A biografia definitiva de José Maurício

 

Nem todo o biógrafo é uma ave de rapina. Há alguns, raros, que consomem o tempo na busca da restauração de outra vida, como se a biografia consistisse no livro de uma existência, ou na razão da vida. A musicóloga e regente carioca Cleofe Person de Mattos, de 83 anos de idade, entrou em coma profunda em maio deste ano, logo depois de concluir a edição do livro "José Maurício Nunes Garcia - Biografia" (373 págs.), lançado agora pela Biblioteca Nacional.

O volume é a biografia definitiva do maior compositor colonial brasileiro, nascido em 1767 e morto em 1830 no Rio de Janeiro. Trata-se, também, da prestação de contas final do trabalho de Cleofe, iniciado quando se formou na Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro, em 1940. A pesquisadora redescobriu e catalogou a maior parte da obra do compositor. Ao longo de 50 anos, vasculhou e reuniu documentos, restaurou e fez as primeiras audições de partituras prestes a serem destruídas. Regeu e gravou diversas obras de José Maurício, à frente da Associação de Canto Coral, cujo primeiro núcleo, o Coro eminino Pró-Música, fundou em 1941. As vidas de José Maurício e Cleofe se perfazem no volume. Diante dos olhos do leitor, ela descortina todos os segredos, todos os detalhes até então obscuros da vida e da obra de José Maurício. Num "tour de force" intelectual, Cleofe analisa a obra e penetra nos meandros íntimos e nos documentos mais impossíveis referentes ao músico.

Esse ensaio biográfico assinala uma etapa de excelência na musicologia brasileira, inaugurando um novo período de pesquisas. Terminada a varredura da vida e da obra do compositor, resta às novas gerações interpretar e analisar a sua contribuição estética. Também é tarefa considerar o trabalho de Cleofe Person de Matos à luz da história. Poucos musicólogos no Brasil foram capazes, como ela, de restaurar um tempo extraviado pelo descaso das instituições do passado. Sozinha, ela tomou para si a tarefa de uma fundação. Sua inconsciência é mais uma tragédia brasileira.

A biografia de José Maurício (1767-1830) se sobressai pela discrição. Não há vôos teóricos ao longo ds 33 capítulos, divididos em três partes, das notas detalhadas, do cadastramento das obras, da discografia, bibliografia e índice onomástico. O trabalho se mostra aparentemente austero. No final, um caderno de ilustrações traz iconografia inédita sobre o compositor e o Rio de Janeio da época. A leitura atenta da obra, porém, traz momentos preciosos de sensibilidade e inteligência em relação ao objeto de pesquisa, além de inúmeras revelações. O estilo da autora é fluente e a leitura se apresenta agradável do começo ao fim. O mais surpreendente do livro está no retrato da personalidade intelectual de José Maurício. Cleofe retira da figura todo a pátina folclórica para por no lugar um intelectual com "multifacetada estrutura", como diz. No mesmo ímpeto, ela restabelece a personagem trágica do músico mulato que se esforça, sem sucesso, para ser reconhecido pela Corte Portuguesa, estabelecida no Rio a partir de 1808, é destituído de todas os seus títulos e morre na miséria mais humilhante.

Nos primeiros capítulos, o livro se detém na formação de José Maurício. Afirma que o menino se beneficiou com a transformação do sistema educacional da Colônia desde a expuslão da Companhia de Jesus, em 1759, principalmente com a instauração do "subsídio literário", imposto que a Coroa cobrava para ser revertido ao ensino público gratuito. Mas, repara a autora, "desenvolvera-se no Rio de Janeiro uma sociedade em que a minoria culta pairava muito acimad a população que mal começava a ter acesso regular aos primeiros degraus da aprendizagem literárias". Os professores de música, narra, usavam "artinhas", manuais com rudimentos da música, que eram passadas para os alunos. Foi assim que José Maurício aprendeu a arte-ciência dos sons, nas aulas do professor Salvador José, músico "pardo". Aos doze anos de idade, José Maurício já trabalhava como professor de música. Aos 17, em 1783, compunha sua primeira obra, a antífona "Tota pulchra es Maria", para soprano, coro a quatro vozes, violinos, viola, violoncelo e flauta . Na nota referente a esta obra (as notas do livro são tão interessantes quanto o corpo da obra, coupando um terço do espaço do volume), Cleofe afirma que ela é "uma expansão ingênua dos ensinamentos de Salvador José", enquadrando-se "no âmbito da mineiridade que ronda a primeira fase das composições de José Maurício".

A formação do compositor e do artista prossegue em paralelo a seu exercício profissional. Estuda retórica com o inconfidente Manuel Inácio da Silva Alvarenga e se envolve com a Sociedade Literária, fundada por este e fechada em 1794 como foco de insurreição iluminista pelo vice-rei. Ao mesmo passo firme com que se consolida como compositor, José Maurício se destaca na oratória. Escreve diversos sermões, cujos textos se perderam, restando apenas seus títulos: Sermão das Dores, Sermão de Santa Cecília, Sermão das Lágrimas, Sermão de Pentecostes, Sermão dos Santos Inocentes.

Mas é no traje de músico que ele vai alcançar a notoriedade. O livro analisa, uma a uma, as 32 composições escritas no setecentos por José Maurício, enquanto aponta os passos de sua educação. Em 1792, torna-se padre, não por profunda vocação sacerdotal, mas espírito prático e vontade de seguir carreira na música. Beneficia-se com a decisão. Passa a compor mais para os ofícios da Sé, e, em 1795, é encarregado pelo vice-reinado a eninar no Curso Público de Música, então com sede na rua das Marrecas. Torna-se logo mestre-de-capela da Real Capela. Na rua das Marrecas, forma uma geração de músicos (todos arrolados em uma nota) e tem oportunidade de realizar saraus musicais. "Toda uma geração de músicos irá sentar-se nos seus bancos: futuros professores, cantores, músicos de orquestras, compositores, importantes personalidades da admnistração da vida musical da cidade que ao longo do século dezenove vão ocupar posições de relevo no Rio de Janeiro". Acompanhando-se ao violão, o músico canta modinhas e xácaras, promovendo tertúlias musicais que ficam na história da cidade. Dele restam três modinhas que, segundo a autora, mostram ter composto muito mais. A autora acha que o estilo típico sentimental e autóctone da modinha passou de certa forma para as centenas de partituras sacras do compositor: "Revelam que o músico que traz um vulcão dentro de si e se rende a esse gênero meio popular, meio erudito, fazendo-o aflorar em várias composições religioss. Os ecos desse gênero na música de José Maurício podem ser vistos como as primerias manifestações do nosso nacionalismo musical".

Talvez esta seja a única afirmação discutível no livro. É uma posição muito combatida nos últimos anos, mesmo por musicólogos como o alemão Francisco Curt Lange (1912-1996), que rechaçava qualquer traço nacionalista nos compositores coloniais, incluindo no rol José Maurício. Este soa mais Haydn e Mozart do que modinheiro em suas obras orquestrais e corais. O fato é que o nome de José Maurício passa a fazer parte do repertório argumentativo da primeira geração romântica, à frente da qual se encontrava o poeta, dramaturgo e artista plástico Manuel de Araújo Porto-Alegre. É ele quem faz a máscara mortuária do artista, a pedido do filho deste, José Maurício Nunes Garcia Júnior. O episódio da moldagem da máscara é lembrado pelo próprio Porto-Alegre, que diz ter visto, nos aposentos do morto um tratado de contraponto e de harmonia que havia terminado poucos dias antes de morrer, além de uma folha de papel com um "círculo movediço no qual estavam marcados todos os tons e que movido em qualquer sentido que fosse, apresentava em roda um sistema completo de harmonia". A impressão é tão forte que Porto-Alegre escreverá na revista "Nitheroy", em 1836, em Paris, um ensaio sobre música em que dará a José Maurício a condição de patrono de um possível nacionalismo musical. Desde o Romantismo, portanto, o compositor é identificado como artista paradigmático na fundação de uma música pátria.

Tal debate, porém, fica ocioso quando se analisa a obra completa do compositor, densa, mutante, com tanta peça ainda a ser executada. A musicóloga se debruça extensamente sobre ela. Aponta três fases básicas: a setecentista mineira, vincada pela simplicidade, formas clássicas e música para vozes e órgão; a clássica, em que escreve para orquestra e formações vocais e instrumentais mais complexa; e finalmente a italianizante, já com a chegada de dom João VI, período durante o qual concede aos clichês do virtuosismo, à escritura rápida do compositor italiano Gioachino Rossini e à profanização da música sacra. Ainda que atualizado com as modas musicais da Europa, o músico se mantém fiel a alguns princípios adquirdos na juventude, como o baixo cifrado e a teimosa resistência ao contraponto, que não chegou a estudar com afinco, fragilidade observada por Cleofe. A biógrafa tende a identificar a concessão ao gosto da Corte à decadência musical e pessoal do compositor. Mostra o quanto ele se deixa influenciar pela amizade com o castrato italiano Giovanni Francesco Fasciotti, que aporta no Rio em 1816. Segundo ela, a música do final dos anos 10 e início dos 20 de José Maurício será selada pelo estilo vocal virtuosístico do sopranista. Fasciotti participou dos saraus musicais na rua das Marrecas e muitas missas do compositor trazem meneios vocais que só castrados poderiam interpretar na época. Com a chegada da Missão Francesa em 1817, José Maurício se torna também amigo do compositor austríaco Sigismund Neukomm (aluno favorito de Haydn que só não teve melhor carreira no império Habsburgo por ter sido homossexual). Entusiasmado com o talento do músico ao cravo e à regência, Neukomm escreve em 1820, na prestigiosa revista musical vienense "Allgemeine Musikalische Zeitung" uma crítica sobre a estréia do "Réquiem", de Mozart, na Real Capela do Rio de Janeiro, sob regência de José Maurício, em 19 de dezembro de 1819. Para o repórter-músico, a apresentação não deixa nada a dever a similares européias. Em 1821, José Maurício repete a façanha ao apresentar, pela primeria vez na América, o monumental oratório "A Criação", de Haydn.

Apesar de todos os esforços para mostrar seu talento à Corte, José Maurício é estigmatizado veladamente por sua condição de mulato e perseguido por seu arqui-rival, Marcos Portugal, autor português cuma ação foi deletéria para o músico brasileiro. Portugal, até prova em contrário, prejudica a trajetória do já então chamado "padre-mestre". Parte dele, por exemplo, a decisão de não apresentar a ópera "Le Due Gemelle (1817), de José Maurício, composta especialmente para ser levada à cena no Teatro São João. As partes da única ópera do padre-mestre se perdem com o incêndio do teatro, em 1824. Segundo Cleofe, teria restado uma só partitura, nas mãos de Marcos Portugal. Num daqueles lances inesperados que só a musicologia faz, ela localiza um anúncio publicado no "Jornal do Commercio" em 26 de gosto de 1834, em que era vendia uma caixa de músicas de Marcos Portugal, morto quatro anos antes . E especula: "Suas composições espalharam-se abundantemente por Minas Gerais, e não seria milagroso encontrar um dia a ópera do padre José Maurício".

A vida de José Maurício é o relato de um sonho de glória desfeito, mas da afirmação de uma produção artística frágil e bela que transcende um tempo. Hoje, apesar de mal-executada, ela faz parte do patrimônio da humanidade. "Assim cumpria ele a missão que escolhera: ser músico para trazer a seu povo a palavra que era sua, e que era nova", escreve Cleofe. Embora sem levar a análise e a interpretação às úlitmas conseqüências, a biografia de José Maurício constitui a realização de um sonho de pesquisadora. Antes de mergulhar na inconsciência, Cleofe Person de Matos teve tempo de fazer vir à luz o trabalho de toda uma vida.

Luís Antônio Giron                                                      (Gazeta Mercantil, 7/11/1997)


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