Brahms, um lírico no século da ciência

Composer Johannes Brahms


O compositor alemão Johannes Brahms foi enterrado em 6 de abril de 1897 no Cemitério Central de Viena, perto dos túmulos de Beethoven e Schubert. A cerimônia foi acompanhada por uma multidão de músicos vindos de todos os pontos do continente. Não havia parentes nem mulher. O venerável mestre solteirão parecia ter a idade do século. As barbas brancas lhe davam aparência de profeta bíblico. No entanto, quando morreu, de câncer no fígado, em 3 de abril daquele ano, contava 63 anos. Até o fim, alimentou uma paixão platônica pela viúva de Schumann, a pianista Clara Wieck, morta um ano antes, em 30 de maio de 1896. Quando a musa morreu, parou de compor. Sua última obra foram os `Prelúdios Corais op. 122", para órgão, publicados em 1902. Ele acreditava que Clara tinha sido a única mulher a tê-lo compreendido. É dela uma das melhores definições do compositor, feita a propósito da análise dos quatro "Kavierstücke op. 119": ``Brahms é uma pérola cinza. Você as conhece? Elas parecem estar veladas, mas são muito valiosas". Pois a "pérola cinza" outra vez faz papel discreto, agora no centenário de sua morte.

A programação comemorativa é pequena (leia nesta página), comparada à do ano Schubert, ainda que a importância do compositor seja igual ou até maior em alguns aspectos do que Schubert. Brahms foi o hierofante da música pura, aquela que se esquiva da interferência verbal, dramática e religiosa. Nâo concedeu à ópera e ao poema sinfônico. Considerava-se orgulhosamente um "pagão". Não acreditava em Deus. Seu lirismo soa um tanto opaco e se adequa ao final do século da ciência. A preocupação básica do compositor se centrou no aperfeiçoamento da arte dos sons. Fora desta é impossível conhecer a obra e a vida de Brahms.

O indivíduo tinha um perfil bruto: filho de um músico, nasceu e se formou em um bairro pobre de Hamburgo. Começou tocando piano em tavernas, convivendo com o bas fond da cidade portuária. Seus modos eram grosseiros. Zombava das mulheres e dos aduladores. Como músico, assumiu um papel conservador, colocando-se contra a "música do futuro'' de Richard Wagner e Franz Liszt. Aproximou-se no início da carreira do compositor ultra-romântico Robert Schumann (1810-1856), que o adotou e o hospedou em casa. Com a morte do mestre, em 1856, ele se viu no impasse entre continuar a obra de Schumann e partir para um caminho próprio. Escolheu a segunda via, devotando-se ao estudo dos grandes clássicos. Aprofundou-se nas obras de Palestrina, Isaac, Johann Sebastian Bach e Ludwig van Beethoven. Mudou-se em 1862 para Viena, onde enriqueceu compondo e regendo quatro sinfonias, três quartetos de cordas, quatro quintetos, dois concertos para piano, um de violino e uma imensa obra vocal e pianística. Desenvolveu uma escritura original, fundamentada no fraseado irregular, contraponto denso e combinações harmônicas complexas, como revezar uma sucessão de acordes perfeitos a uma moduação súbita, ou criar uma cadeia de tons distanciada do círculo tonal tradicional. Ao longo de sua vida, promoveu a restauração da música antiga. Nesse sentido, deu continuidade ao trabalho de Mendelsohn, pai da atual "música histórica". Com engenho de musicólogo, Brahms preparou edições críticas das obras de Couperin e dos concertos para cravo de Carl Philip Emanuel Bach, consolidou o baixo contínuo de partituras concertantes de Haendel e das cantatas de número 4 e 21 de Bach e revisou o "Réquiem", de Mozart, procurando separar as partes originais dos acréscimos de Süssmayr. Sua influência para a prática musical do século XX foi igual ou maior do que a de seus inimigos Wagner e Liszt. O fundador do dodecafonismo, Arnold Schoenberg (1874-1951), lhe concedeu honraria de "músico progressista", atribuindo valor supremo à sintaxe melódica do mestre. Também lhe deve muito a moda da música para instrumentos antigos.

Para o ouvinte comum, a música de Brahms demora a se revelar. O crítico Otto Maria Carpeaux, em "Uma Nova História da Música" (1958) afirmou que "só a partir dos 40, 50 anos de idade, com a experiência da vida, abrem-se as portas desse reino fechado". Continua o crítico: "Foi homem áspero, intratável; mas não inacessível. Sua música precia dura a muitos; e ainda parece assim a alguns. Não se abre logo nem com facilidade. É preciso aprender a ouvir Brahms. Quem lhe recusar esse estudo, perderia o acesso a um patrimônio espiritual que só poderia desaparecer com nossa música toda e com a nossa civilização". Este raciocinio parece ter virado hábito. O ouvido precisaria amadurecer a fim de entender Brahms. Mas talvez a humanidade já tenha envelhecido o suficiente para enfrentá-lo.

Ele próprio não pensou muito na música. Suas reflexões estão em cartas que escreveu a amigos, especialmente a Clara. "Eu falo por meio da minha música", escreveu a Clara em setembro de 1868. "A única coisa é que um músico inferior como eu gostaria de acreditar que era melhor do que sua música". No fim da vida, em 1893, afirmou à amiga: "Sinto que posso estar sempre confiante no seu interesse pela minha música e na afinidade com ela. Mas o artisat não pode e não deve ser separado do homem. E, em mim, acontece que o artista não é tão arrogante e suscetível quanto o homem, e este tem apenas pequeno consolo se não se permite que a obra daquele amplie os seus pecados". A obra, enfim, representava a redenção do homem. O caráter egocêntrico e taciturno de Brahms, curiosamente, levou o homem a desaparecer de cena em benefício da música. Poucos artistas como ele podem ser considerados exclusivamente por sua obra musical. Disse tudo através dela. O homem, de fato, se apequenou diante do artista.

A produção de Brahms músico é imensa, embora as obras aprovadas por ele sejam apenas 122. Movido por um espírito autocrítico, costumava destruir as partituras que não lhe agradavam, principalmente as da juventude. Com isso, perdeu-se a maior parte das obras românticas do compositor. Foi o próprio Schumann, num artigo para a revista "Zeitschrift zur Musik", na edição de 23 de outubro de 1853, festejou a música pianística do jovem pupilo, a quem chamou de "águia", como "sinfonias embutidas no piano". O objeto de admiração de Schumann eram as sonatas para piano números 1 em dó maior, op. 1, número 2 em fá sustenido menor, op. 2, e número 3 em fá menor, op. 5. Brahms queria realmente fazer orquestra com um piano só. Já nas "Baladas", publicadas no ano da morte de Schumann, o intimisto e a reflexão se fazem sentir. Ele se dedicou à música de câmara e à pianística durante das décadas até se decidir por elaborar uma sinfonia. A "Sinfonia nº1 em dó menor" foi escrita entre 1862 e 1876. Mas logo abandonou a música sinfônica, concluindo em 1885 a "Sinfonia nº 4 em mi menor, op. 98". Como Schumann, Brahms revelou-se econômico em recursos sinfônicos. Trabalhou no sentido de retomar a linguagem iniciada por Beethoven. Tanto assim que sua primeira sinfonia foi celebrada pela crítica vienense como "a Décima de Beethoven". De sinfonia a sinfonia, porém, abandonou uma possível progressão. A essência de sua arte concentra-se na produção camerística. Nos quintetos para piano, no sexteto, nos quartetos, nos trios para cordas e sonatas para piano e clarineta, Brahms disse tudo o que sabia. Impôs um estágio de excelência escritural e de execução até hoje não superado. Cada uma de suas partituras camerísticas tem elementos que rendem teses. O projeto de Brahms foi tornar cada vez mais complexa a estrutura da linguagem tonal. Ao mesmo tempo, pretendeu demonstrar que adotar um estilo de época era um procedimento inútil no tempo da ciência. Brahms ensina que o músico deve se associar a toda a história da música para realizar sua própria obra.

Por isso não há em sua obra uma fronteira distinta entre as fases romântica e clássica. Encarada pelo ponto de vista progressista, ela é involutiva.Vai de uma perspectiva revolucionária (a sinfonia no piano) para um aprofundamento do contraponto e da harmonia. Culmina com os arcaizantes "Prelúdios Corais", para órgão, cuja linguagem se aproxima da polifonia. Se o que Brahms queria dizer o fez pela música, então o que pretendeu dizer? Que a música pura é um mundo autônomo, independente da vontade e dos sentimentos do artista. Um epitáfio para a obra de Brahms poderia ser extraído do ensaio de seu amigo, o crítico formalista Eduard Hanslick, "O Belo Musical" (1854), cujo bordão é o seguinte: "A representação de um determinado sentimento ou emoção não está absolutamente em poder da música". Brahms expressou idéias integralmente musicais. Talvez por isso seja tão difícil de ser compreendido.

Luís Antônio Giron


Back to the index