Tilson Thomas faz "Bachianas"
soar como Mahler
Por Luís Antônio Giron
de São Paulo
Será preciso esperar pela próxima tiragem do CD "Alma Brasileira" (RCA/BMG), com cinco obras do compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos executadas pela orquestra americna New World Symphony, dirigida por Michael Tilson Thomas. A edição recém-lançada traz no livreto uma gafe de constar em antologia: a foto de Ary Barroso, acompanhada pela legenda "O principal compositor clássico brasileira, Villa-Lobos, recebendo a Ordem Nacional do mérito em 23 de setembro de 1955". O erro foi importado pela gravadora com o livreto e está na edição original, que usou material fornecido pelo Museu Villa-Lobos do Rio de Janeiro. É um dado sintomático do desconhecimento que os grandes centros produtores da música possuem sobre as fontes da obra do maior compositor brasileiro. Um desconhecimento, aliás, não muito diferente do exibido no Brasil.
Há um conceito profundo na gafe. No imaginário geral, a música de Villa-Lobos se assemelha à de Ary Barroso, pelo balanço, nacionalismo e amor ao folclore. No livreto, os organizadores do CD imprimiram diversas fotografias do compositor e fizeram questão de trazer a público uma, vincada quase no meio, em que Villa-Lobos aparece, com um cigarro na boca, a tocar cuíca, rodeado de outros instrumentos típicos, tão do agrado dos turistas. A figura do "índio de casaca", que tem-se reproduzido de geração a geração, ajudando a carreira de muitos artistas brasileiros, volta à tona. Mesmo no Brasil, é "mainstream" encarar e tocar Villa-Lobos como o simpático amigão de Pixinguinha, Tom e Ary. Perde-se a dimensão essencial da obra: a escritura presa às formas do passado e, mesmo assim, pronta para criar escotilhas para o "ad libitum", a fantasia disforme. Não é inútil lembrar uma das frases célebres do mestre, quando se defendia das acusações de escrever com displicência as partes dos violinos: "Não posso preocupar-me com os probleas de um rabequista, quando o meu espírito me fala". Copiou a "boutade" de Beethoven, mas valeu a intenção.
A orquestra de Miami, porém, não professou o mesmo exotismo ao gravar o disco, no Broward Center for the Performing Arts, em Fort Lauderdale, em 16 e 17 de janeiro de 1996. O maestro Tilson Thomas produz um Villa-Lobos com sonoridades mahlerianas, ultrassinfônicas e como que colorizadas. Algum copista da orquestra se encarregou de corrigir, ao lado do maestro, os erros das partituras, facilitando a vida dos pobres "rabequistas". É um acréscimo interessante à série de interpretações das "Bachianas Brasileiras" e dos "Chôros", tradicionalmente afetada pela abordagem "ary-barrosiana" de Villa-Lobos. Ora, de certa maneira, a New World Symphony responde ao desafio do problema da interpretação dessa obra múltipla e cheia de desvios, sobretudo os apresentados por erros de copistas e de impressão das partituras. É uma ocasião para ouvir Villa-Lobos (1887-1959) tocado com alta competência musical.
A orquestra toca quatro daz nove "Bachianas Brasileiras" - as de número 4, 5, 7 e 9- e os "Chôros Nº. 10". A soprano americana Renée Fleming canta a "Ária (Cantilena)"" e a "Dança (Martelo): Molto Animato" (grafada como "Danza" no disco), terceiro e quarto movimentos da "Bachianas Brasileiras Nº. 5" (1938-1945). Nos "Chôros" aparecem os BBC singers, com Simon Joly como regente de coro. O clima do 78 minutos do álbum é de vigor e euforia. Renée Fleming é uma das grandes sopranos da nova geração. Sua maneira de cantar a bachiana, no entanto, está muito calcada na primeira versão da obra, pela soprano brasileira Bidú Sayão, dos ano 40. Renée imita até o sotaque "normas-do-canto-brasileiro" de Bidú, auperpovoado de "erres'' fortes e chiados lisboetas. Renée se destaca quando pensa nas notas e se esquece dos versos do "Martelo" de Manoel Bandeira ("Irerê, meu passarinho/ do Sertão do Cariri/ Cadê viola?/ Cadê meu bem?/ Cadê Maria?"), que soam ridículos no acento da soprano.
Os BBC Singers e a orquestra apresentam a melhor versão já gravada dos "Chôros Nº. 10", com seus corais puladinhos, massa orquestral pesada e um dos mais difíceis solos de trompete urdidos em música brasileira (foi composto durante o ensaio da estréia para desafiar a técnica do trompetista Alvibar, segundo Adhemar Nóbrega relata na monografia "As Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos", de 1971). O CD mostra versões que superam alagumas das gravações da série integral feita por Villa-Lobos e a Orquestra da Rádio e Teledifusão Francesa nos anos 40, até hoje a abordagem mais importante da obra. A superação se dá pela excelência dos timbres e a fluência agógica. Convertê-las em mahlerianas não chega a constituir ousadia. A exemplo do brasileiro, o compositor vienense muitas vezes se debruçou sobre as obras de Bach e escreveu diversas "atualizações" das obras do mestre alemão para orquestra.
Compostas entre 1930 e 1945, as "Bachianas" não caem na facilidade da transcrição. São evocações sinfônicas longínquas da linguagem de Bach, sem se preocupar em emular o seu rigor. Vilal-Lobos definiu assim o projeto as "Bachianas": "A música de Bach vem do infinito astral para infiltrar-se na terra como música folclórica e o fenômeno cósmico se reproduz nos solos, subdivindo-se nas várias partes do globo terrestre, com tendência a universalizar-se". Mas tamanha folclorização de Bach resulta em alteridade quase total. Há citações inteiras de partitas, árias, prelúdios e futas e suítes do compositor alemão nas "Bachianas". Entretanto, os procedimentos modernistas e hiperbólicos de Villa-Lobos ofuscam as citações. É sua obra-prima. Ela é explorada e valorizada com talento pela New World Symphony. As orquestras brasileiras deveriam ouvir o CD durante os ensaios e tentar pelo menos reproduzir parte dos achados de Tilson Thomas. Já fariam um serviço aos ouvidos cansados do público.
Copyright Luís Antônio Giron 1997