As composições autocríticas de Clara Schumann
Aos poucos, Clara Schumann se descola da efígie da nota azul de cem marcos. As composições da musicista alemã (1819-1896) têm chamado cada vez mais a atenção dos intérpretes de renome. Mas interpretar essa obra minúscula (23 opus) ainda é um ato alternativo no campo da música erudita. Raramente CDs com música de Clara são encontrados nas lojas. A BMG brasileira lançou um pacote com dezenas de títulos em CD do selo Arte Nova Classics, dedicado à edição de obras raras por intérpretes não muito conhecidos. Deste suplemento, consta, meio escondido, o disco "Clara Schumann - Lieder", com a soprano chinesa Lan Rao e a pianista alemã Micaela Gelius. Ali figura a produção integral das canções para voz e piano de Clara, com versos de poetas alemães como Goethe, Lyser, Rückert e Heine. Além de uma abordagem sensível, o CD traz um convite para conhecer a obra musical dessa compositora que se pautou pela modéstia, terminando por fazer de cada composição um exercício de autocrítica.
Como a refletir o fato, as intérpretes exibem uma extrema contenção. Lan Rao não faz uma ponte entre o lirismo arqui-romântico de Clara com a arte vocal chinesa, apesar de ter estudado música chinesa clássic na China e ser uma das mais ativas divulgadoras do estilo no Ocidente. A soprano estudou no Conservatório de Munique e tem amealhado prêmios vocais na Alemanha. Já fez turnês pela China, Singapura, Itália, Áustria, Grã Bretanha e Estados Unidos. Com Micaela Gelius, faz uma dupla ideal. A pianista se especializou em acompanhamento de Lied, tendo estudado com Jor Demus, Paul Badura-Skoda e Elly Ameling.
O CD compreende 27 Lieder, distribuídos em diversas coleções, em que se destacam o Op. 12 ("Três Canções sobre Textos de Friedrich Rückert, compostas em 1840, o Op. 13 ("Seis Canções", 1842-1843) e o Op. 23 ("Seis Canções de Jucunde de Hermann Rollett, 1853-1856). Foram todos editados em Leipzig, cidade natal de Clara, sem que tenham saído em ordem cronológica. Na verdade, a última composição dela publicada está no Op. 21, uma coleção de peças para piano onde figura a "Geburtstagmarch", em ré bemol, escrita em 1879. A produção de Clara foi esparsa e se concentrou principalmente nos últimos anos de convivência com o marido, Robert Schumann (1810-1856). Foram tempos em que o compositor foi tomado de paranóia, tentou suicídio e por fim internado em um sanatório, enquanto que restava a Clara tomar conta da casa e da educação das sete crianças do casal. Sem poder se apresentar, ela conseguiu encontrar ocasião para escrever música a um piano instalado longe do marido, que não podia ser perturbado.
O fato é que as manias do marido fizeram com que ela compusesse mais do que nunca. Se na adolescência compôs peças curtas ("Quatro Polonaises Op. 1", de 1830, e até um "Concerto para Piano e Orquestra" (Op. 7, de 1836), na companhia do marido escreveu as canções op. 12 e 13, além de peças para piano, como "Três Prelúdios e Fugas Op. 16", "Quatre pièces fugitives Op. 15", e obras orquestrais e de câmara, como o "Concertino para Piano" (1847), o "Trio com Piano Op. 17" (1846) e "Três Romances Op. 22" (1855-1856), para violino e piano.
Soa falsa, portanto, a afirmação de que ela vegetou à sombra de Schumann e teria renunciado, em nome do amor, à carreira de recitalista. Sua abnegação se relacionou à criação dos filhos. Robert se apaixonou por Clara Wieck quando ela tinha 16 anos e já era uma celebridade na Europa Central. Levada pelo pai, o pianista Friedrich Wieck, apresentava-se em todo o continente e era reconhecida como a melhor intérprete feminina de sua geração, exaltada por Goethe, Liszt e Chopin, entre outros. Estudou piano com o pai, que a queria transformar em virtuose e desejava para ela um futuro mais brilhante do que se unir a um de seus alunos mais pobres, Schumann. Mas este era apaixonado e, em seus exercícios de crítica (foi um dos grandes críticos musicais do Romantismo) e poemas em prosa escritos em 1830, ele misturava personagens fictícios com Zilia, como a chamava. Zilia contracenava com Florestan e Eusebius e Meister Rarus, na verdade codinome do futuro sogro. Casaram-se sem a permissão de Wieck em setembro de 1840, depois de terem levado o caso aos tribunais. Wieck passou a desprezá-los. Era natural que a jovem se apoiasse no marido. Schumann apresentou-a aos mestres. Ensinou-lhe os prelúdios e fuga de Bach e dividiu com ela a cátedra do Conservátório de Leipzig. Graças a ele, conheceu em 1854 aquele que viria a ser seu mais intenso correspondente e amigo, o compositor Johannes Brahms (1833-1897). Na condição de aprendiz, ele morava com o casal quando Schumann enlouqueceu. Brahms se converteu em apoio para Clara. Suspeita-se de que os dois alimentaram um longo caso amoroso, mas o fato nunca foi comprovado. Mesmo porque tanto um quanto outro tratou de eliminar a maior parte da correspondência e outros documentos. Clara fazia questão de sustentar a imagem da viúva dedicada eternamente a Schumann.
O fato é que não abandonou a carreira e se sentiu motivada a lhe dar novo impulso com a morte de Schumann. De 1856 até 1891, ela cultivou os recitais e concertos, compondo cada vez menos. Seu último concerto tinha no programa as "Variações para dois pianos sobre um tema de Haydn", de Brahms. Mudou-se para várias cidades, entre elas Berlim, Hamburgo e finalmente Frankfurt-sobre-o-Meno, onde morreu, em 20 de maio de 1896.
Concertos, peças para piano solo, um trio, partituras de câmara e duas dezenas de canções. É provável que Clara tenha destruído a maior parte de suas tentativas composicionais. O que resta é uma produção interessante, embora nunca genial. A trama melódica se sobrepõe aos aspectos rítmicos e harmônicos. Como compositora, lembra mais Chopin e Schubert do que Schumann. Pautou a atividade pública pelo repúdio à "música do futuro", defendida por Liszt e Wagner. Combateu até o fim os dois compositores. Exemplo da persistência está numa carta que escreveu a Brahms, em 1891, em que manifesta alegria pelo fato de estar recebendo mais dinheiro dos direitos autorais de Schumann: "É uma prova irrefutável, a despeito dos Wagner e dos Liszt!" Clara defendia a primeira água da estética romântica, sem tolerar o messianismo wagneriano. Postava-se ao lado de Brahms, representante do classicismo e antiwagneriano ferrenho. Clara aplicava a mesma regra na obra autoral. Ela é simples e afastada dos sismos da estética ultra-romântica.
Liszt percebeu isso desde o princípio. Encontrou-a pela primeria vez em 1837 em Viena. Sobre o encontro, escreveu à amante, Marie d´Agoult: "É uma pessoa bastante simples, muito bem educada, nada boba, aborvida por sua arte, mas com nobreza e sem puerilidade. Ficou pasma de me ouvir. Suas composições são verdadeiramente notáveis, sobretudo para uma mulher. Há cem vezes mais invençãoe e sentimento real nelas do que em todas as Fantasias passadas e presentes de Thalberg". A comparação com um compositor medíocre não deixa de conter uma nota de sarcasmo. Liszt ouviu medianidade da obra de Clara.
A história da música não se faz apenas de gênios, e masculinos. A obra de Clara Schumann está longe de ser medíocre. Possui uma doçura de romantismo nuançada pelo senso de medida e crítica. O melhor de sua produção está nos "Lieder" abordados no CD. É obra de leitora apaixonada dos poetas alemães. Elege os poemas mais idílicos, mais povoados de imagens de bordado com ponto fino. Ela retoma versos consagrados por compositores, como "Das Veilchen" (Goethe), musicados anteriormente por Mozart, e "Loreley (Heine), por Schubert e outros mestres. Faz uma paródia em cima da leitura diagramática de Mozart para suavizar e dar sentimentos e vazios à pastora que colhe a flor. Dramatiza, como numa ópera de bolso, o retrato da sereia do Reno, tirando-lhe a nódoa folclórica. A marca pessoal se afirma no Op. 23, conjunto que exibe variedade de recursos e invenção de melodias inesperadas. A leitora se torna melancólica diante dos poemas de Hermann Rollett, um metafísico tardo-romântico. Ousa então o traço mais forte, a reticência do acompanhamento pontilhista, a síntese e até o borrão modulatório que lembra Richard Strauss e Gustav Mahler. O ato da leitura ganha um corpo e se realiza na elaboração musical.
"Sempre pensei que tinha talento criativo, mas desisti dessa idéia", escreveu em seu diário, em 1839. "Uma mulher não deve compor". Mesmo que a afirmação talvez contenha um toque de auto-ironia, como pôde pensar assim? Clara acreditou demais nos homens.
Luís Antônio Giron