Psicofármacos e Psicanálise

Com a presença poderosíssima dos atuais psicofármacos (em especial dos antidepressivos) no dia-a-dia da atividade clinica de todos aqueles que atendem ao sofrimento psíquico de pessoas, torna-se necessário entender a extensão e o alcance que tais produtos farmacêuticos possam ter sobre o psiquismo; mais ainda, cumpre averiguar corajosamente a força e as fragilidades que tais substâncias podem representar como imagens idealizadas de bem-estar e de ausência total de conflito psíquico, para as populações em geral e para os próprios psicanalistas.

A proposta deste grupo, com reunião no dia 06 de fevereiro de 1999 (sábado pela manhã, na Livraria Pulsional), é a de discutir essas questões - que podem ser formuladas da seguinte forma:

> Serão os médicos (psiquiatras e de outras especialidades) responsáveis pelo fascínio das populações em torno dos psicofármacos?

> Pode-se discutir abertamente sobre o emprego dessas drogas, entre pessoas que não sejam especialistas na sua elaboração ou na sua prescrição?

> Existe o especialista na prescrição de psicofármacos (o psiquiatra) como o profissional que efetivamente mais os receita para seus clientes?

> Como pode evoluir clinicamente, em termos gerais, a pessoa que é ao mesmo tempo analisando de um psicanalista e paciente de um psiquiatra "de retaguarda" que lhe prescreve um psicofármaco antidepressivo?

Estamos dispostos a discutir esses e outros temas correlatos, ligados aos psicofármacos.

Rubens Coura
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OS PSICOFÁRMACOS E A PSICANÁLISE:

D. PEDRO II, CHARCOT E OS ANTIDEPRESSIVOS

RUBENS COURA

Sobre os Estados Gerais da Psicanálise, numa de nossas reuniões na Livraria Pulsional, eu cometi um lapso ao falar da História do Brasil: eu tinha dito que o afastamento de D. Pedro II das terras brasileiras, para tratamento de saúde com Dr. Charcot em terras francesas, coincidiu com a Proclamação da República (em 1889). Isso não é verdadeiro; a ausência do antigo Imperador de nossas terras, realmente para tratamento de saúde com Dr. Charcot em terras francesas coincide, sim, mas com a Abolição definitiva da escravatura no Brasil (em 1888).

Creio não ter me enganado muito , pois é sabido que estudiosos de nossa História localizam a efetiva queda da monarquia precisamente no 13 de maio de 1888, com a perda de um dos sustentáculos básicos do regime econômico e político da monarquia: o trabalho escravo.

É por isso bastante conhecida a anedota sobre o diálogo, atribuído à Princesa Isabel e ao Visconde de Ouro Preto (um Ministro conservador), durante as festividades pela Abolição - sobre uma aposta que ambos teriam feito, sobre ser ou não ser possível sancionar a Lei Áurea:

- Então, Sr. Ministro, ganhei ou não ganhei a aposta ? - teria desafiado a Princesa, eufórica.

- Vossa Alteza ganhou a aposta mas perdeu o trono ! - disparou o Ministro.

No ano anterior (1887), D. Pedro II já estivera em Cannes, França, também para tratamento de saúde; chamado a atendê-lo, Charcot diagnosticou "surménage moral" e, na carta ao conde de Mota Maia (o médico brasileiro do Imperador) acrescentou, constrangido: "si je puis ainsi parler " ( 12 )

Compreende-se o constrangimento de Charcot : no dicionário bilingüe, surménage significa "fadiga por excesso de trabalho" ( 1 ); mas era usado na França e mesmo no Brasil, até aproximadamente a década de 1920, como significando o que hoje se compreende usualmente como "depressão", "stress", "esgotamento", etc - muitas vezes também empregado como eufemismo para algum tipo de "fraqueza de caráter" ou de falta de empenho nas lutas do dia-a-dia . É simples imaginar que os médicos brasileiros da época também poderiam tê-lo assim diagnosticado e que também poderiam indicar-lhe um tratamento clinicamente adequado.

Mas parece que o Imperador do Brasil era fascinado pelo médico francês, por seu carisma e por seu renome. Dizem que chegou até a oferecer-lhe, de presente, uma macaca das florestas brasileiras... ( 15 )

Nessa mesma época, ainda na França (em Paris) , D. Pedro novamente se encontrava enfermo com diabetes e, atendido pelo médico brasileiro conde de Mota Maia e pelos médicos franceses Charcot, Brown-Séquard e Bouchard, foram-lhe prescritos os medicamentos seguintes : iodeto de ferro, extrato de valeriana e sulfato de estricnina ( 13 ). Esses são os mesmos medicamentos gerais descritos como usuais para os diabéticos na época, assim aparecendo no próprio Dicionário de Medicina de Littré ( 9 ) de um ano antes (1886) - bastante conhecido e utilizado na ocasião por médicos brasileiros. Em outras palavras, não se tratava de qualquer terapêutica avançada ou original para a época, concebida especialmente para o Imperador enfermo.

Bem a propósito, datando do mesmo dia da Abolição da Escravatura, chegaria ao Brasil o telegrama informando sobre o estado de saúde do Imperador - novamente no Velho Mundo, para tratamento de saúde ; vindo da Itália mas redigido em francês, rezava:

  • Fièvre presque cessée. État nerveux calme. Este telegrama estava assinado pelos quatro médicos que assistiam o Imperador: Charcot, Semmola, De Giovanni e Mota-Maia (...) ( 10 )
  • De alguma maneira, essas fugas do Imperador para a França prenunciavam o fim próximo de seu poder real: afinal, como poderia esperar devoção e respeito de seus súditos um rei que não confiava nos médicos saídos das instituições que sua própria dinastia, que seus próprios pai e avô tinham criado ? Um rei que não acreditava nos homens de seu próprio reino?

    Esse interesse pela figura de D. Pedro II se justifica, no presente texto, pelo antecedente histórico de um brasileiro culto, estudioso das Artes e das Ciências, poderoso e viajante pelo mundo - mas que não obstante todas essas virtudes não logrou qualquer marca nacional para o seu país em suas incursões pelo Exterior; e que, além disso, perdeu o espaço que possuía entre os seus conterrâneos e entre os que aqui o admiravam e que nele depositavam esperanças.

    Tanto naquela reunião sobre os Estados Gerais da Psicanálise como nessas linhas, minha pretensão foi e é a de que atentemos para uma possível e arriscada idealização, pelos brasileiros, da psicanálise exercida e estudada em países super-desenvolvidos. Não nos esqueçamos de que o que mais distingue tais países, nas Ciências em geral, não é exatamente o que traduz uma excelência do pensar e da prática da psicanálise: é o emprego de high technology científica mais desenvolvida que a tecnologia brasileira e a presença de melhores circunstâncias gerais de atendimento à Saúde para uma grande parcela da população.

    Parece que, de um modo ou de outro, é quase sempre incontornável que seja nesses termos médicos que venham se nortear as admirações dos brasileiros para expoentes da psicanálise mundial - que não deveria, de fato, ter a interferência de fatores da assistência médica como balizas de recomendação ou de valor. Isso certamente se acentua numa época como a nossa, de fascínio pelas mercadorias tecnológicas do Primeiro Mundo que possam modificar o psiquismo num estalar dos dedos - como tantas vezes se pensa que ocorra com o uso dos psicofármacos de última geração.

    É aqui que retorna, inapelavelmente, a figura carismática do Dr. Charcot: para a maioria dos psicanalistas, ela apenas se desenha numa parte talvez menor ou mais incipiente da longa trajetória de Freud ; mas para muitos e muitos médicos, ao menos em nosso meio, essa figura avulta como a do "verdadeiro criador" da psicanálise! Pois Charcot não foi, inclusive, "o mestre de Freud" ?!

    Numa de suas visitas ao Brasil, a psicanalista francesa Danièle Brun proferiu uma palestra num grande complexo hospitalar da cidade de São Paulo. Sabendo do evento, mas desconhecendo o teor das pesquisas dela, alguns médicos do local evocaram as façanhas hipnóticas de Charcot; outros, me indagaram se "essa médica francesa" iria apresentar algum novo psicofármaco antidepressivo aos médicos brasileiros! E isso nem deveria ter- me causado espécie, pois afinal a Clorpromazina, o primeiro e revolucionário neuroléptico, foi um prodígio saído dos laboratórios franceses.

    Já em 1986, e sem ser propriamente um defensor dos DSMs norte-americanos, o psiquiatra francês Étienne Trillat publicou sua História da Histeria, na qual estuda a evolução dos conceitos dessa moléstia através do tempo; discípulo de Henri Ey (célebre por sua Psiquiatria dinâmica e simpática à psicanálise), não por acaso estudioso da obra de Charcot, Trillat parece - muito habilmente - anunciar os novos tempos das reclassificações diagnósticas em psiquiatria (mesmo longe dos Estados Unidos da América):

  • Charcot dizia: "A histérica sempre existiu, em todos os lugares e em todos os tempos". Ele não tinha previsto que ela desapareceria. Desde o início do século, muito se interrogou sobre essa estranha desaparição.

    Já que o mundo evolui, já que os costumes mudam, já que as mentalidades e as relações sociais se transformam, por que não atribuir a essas mudanças a desaparição da histeria? (...)

    Com o desenvolvimento da mídia de massa, a sociedade em seu conjunto "histerizou-se"...Então, para que serve o teatro privado da histérica, já que participamos todos de um teatro público? (...)

    A histeria está morta, isto é claro. Ela levou consigo seus enigmas para o túmulo.(16)

  • Como nos lembra Miriam Chnaiderman ( 2 ), o encontro franco-brasileiro de psicanalistas de 1989, em Paris, promovido pela Association Freudienne de Paris , teve como ponto de partida o "Manifesto Antropófago" de Oswald de Andrade. Este era mencionado em diversas ocasiões naquele "Argumento", que funcionava como uma introdução à discussão geral; mas o local físico do colóquio era a Maison de L’Amérique Latine, sediada naquela que foi - precisamente - a residência do Dr. Charcot,. Nessa moradia palaciana do elegante boulevard Saint-Germain, que também impressionara o jovem Freud e outros convidados estrangeiros da época pela sua imponência ( 7 ), não me lembro de se ter discutido algo sobre o mago da Salpêtrière; mas sua presença e sua autoridade - digamos - médicas, não escapavam aos participantes: lembravam-se dele nos salões, nos jardins, nos recônditos luxuosos daquela que um dia fora, afinal, a sua casa. Discutíamos psicanálise, mas não deixávamos de nos sentir, também, como que "convidados" do Dr. Charcot.

    Estávamos há cem anos da nossa Proclamação da República, mas o clima das voyages de D. Pedro II ainda estava no ar.

    Nunca tantos psicanalistas procuraram hospitais para exercerem seu trabalho e suas pesquisas, como no momento em que estamos vivendo; nunca tantos psicanalistas buscaram respostas em centros de Saúde e em outras instituições médicas, como agora - mesmo quando suas formações básicas não tenham quaisquer relações com a Medicina .

    Quando de sua recente visita oficial pela IPA ao Brasil, Hanna Segal, em entrevista à imprensa, não conseguiu deixar de dar destaque ao enlevo público pelos psicofármacos - mencionando diretamente o Prozac -, confrontados esses medicamentos com a psicanálise e indagando-se à visitante se eles não representariam uma medida terapêutica mais rápida, mais barata e mais eficaz que as sessões no divã. ( 11 )

    Muito embora com tendências e idéias psicanalíticas bastante diferentes das dessa eminente psicanalista inglesa, também Pierre Fédida tem demonstrado suas inquietações em torno dos psicofármacos; ele também não deixa de mencionar o Prozac, ao situar que a atual neurofarmacologia se considera como mais científica que a psicofarmacologia,

  • ...a ponto de se emancipar de qualquer conhecimento dos disfuncionamentos psicopatológicos do indivíduo, já não lhe sendo necessário regular-se por uma clínica dos processos.

    Como ficariam, então, a semiologia psiquiátrica e o espírito nosográfico? Como ficaria a psicopatologia? E, em última análise, como ficaria a psicanálise até então protegida, de alguma forma, pela psiquiatria? (...) ( 6 )

  • Recordo-me agora do episódio de quando D. Pedro II faleceu em seu exílio parisiense, em 1891: o governo francês lhe ofereceu honras fúnebres devidas a um rei; isso foi motivo de uma interpelação do jovem governo republicano brasileiro: seriam essas homenagens prestadas ao Imperador do Brasil, como pareciam ser, ou simplesmente ao Sr. D. Pedro de Alcântara? As satisfações devidas foram dadas, argumentando o govêrno da França que realizava solenidades de exéquias apenas a um príncipe de origem francesa e membro de várias associações literárias e científicas da França. Note-se que a origem do "príncipe" não era considerada então brasileira, portuguesa ou germânica (ele era também um Habsburgo, pelo lado materno) - mas francesa...

    Com exceção de um único ministro, todo o corpo diplomático brasileiro compareceu, oficialmente, aos régios funerais ( 5 ). Em outras palavras, pode-se dizer que o governo francês falou o que pudesse satisfazer momentaneamente o governo brasileiro - mas fez o que lhe pareceu mais adequado e não modificou em nada o que desde o início planejara fazer, imune à influência das intervenções brasileiras.

    O que estou tentando dizer é que temos antecedentes históricos de uma diplomacia européia civilizada e culta, mas cujas virtudes tecnológicas e do entre nós clássico "banho de cultura" podem não contribuir para afastá-la nem um centímetro de seus intentos - quando estes lhes pareçam sólidos, importantes e justos.

    Não nos iludamos quanto a algumas das principais finalidades e nem quanto ao lado secamente utilitarista dos quais os Estados Gerais não poderão se esquivar: as posições e as estratégias dos psicanalistas brasileiros quanto aos poderosos psicofármacos que surgiram no mercado internacional. E também quanto a uma possível remodelação do atendimento pelos psicanalistas em geral, em função dessas mesmas drogas.

    Assim, quando Maria Cristina Rios Magalhães (organizando assuntos para os Estados Gerais) me perguntou se o tema de meu maior interesse dentro desses preparativos era o da "psiquiatrização" da psicanálise, hesitei em lhe responder que sim. O que me preocupa vai muito além de uma eventual psiquiatrização, pois a rigor vai também acima de qualquer medicalização da psicanálise - até porque escapa de qualquer intenção ou interesse médico: é a questão da crescente tecnização absoluta da Ciência. No que nos diz respeito, ela tem assombrado a psiquiatria e a Medicina em geral nas suas múltiplas especialidades; atingindo a sociedade em vários outros de seus setores, tem afetado fortemente também muitos psicanalistas. Afinal, também vivendo sob a luz duvidosa da ideologia da produtividade de que Lacan ( 8 ) nos fala, também os psicanalistas em geral não poderiam evitar - em si próprios - algum fascínio pelas novidades científicas do mercado internacional, incluindo-se nessa listagem, com destaque, os novos psicofármacos.

    Não será demais frisar que, no ocaso de seu reinado, D. Pedro II se esquivava de cumprir as pompas rituais imprescindíveis às solenidades monárquicas - e fugia das questões políticas importantes. Distanciando-se de seus súditos e se aproximando cada vez mais dos brilhos do Velho Mundo, teria deixado escapar a Gobineau, o escritor e amigo francês :

    - As necessidades do Governo estão me consumindo todas as forças. ( 14 )

    Fico pensando que, embora atribuindo aos psiquiatras a força do impacto dos psicofármacos sobre as populações em geral, muitos psicanalistas estariam na verdade eles próprios encantados com essas novidades da Ciência - talvez se distanciando, imperceptivelmente, da atenção propriamente psicanalítica junto a seus analisandos.

    Na verdade, penso que seja somente pela encosta da "medicalização" que podemos encontrar a trilha para escalar essa montanha escarpada - pois boa parte do contemporâneo exercício da Medicina fica, nesse sentido, como uma espécie de guichet de atendimento ao público: uma modestíssima portinhola no andar térreo do imenso edifício da Ciência ocidental cristã . Ainda assim, essa abertura felizmente continua franqueada e dela necessitamos - como psicanalistas, como pessoas, como pacientes.

    Esse é com certeza um tema obrigatório e incontornável para todos os participantes desse debate dos Estados Gerais.

    Será preciso conhecer a fundo o que está sendo pesquisado pelo mundo afora quanto aos neurotransmissores cerebrais para que se possa ter uma opinião sobre os usos e os efeitos dos psicofármacos em geral? É preciso ser um engenheiro especializado em motores da indústria automobilística para saber qual o carro que nos convém comprar para trafegarmos pelas ruas ?

    Pessoalmente, considero os psicofármacos úteis em diversas situações clínicas e absolutamente indesejáveis em tantas outras ; com os antidepressivos em particular, considero que eles requeiram um ainda mais estreito acompanhamento do analisando e do paciente que deles faça uso - inclusive porque suspeito fortemente que eles apenas possibilitem - ao sujeito em melancolia - uma mais lenta, mais sutil e mais exteriorizada destruição do objeto odiado. (estudo a ser publicado na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo).

    Miriam Chnaiderman ( 3 ), estudando nossa questão identitária e idéias de Octávio Souza, assinala a identificação do brasileiro com o olhar dos colonizadores europeus diante do Novo Mundo: esses colonizadores não desejavam a continuidade das tradições européias no novo solo, mas uma ruptura com elas para a realização de suas expectativas paradisíacas - que os colonizados teriam então que concretizar para corresponderem aos anseios fantasiosos da utopia do Velho Mundo.

    Tentando me equilibrar nessa corda-bamba das identificações, penso que conclusões especialmente importantes sobre os psicofármacos possam ter lugar em países como o nosso: seja pela tendência a abraçar e a abandonar tratamentos médicos com maior freqüência que nos países do Primeiro Mundo, seja pela forte inclinação do brasileiro por se automedicar - associada à mais ampla possibilidade de adquirir o remédio sem qualquer receita. Seja ainda pela maior diversidade de condutas médicas na dosagem e na escolha do psicofármaco a ser prescrito, esses e outros fatores podem compor um painel mais largo e mais alto dos efeitos desejáveis e indesejáveis no uso desses medicamentos.

    Os psicanalistas e os médicos do Primeiro Mundo talvez tenham que se ater mais do que nós, nesse sentido, às estatísticas publicadas e a uma experiência clínica mais uniformemente inexpressiva; que profissional francês, num exemplo mais extremado, teria a oportunidade de atender um paciente que fizesse uso de três diferentes tipos de psicofármacos antidepressivos - por sua própria iniciativa - visando "apressar" sua melhora clínica? Creio que isso muito dificilmente ocorreria por lá.

    Quando iniciei minhas pesquisas sobre as possibilidades de intervenções psicanalíticas no hospital geral (de 1988 a 1993), imaginava que se pudesse auxiliar alguns poucos médicos e acadêmicos de Medicina a compreenderem e eventualmente superarem suas dificuldades nas questões da relação médico-paciente; mas eu não poderia supor, de antemão, que tantas situações médicas, nas diversas especialidades, fossem acessíveis a uma intervenção psicanalítica que revelasse e que pudesse alterar, decisivamente, os rumos de muitos atendimentos hospitalares - inclusive a própria conduta médica e o diagnóstico, por vezes elaborados com fortes componentes inconscientes destrutivos (contra o paciente ). Também me escapava, antes, a possibilidade de outros componentes da equipe assistencial - que não o médico - definirem as diretrizes do atendimento hospitalar : enfermeiras e assistentes sociais, por exemplo, inconsciente e imperceptivelmente delineando os eixos do tratamento dispensado ao paciente. ( 4 )

    Mas não é empáfia ou falta de modéstia de minha parte assinalar essas descobertas que fiz: embora esses equívocos que estudei no atendimento médico-hospitalar também ocorram em qualquer hospital do chamado Primeiro Mundo, seu desvelamento só foi possível - tenho total certeza disso - dentro das flexibilidades de autoridade interna, dos contrastes culturais, dos desníveis tecnológicos que convivem num mesmo hospital e dos espaços vazios de diversos momentos do atendimento médico em nosso meio. Nas instituições hospitalares de países como a França, por exemplo, com suas hierarquias administrativas mais rígidas, com sua quase total uniformidade de atendimentos pela Sécurité Sociale, e pela maior adesão dos pacientes ao tratamento oficialmente instaurado, uma pesquisa como a minha teria sido muitíssimo dificultada - ou mesmo tornada impossível. Teria sido provavelmente limitada ao atendimento psicológico a alguns pacientes desenganados ou terminais.

    Penso que se seguirmos todos os passos previsíveis do comportamento educado e civilizado da Europa ocidental , poderemos estar correndo o sério risco de repetir - na melhor das hipóteses - os sentidos da triste aventura de D. Pedro II nas terras francesas: um monarca dos trópicos, perambulando entre sábios da Ciência e das Artes, pagando-lhes em ouro por um lugar de espectador ou de cliente; e sem ter obtido deles qualquer reconhecimento maior além do "pitoresco" ou sendo assimilado a uma categoria de valor local apenas por parentesco de sangue com a "verdadeira" realeza européia.

    Mas creio que muitos de nós já dispõem de conhecimentos psicanalíticos e de evolução como pessoas para seguirem um atalho novo, que possa efetivamente abrir -nos um espaço mais legítimo entre os demais psicanalistas considerados como pertencentes à Civilização.

    Aí talvez possamos estar realmente acenando, para o Velho Mundo, com genuínas e insuspeitadas possibilidades surgidas aqui, no Novo Mundo; aí talvez possamos estar até superando algumas das expectativas fantasiosas idílicas e sauvages com que os europeus moldaram nossa identidade. Aí talvez possamos estar carregando, para as cultivadas terras francesas, alguma coisa verdadeiramente inovadora e vigorosa, como o cheiro do mato verde na floresta virgem...

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS :

    1. BURTIN-VINHOLES, S. - Dicionário Francês-Português - Português-Francês , Porto Alegre, Globo, 1958, p. 594.

    2. CHNAIDERMAN, MIRIAM - Existe uma Psicanálise Brasileira?, site dos Estados Gerais na Internet: http://www. geocities. com. /HotSprings/Villa/3170/EG. htm, p.3.

    1. CHNAIDERMAN, MIRIAM - Idem, p. 7.
    1. COURA, RUBENS - A Psicanálise no Hospital Geral, São Paulo, Sarvier, 1996, p. 59.

    5. DORNAS FILHO, JOÃO - A Morte do Imperador, Revista do Brasil, Ano V, no. 44, Rio de Janeiro, fevereiro/1942, pp. 38-39.

    6. FÉDIDA, PIERRE - A Fala e o Pharmakon, tradução de Monica Seincman, Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, V. I, no. 1, São Paulo, 1998, pp. 29-45.

    7. JONES, ERNEST (1957) - A Vida e a Obra de Sigmund Freud . V. I, tradução de Júlio Castañon Guimarães, Rio de Janeiro, Imago, 1989, pp. 194-195.

    8. LACAN, JACQUES (1966) - Psicoanálisis y Medicina. Tradução de Diana Silva Rabinovich. In: Lacan, Jacques - Intervenciones y Textos, V. I, Buenos Aires, Manantial, 1993, pp. 86-99.

    9. LITTRÉ, É. - Dictionnaire de Médecine, de de Chirurgie, de Pharmacie, de lÄrt Vétérinaire et des Sciences qui s’y Rapportent , Paris, Librairie J.-B. Baillière et Fils, 1886, pp. 458-459.

    10. LYRA, HEITOR - História de Dom Pedro II: Declínio, V. III, Belo Horizonte, EDUSP/Itatiaia, 1977, pp. 61-62.

    11. Revista VEJA , no. 1543, São Paulo, Abril, 1998, pp. 9-13.

    12. SANTOS FILHO, LYCURGO DE CASTRO - História Geral da Medicina Brasileira, V. II, São Paulo, Hucitec/EDUSP, 1991, p. 33.

    13. SANTOS FILHO, LYCURGO DE CASTRO - Op. cit., p. 289.

    14. SCHWARCZ, LILIA MORITZ - As Barbas do Impertador: D. Pedro II, um Monarca nos Trópicos , São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

    15. SOUBLIN, JEAN - D. Pedro II, o Defensor Perpétuo do Brasil: Memórias Imaginárias do Último Imperador. Tradução de Rosa Freire de Aguiar, São Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 108.

    16. TRILLAT, ÉTIENNE - História da Histeria, tradução de Patrícia Porchat, São Paulo, Escuta, 1991, pp. 283-284.


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