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Radar (J-Pop)


A vida é uma fantasia

Com roupas malucas e visual extravagante,
tribos adolescentes do Japão não são rebeldes
nem têm causa: só querem se produzir

Patrícia Oyama, de Tóquio

Reagan Love
RR

A tribo gyaru em ação: cabelo pintado de loiro, pele bronzeada com luz artificial, lentes de contato e o imprescindível salto plataforma

Que as japonesas gostam de se enfeitar é uma constatação de muitos séculos. Maquiagem perfeita, penteado intrincado, quimono milimetricamente pregueado e obi (a faixa da cintura) elevado à categoria de obra de arte eram pré-requisitos de toda gueixa, as cortesãs de luxo invejadas pelas mulheres comuns. Adaptada aos dias de hoje, porém, a produção visual das turmas de adolescentes de Tóquio beira o inconcebível – uma louquíssima mistura de roupas e acessórios capaz de deixar qualquer sisudo pai japonês de cabelo em pé (este, aliás, um penteado bem cotado entre a moçada). Com meia de oncinha, tamanco de lacinho, chapéu de caubói, flor de plástico no cabelo, imensas unhas postiças e mais um elenco de loucuras, adolescentes em bandos circulam à vontade em Harajuku e Shibuya, bairros vizinhos plantados em uma área de Tóquio que já virou atração turística. Lá se comprova que, se o estilo minimalista que invadiu as passarelas de moda da Europa teve alguma influência do Japão, no seu país natal ele se evaporou. A ordem é dar vazão a todas as fantasias – até, ou principalmente, àquelas que ninguém imaginava existir.

Tudo no jeito de vestir dos jovens modernos que circulam em Harajuku e Shibuya é conhecido no Ocidente: cabelos loiros, pele bronzeada, unhas enormes, colar de búzios, piercings, cabelos punk, grifes francesas. Diferente é a atitude. Os punks não são agressivos, os clubbers não caem no embalo, os rasgados não protestam contra nada. A idéia é, simplesmente, curtir o figurino. Pertencem a "tribos" diversas, que convivem em harmonia, intercambiam adeptos e descartam e adotam modismos com a velocidade de um raio. Que o digam os seguidores das visual bands, conjuntos musicais muito mais preocupados com a aparência do que com a música, que têm seu vestuário imitado item por item por adolescentes que se reúnem aos domingos, ao lado da estação de trem de Harajuku. Uma garota com cabelo cinza e lentes de contato azuis, terno de veludo e laço de cetim é clone do vocalista da banda Raphael. Os integrantes da Malice Mizeru vestem-se de boneca, e os garotos do Plastic Tree lançaram a moda dos braços enfaixados com gaze e sangue falso. Copiar as visual bands não é tarefa fácil: atrás do volúvel visual da Raphael, Yuzuki, 18 anos, a garota de cabelo cinza, já teve de pintar as madeixas de azul, marrom, pink, vermelho e verde. Yuzuki, esclareça-se, não é nome verdadeiro. Toda fã de visual band tem pseudônimo devidamente impresso em um cartão de visitas, que distribui à vontade lá no seu canto de Harajuku. A explosão de criatividade (e de exibicionismo) dessa turma, porém, é do tipo Cinderela – evapora-se na hora de voltar para casa. Antes de entrar no trem, as meninas congestionam os banheiros do McDonald's local para se trocar. "Ir vestida desse jeito no trem incomoda as pessoas", explica Jido Ningyo ("boneca de plástico"), impávida na sua peruca verde e vestido estampado enfeitado com folhagem de plástico.

Fotos Oliviero Toscani/The United Colors of Benetton
Fotos Oliviero Toscani/The United Colors of Benetton
Modernos até a raiz da peruca: na terra do minimalismo, quanto mais diferente, pintado, arrepiado, furado, tingido e montado, melhor

Por ser, no contexto de Harajuku, uma turma mais comportada, as gyaru se fantasiam em período integral: cabelo tingido de loiro, pele bronzeada, cílios postiços, sombra cintilante e, absolutamente imprescindível, salto plataforma de no mínimo 12 centímetros de altura. Algo como uma versão exacerbada da Sandrinha, personagem de Adriana Esteves na novela Torre de Babel. Como quase todas as modas que surgem no Japão, a tribo das gyaru (versão ajaponesada de girls, garotas, em inglês) teve origem numa celebridade, a cantora pop Namie Amuro. Atualmente, a musa é a cantora Ayumi Hamasaki, que acrescentou ao visual da moda lentes de contato coloridas e gigantescas unhas postiças. A tribo viu-se no meio de uma discussão nacional depois de dois acidentes de carro, além de uma queda na rua, atribuídos à altura estapafúrdia dos saltos plataforma.

Patricinha nipônica – Para abastecer o closet, o adolescente moderno de Tóquio vai ao Shopping 109, onde estão instaladas as marcas mais bacanas. A colegial Hitomi Aoki, 17 anos, gasta no 109 o equivalente a pelo menos 850 reais por mês para se produzir. "Quando estou vestida assim e maquiada, não fico tímida, posso falar qualquer coisa", diz, numa tentativa de explicação. Para não se privar de nenhum acessório, Hitomi complementa a mesada com bicos: atende em lojas de conveniência, entrega panfletos na rua, vende comida em shows. Justiça seja feita: o adolescente japonês pode não saber por que segue uma tendência, mas a maioria trabalha para conseguir acompanhá-la. Uma vez por semana, Hitomi gasta 42 reais em uma sessão de bronzeamento artificial. É moderada. Reiji Kawakami, da ala masculina dos loucos por uma cor morena, diz que se bronzeia todo dia. Queimadíssimo, cabelos clareados e bermuda, Reiji parece um surfista. E, de fato, surfa. Só que inverteu a ordem dos fatores: amorenou-se em 1998 e começou a pegar onda em 1999. "Às vezes a pele fica um pouco ressecada, mas fora isso não tem problema", diz a estudante Mia Kobayashi, de 18 anos, que se tosta seis vezes por semana em sessões de meia hora.

Fotos Reagan Love
Fotos Reagan Love
Babadinho com sombrinha, touca e avental: umas imitam ídolos do rock, detalhe por detalhe; outras fazem questão de não imitar ninguém e criar seu próprio figurino

Mia circula na fronteira que separa as gyaru das yamamba, a face extrema do movimento. Com um tom de pele capaz de fazer Adriane Galisteu parecer Branca de Neve, cabelos platinados, lábios e olhos pintados de branco, as yamamba ("bruxa da montanha") tiveram seu momento, mas encontram-se em extinção. Floresce, por outro lado, a tribo das garotas que querem clarear a pele: em 1987, a indústria de cosméticos clareadores movimentou 820 milhões de dólares; em 1998, 1,8 bilhão. Ter pele alva, atributo tradicionalmente cobiçado no Oriente, é requisito para se encaixar no grupo das kireime, as comportadas garotas que usam maquiagem em tons pastel e saia na altura do joelho e adoram grife importada, de preferência Gucci, Fendi, Louis Vuitton e Prada. "A qualidade é excelente e a marca dá status", explica Mari Ywata, que gasta o equivalente a 1 200 reais por mês para se transformar numa patricinha nipônica. Mari é kireime assumida. Já a colegial Akina Sato, 17 anos, conta que está na fase de transição do estilo ura-hara para o das loucas por grife. Ura-hara, abreviação de ura-Harajuku (atrás de Harajuku), é a mais eclética das tribos. Seu figurino passeia do informal ao punk e é inteiramente garimpado em brechós e lojas alternativas das vielas de Harajuku.

A tese de que o visual maluco dos ura-hara ajuda o adolescente a superar as inseguranças da idade é defendida por Satomi Kawaguchi, editora da revista Zipper, uma das publicações preferidas dos alternativos. "Os jovens não gostam mais de vestir as mesmas coisas que seus amigos porque querem ser identificados como indivíduos", imagina Satomi. Pode até ser, mas a busca da tal individualidade limita-se ao guarda-roupa. No comportamento, a velha cultura nipônica de colocar o grupo acima do indivíduo continua viva e saltitante. Prova disso é a volta do para-para, uma dança dos anos 80 em que todo mundo tem de fazer exatamente os mesmos movimentos, sincronizadamente. Não há gyaru que resista. "Para-para emagrece, diverte e ajuda a fazer amigos", explica Mariko Niuki, 17 anos. Mariko enfrenta três sessões semanais de bronzeamento artificial e diz que perde a personalidade quando sai à paisana. "Sem maquiagem, não sei quem sou", suspira. Sabe, entretanto, que só quer vestir a fantasia de gyaru até os 20 anos, a idade da maioridade no Japão. "Depois, você vira adulta e não pode mais fazer muita bobagem", conforma-se.


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