2. Os movimentos culturais


2.1 Os movimentos culturais libertários do século XX

    "Historicamente, existiram sempre movimentos que enfrentaram o modelo social vigente, não através da política, mas da cultura. Muitas vezes foram percursores de movimentos políticos. A história é escrita pelos vencedores, pelo que destes movimentos só ficou constância; noutras épocas, imaginamos, eram condenados por heréticos. Só há memória cumprida deles desde tempos já próximos: romantismo, dadá, surrealismo, situacionismo, geração beat, movimento hippie, rock, punk…"

    Desta premissa de Josu Monteiro em seu texto Pontos de fuga discutiremos aqui os movimentos culturais libertários do Século XX, onde, primeiramente, destacam-se o Surrealismo e o Dadaísmo, bem como o movimento Beat. Entendam-se por movimentos libertários todos aqueles que romperam e desconstruíram uma certa linha de pensamento ou técnica construindo uma nova ordem artística e cultural.


2.1.1 Ordem = Desordem

    O Dadaísmo veio em combate aos movimentos artísticos do começo do século pregando, especialmente na literatura, o desenlace do regramento e da superficialidade dos movimentos culturais anteriores.

    Os dadaístas, poetas ou escritores, como nos diz Maria Antonieta Soares em Espaço Arte-Surrealismo, se pautavam pelo absurdo, numa crítica à teorização da arte e à unificação do pensamento. Um poeta dadá escrevia por impulso, verborragicamente, e um escritor dadá não respeitava parâmetros lógicos ou racionais para desenvolver uma trama. O Dadá tem sido compreendido até os dias de hoje como "um estilo polêmico-literário, centrado na dissolução das formas vigentes".

    Nascido simultaneamente na década de 1910 entre as cidades de Zurique, Nova York e Berlim, o Dadá se desenvolveu em meio a desordem européia na Grande Guerra de 1914-1918. Na cidade de Zurique, centro de recepção a artistas exilados ou auto-exilados que fugiam das conturbações de seus países de origem para a neutralidade suíça, os artistas encontraram o terreno ideal para plantarem as sementes do movimento dadaísta. Contra a loucura e o absurdo da guerra, a arte não encontrava mais nas maneiras tradicionais de manifestação respaldo para a sua existência como um instrumento de comunicação e transformação da sociedade. Tinha-se a necessidade de extrapolar as normas éticas e morais vigentes. Com a anti-arte, a rebelião da arte contra a arte, a destruição e a contestação contra a arte dita burguesa sem sentido, os dadaístas procuravam um sentido, um verdadeiro sentido, para  exercerem esta mesma arte que execravam.

    Utilizando-se de novas formas de expressão, o dadaísta, nas palavras de Hans Richter,  "se considerava uma individualidade desvinculada de tudo, cujo espaço vital era a liberdade incondicional". Dentro dessa liberdade incondicional cabe-nos observar a importância para o desenvolvimento de nosso trabalho das revistas Dada, 391 e 291. A revista Dada, fundada em 1916 em Zurique, era uma publicação de divulgação artística totalmente desvinculada dos meios de comunicação de massa tradicionais da época, a contar os jornais impressos de circulação diária. Sabendo não encontrarem espaço entre os artistas tradicionais, entre eles os pragmáticos futuristas, os dadaístas queriam expandir para todo e qualquer lado seus ideais.

    "Ordem = desordem; eu = não-eu; afirmação = negação; máxima irradiação da arte absoluta, absoluta em pureza, caos ordenado - rolar eternamente em segundos sem fronteiras, sem respiração, sem luz, sem controle - amo uma obra antiga por causa de seu caráter de inovação. Apenas o contraste nos prende ao passado."

    Assim eram os manifestos publicados, redigidos em sua maioria pelo poeta romeno Tristan Tzara, na revista Dada, e que iriam encontrar repercussão na formação de movimentos simultâneos em Nova Iorque, com a revista 291, de conotação artística muito mais visual, e artistas como Man Ray, Marcel Duchamp e Francis Picabia.

    No ano de 1918 em Barcelona, na Espanha, neutra durante a guerra, Picabia encontrou o local ideal, entre artistas refugiados alemães e franceses, para editar sua 391, variação inexplicável de 291 com o número treze, que pregava a revolta contra todas outras formas artísticas, burguesas e programáticas.

    As revistas dadaístas, além de seu caráter renovador em formato e tipografia, gerando uma torrente de novos tipos e grafismos, utilizaram-se da colagem, da destruição de ícones e da fotomontagem, novas formas artísticas que nos dias de hoje já foram absorvidas pelo mercado editorial, como a revista Trip, que é um parâmetro editorial para revistas voltadas ao público adolescente, bem como o lançamento em março de 2001 da revista da MTV, escancaradamente influenciada pela Internet e pelos fanzines que nesta circulam.

    Tzara reunía-se com seus seguidores e preconizava: "Peguem um jornal, uma tesoura, escolham um artigo, recortem-no, em seguida recortem cada palavra, coloquem-nas em um saco, agitem ... ?" A mesma técnica que voltaria a ser utilizada por Burroughs quarenta anos depois e pelas bandas punks de garagem para compor as letras de suas músicas na década de 1970. Estabelecendo um paralelo com a descrição de James Joyce para seu próprio método verbal em Finnegans Wake: "... pode ser fabricado com cola e recortes, rabiscados ou gravados num reforço; o expresso noturno canta sua história, a canção da andorinha em sua teia de fios ..." A colagem de textos e imagens é, nada mais que a própria manifestação inconsciente do homem em relação a complexidade do universo informacional e sua variedade incontrolável. A Internet não deixa de ser uma oportunidade única para que esta manifestação tenha seu alcance expandido para fora das rodas intelectuais. É um avanço tecnológico que influiu naquilo que mais dificulta o surgimento de novas idéias: a propagação dessas idéias através de uma distribuição mais eficaz e duradoura.

    A formação multinacional dos dadaístas, emoldurada pelos encontros de refugiados em cidades neutras durante a guerra, ampliou ainda mais o mito libertário do Dadaísmo, que iria influenciar movimentos posteriores, sem ter sido influenciado, a não ser pela repugnância que tinha destes, pelos movimentos artísticos anteriores, não tirando o mérito da influência que posteriormente lhes foi dada de poetas como Rimbaud ou Baudelaire e da revolta contra o absurdo da guerra e da sociedade burguesa burocrática nas obras recheadas de ceticismo de Kafka.

    O Dadaísmo deixou, e muitos dadaístas "cresceram" e deixaram a rebeldia juvenil do Dada para aliarem-se a um novo movimento, o Surrealismo, um legado que seria mais tarde reivindicado nos anos sessenta pela Pop-Art, ou Neo-Dadá, e nos anos setenta, com as facilidades tecnológicas que o próprio mercado criou, pelo movimento Punk, que se utilizaria, assim como o Dadá, e em um momento de grande descrédito na vida, na falta de sentido da vida das populações pobres ou desempregadas nos grandes centros urbanos, na decadência das religiões e da fé na infalibilidade da sociedade humana e de seu progresso inexorável, da arte para combater e destruir essa mesma arte.


2.1.2 A ausência da razão

    O Surrealismo, movimento contemporâneo ao Dadaísmo, por sua vez, veio trazer à tona o mundo dos sonhos e da imaginação. A busca do instintivo e do animal baseado numa lógica desconstrutiva e fantástica, mas dentro de certos limites de interpretação e compreensão. Maria Antonieta Soares10 nos diz que, no sonho, o surrealista antevê o mundo sob a ótica do subconsciente e do inaudito. Subverte a ordem lógica das coisas, e por conseguinte, desestrutura os conceitos lógicos da sociedade.

    Andre Breton, um dadaísta que "evoluiu", nos pergunta se "a mediocridade de nosso universo não depende essencialmente de nosso poder de enunciação?" Nesse libertar-se do mundo "real" e deixar-se levar pelo acaso das associações supostamente casuais do sono, os surrealistas pretendiam construir um mundo paralelo, romântico até, no que há de mais revolucionário na expressão romântico, alheio as maldades e perversidades de um mundo convulsionado pela guerra, pelos regimes totalitários, pelos estereótipos da vida moderna e contemporânea. Um mundo livre das amarras da imposição ideológica de matizes econômica e políticas diversas do humanismo e da sensibilidade artística. O Surrealismo é um movimento artístico que contrapõe a visão naturalista e simplória das coisas e dos fatos. Onde uma nova maneira de "ver" um processo transforma esse processo em uma nova visão de mundo. Uma visão mais próxima dos sonhos, "ditada dos pensamentos, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral" (Manifeste de 1924), e da infância, "pois é talvez a infância que mais se aproxima da verdadeira vida"(Manifeste de Andre Breton).

    A imagem da infância, do romantismo, da rebeldia juvenil, especialmente na literatura, que é o que mais se aproxima do nosso estudo, recorrente também no Dadaísmo, contribuiu para que uma certa parte dos artistas ocidentais enveredasse pelo espinhoso caminho do que muitos chamam de marginalidade, underground, ou submundo. Mesmo que muitos, como Picasso ou Andy Wharol, tenham sido alçados ao sucesso, este momentâneo sucesso, os "quinze minutos" de Wharol e sua Pop-Art, é contrário ao que eles buscavam no início. Essa marginalidade, muito mais por imposição dos meios de comunicação de massa, a quem não interessa a renovação ou o descontrole dos movimentos artísticos, o que mais tarde, se "vitorioso" o movimento, dentro de uma concepção mercantilista de sucesso, será utilizada pelo próprio mercado cultural para desestruturá-lo e adaptá-lo a visão "geralmente aceita" de arte burguesa, comportada e politicamente correta.

    Assim como os movimentos libertários deturpam e corrompem os costumes e tradições, as organizações, econômicas e políticas, que controlam o mercado cultural dos países, e são a base de sustentação desses costumes e tradições, com suas máquinas gigantescas de propaganda de massa, onde não existe muita diferença de princípios entre um Goebbels ou um publicitário da Coca-Cola, visto que um propagandeia a vitória de uma raça sobre todas as outras e o outro a derrocada de toda uma variedade de modo de vida em nome de um american way of life imposto, condicionado e forçosamente falso, corroem as bases desses mesmos movimentos. As estratégias de propaganda souberam muito bem utilizar-se, tanto nos regimes totalitários do Oriente comunista, quanto na "liberdade" democrática do Ocidente, dos ideais libertários dos movimentos artísticos contestes dos regimes locais vigentes para destruí-los com seus próprios venenos. Um exemplo disso podemos encontrar também no movimento Beat.


2.1.3 Be-bop literário

    O mundo dos sonhos e o absurdo também foi a tônica do movimento Beat, que teve sua origem nos jovens escritores Kerouac, Snyder, Ferlinghetti, Burroughs, Corso e Ginsberg. No pós-segunda guerra mundial, eles perambulavam pelos Estados Unidos à procura de novas culturas e associações literário-artísticas. O movimento Beat rompeu com a literatura formal e técnica tradicional e criou uma nova estética, vinda dos bares infectos de jazz, dos subúrbios pobres das grandes cidades, do uso sem preconceitos de todo o tipo de novas drogas químicas que viessem a expandir os pensamentos de seus idealizadores, da liberdade da expressão escrita e sua utilização de uma forma quase musical e despreocupada com regras gramaticais ou de sintaxe.

 "Jazz e bop, no sentido de um saxofonista tomando fôlego e soprando uma frase em seu sax, até ficar sem ar novamente e, quando isso acontece, sua frase, sua declaração foi feita ... É assim que separo minhas frases, como separações respirantes da mente".

    O movimento Beat acabaria influenciando o movimento musical popular nos guetos negros das grandes metrópoles norte-americanas, "rhythm and poetry" (rap), e que manifestou-se visualmente em grafite e pichações de muros, outra forma de arte, mas que, apesar do marginalismo inicial do movimento, não desenvolveu-se em uma cultura fanzineira.

    Esse modelo de escrita, espontâneo, despertou entre a mofada e estática produção cultural da época uma geração de novos escritores que sentiam-se desestimulados a escrever por uma imposição moral e estética da antiga literatura, cujas palavras de ordem eram o rigor, o impessoalismo e o artesanal. Onde o formalismo técnico e burocrático dominava. O movimento Beat veio resgatar o estilo visionário, pessoal e libertário da escrita que tinha sido abandonado desde a geração maldita do século XIX, entre eles Rimbaud e Blake.

    Os beats, muitos dos quais desempregados e homossexuais, pululavam entre as grandes cidades, do oeste ao leste dos Estados Unidos, provocando a sociedade norte-americana brutalmente atrasada da época, muito mais com seu modo de vida do que com seus escritos, em grande parte desconhecidos por muitos e muitos anos do grande público.

    Nesse estilo novo de texto, o que muitos críticos, entre eles Truman Capote, em uma entrevista para a televisão, convenciaram chamar de "datilografia literária", contrapondo-se a aristocracia burocrática dos escritores e poetas tradicionais, atados a uma concepção fechada de métrica poética e estruturação e contextualização de texto, os beats traziam relatos vivos e exagerados das peripécias juvenis de seus propagadores. Um universo suburbano e marginal de drogas ilícitas, prostituição, alcoolismo e promiscuidade veio à tona. Um mundo que o mercado cultural não queria vender. Invendável. Impublicável. Não são assim todos os movimentos de ruptura, comumentemente chamados de vanguarda? Pois essa vanguarda se utilizava da narrativa zapping, dos cut-ups, método de escrever popularizado por Burroughs e inspirados nos métodos artísticos de seu amigo Brion Gysin, contemporâneo dos surrealistas, e da intertextalidade numa época em que esses conceitos, tão comuns na Internet, onde as inovações tecnológicas levariam ao delírio os sonhadores de antigamente, não existiam.

    Burroughs nos convidava a participar da construção do texto e convém lembrar que essa participação, tão apregoada pelos meios de comunicação de massa hoje em dia, não era um simples discar de número para dizer se a mocinha morre no final do capítulo do seriado da TV ou não. Era um instrumento para fazer com que o leitor-participante usasse sua imaginação. Burroughs já afirmava:

"As pessoas nunca vão abandonar totalmente a leitura. Nada substituirá a literatura: nem o vídeo, nem o cinema. Por outro lado, a fórmula novelística está ultrapassada, e se não houver coisas interessantes nessa área, as pessoas estarão cada vez mais lendo só livros e revistas ilustradas, histórias em quadrinhos. Há coisas que você não consegue numa tela ou num filme. Já com um livro as pessoas podem sentar-se em qualquer lugar e é como se um filme estivesse passando em suas cabeças".

    Mais adiante, veremos, que todas as "loucuras" dadaístas, os sonhos surrealistas, a marginalidade beat, são em boa parte, os causadores do nascimento e da estrutura dos fanzines, meios de comunicação individuais e baratos, feitos do público para o público, onde o meio nada é mais que um meio e não um fim. E com o advento e a popularização da Internet, mesmo que fechada a certos camadas mais retrógadas  e historicamente conservadoras da sociedade, pois discutível é a vontade de mudança que possa existir nas classes médias dos países, visto que elas sonham em deixar de ser classes médias e subjugam seus desejos e vidas ao poder institucionalizado e, por conseguinte, a tudo aquilo que a indústria cultural dominada por esse poder considerar digerível e vendável, muito mais perto está o sonho de pulverizar o mercado e desestruturar as formas tradicionais de arte, perdidas na imbecilidade da massificação.

"A vanguarda é tida como um incômodo para aqueles que estão felizes com o mundo como está. A arte é uma religião secular que fornece uma justificativa 'universal' para a estratificação social, decorando a classe dominante com a cola social de uma cultura comum, enquanto, ao mesmo tempo, exclui a vasta maioria dos homens e mulheres desse 'ambiente mais elevado'."

    O movimento Beat foi o precursor do que se convencionou chamar Contracultura. A Contracultura que floresceu no nascente movimento hippie, que destruiu tabus sexuais, como o homossexualismo, e tabus sociais, como o uso de drogas. Os beats experimentavam todo o tipo de droga que permitisse ou pretensamente tivesse a capacidade de expansão da mente. Através da liberação de todas as imposições sociais, a pessoa-artista sentia-se livre para imaginar, escrever, pintar e construir o que lhe aprouvesse, sem preocupar-se com as conseqüências, já que, estas, como imaginava William Burroughs, só existem em função de um mundo hipócrita e desajustado.


2.1.4 A ressaca hippie

    Os hippies, por sua vez, praticavam e exerciam a liberdade sexual, e estabeleciam-se em comunidades alternativas com regras e preceitos éticos e morais, como nos fala Carlos A. Masseder Pereira:

"começavam a delinear, assim, os contornos de um movimento social de caráter fortemente libertário, com enorme apelo junto a juventude de camadas médias urbanas e com uma prática e um ideário que colocavam em xeque, frontalmente, alguns valores centrais da cultura ocidental, especialmente certos aspectos essenciais da racionalidade veiculada e privilegiada por essa mesma cultura".

    Em contraposição aos beats, que perambulavam pelo país a procura de aventuras, ouvindo e tocando muito jazz, música que inspirou a expressão beat, derivada de uma expressão de Kerouac para designar a escrita livre, musical e ritmada dos beats, como numa música de jazz, cheia de improvisações, estabelece. Como se a escrita fosse uma eterna jam session (improvisação).

    Os hippies, porém, se fixavam em comunidades rurais e pregavam a mudança do mundo de uma maneira individualista e até certo ponto conservadora de um âmbito político e social. Os hippies visavam conquistar a liberdade dentro de um certo limite de espaço e tempo enquanto os beats eram o extremo contrário. Os beats eram o "porre" da liberdade e da falta de perspectivas pós Segunda Guerra Mundial. Nada mais havia para ser feito, os Estados Unidos tinham se transformado nos senhores da Terra e o que restava era conformar-se com isso ou partir para aproveitar o máximo que pudessem de suas liberdades e liberassem a sociedade das amarras do puritanismo anglo-saxão e protestante da sociedade norte-americana.

    Após a "ressaca" hippie, mesmo que com a revolução anárquica que a Contracultura pregava e realizava tenham sido deixadas marcas inequívocas na sociedade e introduzido novos interlocutores no debate cultural, os anos setenta reservaram ao mundo ocidental o nascimento de um novo movimento. Um movimento panfletário, plebeu, de desempregados e excluídos. Um movimento que vinha destruir tudo pelo caminho e recriar do nada. Aleatório. Primitivo. Impulsivo. O movimento fanzineiro por excelência. O movimento Punk.



2.2 O movimento Punk

    O movimento Punk, dentro desse contexto libertário, vem a ser o movimento cultural mais libertário de todos, mesmo que muitos de seus expoentes tenham se transformado em ícones da mídia. Em especial, porque surgido numa época pós-movimento hippie de paz e amor, o movimento Punk traz à tona não só a discussão da cultura como toda uma discussão político-social-econômica de um sistema, o capitalismo consumista.

    Os punks pregam o lema "faça você mesmo" em contraposição à produção em série e a desindividualização das pessoas. As pessoas não são mais seres pensantes com características próprias. São consumidores. Como consumidores fazem parte de um sistema escravagista em que todos são felizes como as famílias nos comerciais de margarina.

    O punk é libertário por convição e anarquista por essência. A música é simples, tosca e direta. Uma música feita para que todos possam entender, fazer e ouvir. Em contraposição aos hippies, que pregavam apenas o amor livre e alienado sem tentar mudar a essência do sistema capitalista, os punks pregam a ação direta, a participação, a luta contra um sistema. O lema anarquista "pense coletivamente, aja individualmente", mais que nunca explicitados nos textos Quem é o (a) punk? e O declínio da humanidade, assinados pelos punks Bal Thrascore e Fletcher (members.delphi.com/textos/index.html., 15/06/2000). A literatura, onde a principal produção são os fanzines, é caótica e despreocupada com a estética formal ou acadêmica.


2.2.1 Cuspindo na rainha

    Os jovens e pobres proletários desempregados urbanos ingleses, influenciados pelo composto gregário e violento dos hooligans (torcedores de futebol) ingleses, apesar de uma certa bagagem cultural, mais por terem a oportunidade de, ao contrário dos povos dos países pobres, mais acesso à informação e à educação, conscientizaram-se que não podiam ficar em casa parados esperando algo acontecer e partiram, até mesmo por falta de algo melhor para fazer, e, podendo até ser explicado como uma fuga da loucura da falta de perspectivas do mundo moderno e sufocante, para o combate direto ao sistema através da panfletagem, da produção caseira de fanzines e músicas (bandas de garagem) e todo um processo cultural que desencadeou uma revolução no pensamento vigente da juventude britânica da época (década de 1970) e se propagou para outros países.

"Uma ética do faça-você-mesmo prevaleceu, com selos independentes de discos lançando bandas desconhecidas, uma vasta proliferação da imprensa independente na forma de fanzines punk (geralmente xerocados em edições de algumas centenas), e quase todos os punks fazendo alterações no design de suas roupas, na forma de rasgos e cortes."
   
    A propagação do movimento Punk para outros países foi ainda mais forte com a explosão de sucesso da banda de música punk Sex Pistols que, com seus integrantes vestidos com roupas velhas e sujas, cabelos espetados, muitas correntes, tatuagens e cusparadas, agredia o visual até então ingênuo e politicamente conformista dos hippies. Enquanto estes pregavam uma certa volta às origens e às comunidades rurais alienadas do convívio social, os punks pregavam a rebeldia urbana e o inconformismo com as classes dominantes através muito mais da atitude que por teorizações e elocubrações influenciadas por alucinógenos. O Sex Pistols agredia seu público com letras de denúncias políticas e um deboche cínico e até mesmo perverso de todas as instituições seculares.

    Nos Estados Unidos, o movimento, precedido pela Pop-Art de Andy Wharol e sua influência sobre o que se convencionou chamar de pré-punk, a banda Velvet Underground, liderada por Lou Reed, se desenvolveu com o surgimento de Iggy Pop e os Stooges, grupo punk que fazia letras destrutivas e apresentações recheadas de insinuações de sexo não-convencional, perturbação da ordem e auto-mutilação.


2.2.2 Subúrbio cultural

    No Brasil, o movimento punk encontrou receptividade no começo dos anos 80, época de recessão e desemprego no governo Figueiredo, e, principalmente, na região metropolitana da cidade de São Paulo, onde a música Oi! e hardcore e a falta de perspectivas que o desemprego dos operários desenvolveram a formação de um núcleo punk brasileiro. Como dizia um artigo da revista Time em 1983, conforme Caiafa, "uma geração de jovens alienados que se voltou para o tribalismo a fim de dar sentido às suas vidas."

    O movimento punk brasileiro, mesmo que ativamente mais fraco e desaculturado, teve uma participação muito mais política que cultural nos últimos anos da ditadura militar. No entanto, os punks não se associam a partidos políticos ou a movimentos formalmente organizados. Suas manifestações são muito mais por melhores condições de sobrevivência, de combate ao patriotismo, ao estado e à exploração capitalista dos meios de produção, sem que isto recaia sobre uma ótica marxista de estatização e burocratização da vida, situações que o movimento punk abomina.

    Dentro de todo esse contexto, os fanzines, inicialmente os divulgadores de grupos de punk rock (som incisivo e pesado com letras cheias de palavras de ordem e caóticas), começaram a se desenvolver na base do lápis, da caneta, da tesoura e da cola, tudo isso impulsionado pelo barateamento das cópias e pela facilidade de distribuição dos fanzines punk (muitas vezes distribuídos na rua, em fábricas e enviados pelo correio). "Os fanzines do Rio, e também os de São Paulo, são feitos em xerox, escritos à mão pelo autor ou batidos à máquina."

    Através da formação de comunidades divididas por interesses afins e a criação de uma pequena rede de ligação e correspondência entre os fanzineiros, e mesmo com a crise econômica, o público de fanzines manteve-se fiel e sustentou o sonho de produção cultural independente até os dias de hoje, onde predomina a divulgação de zines por e-mails, os já conhecidos e-zines, pela Internet, mesmo que muitos ainda mantenham, paralelamente, formatos editoriais em papel "xerocado".