claudel nos traz a figura decaída do pai, cujo declínio marca a sua trajetória em nosso século, mas, nos aponta também a figura da mulher que, em tendo aceito o sacrifício e suportado a renúncia ao seu ser para não deixar cair a figura do pai, acaba por dizer não. Ainda com Phillipe Julien:

Essa recusa de Sygne é o que Freud chama de uma Ver-sagung (per-dicção), uma recusa, um dizer não. Não se trata do silêncio por impotência que vem da covardia ou do cansaço. Não, Sygne realmente deu tudo, sem moderação e sem reserva. Esse dizer não é a marca significante do corte, o descumprimento da promessa que é a instauração do impossível (a ser distinguido da impotência), um impossível intrínseco à própria linguagem, negação de qualquer completude de sentido, incapacidade derradeira de possuir a verdade.

É dessa negação que nasce o sujeito, na medida em que ela é marca do limite de toda identificação com este ou aquele significante: eu não sou a Sygne de Coûtfontaine aquela que...e que... O sujeito nasce da versagung, que deve ser lida como subtração da ordem simbólica, ali onde existe tropeço e hiancia (21).

Assim, pois, a tragédia de Claudel nos retrata, ao lado da queda do pai, a assunção da mulher a sua condição de sujeito. É interessante lembrarmos a tragédia real que foi vivida por Camille Claudel, irmã do poeta, esmagada pela força de Rodin.

No início de nossa fala, colocamos como nossa preocupação final trazer a questão do desamparo para a nossa clínica. Interrogar a psicanálise e o próprio psicanalista.

Nós sabemos que, muito embora possamos generalizar e falar do homem contemporâneo, a nossa clínica é, sobretudo, uma clínica do particular. Ainda que as marcas do tempo imprimam-se na constituição da subjetividade, em verdade, nossa atenção se dirige para a singularidade de cada caso. Por outro lado, sabemos também que o psicanalista sofre os efeitos de uma circunstância e que sua prática e teoria devem ser permeáveis a todas essas influências. Em re-pensando o homem, estamos igualmente re-pensando a nossa posição e a nossa prática.

Ainda em sua análise da trilogia de Claudel, Lacan se detém numa interrogação sobre o pai, essa imagem que, segundo ele, tornou-se necessária aparecer no horizonte da humanidade, colocando em ação a dimensão do desejo. Aponta ele que a experiência de analista tende paradoxalmente a rejeitar o lugar de pai, ao tempo em que passa a evocar, cada vez mais, no lugar do Outro, a figura da mãe castradora. Para ele, Freud assumia na análise a posição de pai, posição essa que não mais podemos assumir e chega a se colocar a seguinte afirmativa:

E é por isso que não sabemos mais onde nos meter – porque não aprendemos a rearticular, a partir daí, qual deve ser nossa posição (22)

O final de uma análise, confrontando o homem a realidade da condição humana, é pois o que nos aponta Freud ao indicar a angústia como o que produz o seu sinal, a desolação, o hilflosigkeit, onde nessa relação consigo mesmo que implica a morte, o homem reconhece que não pode esperar a ajuda de ninguém. (23)

Urania Tourinho Perez
E-mail:
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NOTAS

01 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 7, A ética da psicanálise, p. 218. Versão brasileira de Antônio Quinet, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.

02 A Folha de S. Paulo, 1o. de janeiro de 1999.

03 HOBSBAWM, Eric J., 1917. Era dos extremos: o breve século XX: 1914/1991; tradução de Marcos Santarrita, São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

04 BRUCKNER, Pascal. La tentatión de la inocencia; tradução de Thomas Kauf, Editorial Anagrama, Barcelona, 1996.

05 Op. cit., p. 27.

06 Op. cit., 29.

07 Op. cit., 31.

08 Op. cit., 32.

09 EHRENBERG, Alain. La fatigue d’être soi, dépression et societé, Éditions Odile Jacob, Paris, 1998, p. 235.

10 TEIXEIRA COELHO. As fúrias da mente, Editora Iluminuras, São Paulo, 1998, p. 34.

11 EHRENBERG, op. cit., p. 18.

12 EHRENBERG, op. cit., 118.

13 Op. cit., 118.

14 Op. cit., 180.

15 Op. cit., 249.

16Op. cit., 189.

17 Op. cit., 185.

18 SIBONY, Daniel. Violence, Éditions Seuil, 1998, p. 29.

19 JULIEN, Phillipe. O estranho gozo do próximo: ética e psicanálise, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1996, p. 104.

20 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 8, A Transferência, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1992, p. 274.

21 JULIEN, op. cit., p. 100.

22 LACAN, op. cit., p. 288

23 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 7, A ética da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques Alain Miller. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1988, p. 364.


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