Edino Krieger é erudito, de vanguarda e faz jingles
Luís Antônio Giron
Rio de Janeiro
"Mas não é
possível!", exclamou o maestro alemão H.J. Koellreutter ao ver seu aluno Edino
Krieger na quinta-feira, dia 26 de março, no Teatro 2 do Centro Cultural Banco do Brasil,
onde este estava sendo homenageado com um concerto. "Você tinha 14 anos até outro
dia, freqüentava as minhas aulas. E agora todas essas homenagens!" O tempo passa,
mas Edino Krieger também quase não sente que completou 70 anos de idade no último dia
17 de março. É um dos mais veneráveis compositores e agitadores culturais brasileiros.
O reconhecimento que lhe rendeu um mês inteiro de homenagens no CCBB por parte de discípulos, colegas, os três filhos (dois deles músicos) e até professores, como Koellreutter, de 83 anos. Com uma obra tão pequena (uma centena de títulos) quanto multifacetada, Edino Krieger merece ser mais ouvido, embora não reclame da falta de discos ou de oportunidades. É capaz de escrever uma peça dodecafônica e simultaneamente flertar com a música popular. Já inventou jingles e foi parceiro de Vinicius de Moraes num Festival Internacional da Canção. Se no teatro musicou "Antígona", de Sófocles, no cinema perpetrou cinco trilhas sonoras para Os Trapalhões, "quando eles ainda eram pobres". O que não o impediu de escrever oratórios e peças sinfônicas de fazer frente ao compositor mais rigoroso. Em todas as formas musicais Krieger destila melodias cheias de lirismo. O jingle não parece tê-lo afastado da peça sinfônica, nem o inverso. Vestir a casaca e empunhar a batuta nunca o apartou do espírito prático. Cometeu até crítica musical. E não conta o segredo de como circular por todos os gêneros sem perder a reputação, ou a cabeça..
"Olho para os cartazes enormes que colocaram para os concertos com minha cara e nem parece que é comigo", diz na desconversa, com bom humor. Sentado numa cadeira em seu apartamento, no bairro do Botafogo, ele concedeu esta entrevista sem demonstrar uma sesquiáltera de impaciência. Agitado, ia de um lado para outro, a exemplificar a própria vida. Ofereceu cafezinho, trouxe listas de discos, mostrou uma ou outra gravação, atendeu telefonemas e relembrou a trajetória iniciada à sombra de uma placa redonda de metal. Apontou com orgulho o objeto que decora seu escritório. É um daqueles protetores de bumbo de bateria; ali se lê, em letras vermelhas "Jazz Band América - 1929". Conta que pertencia ao conjunto de seu pai, Aldo Krieger, e mais nove tios, paternos e maternos, fundado um ano depois do seu nascimento.
A cidade de Brusque, Santa Catarina, onde nasceu e a jazz band foi fundada, era pequena nos anos 30. Aldo trabalhava na alfaiataria do pai e, nas horas vagas, se dedicava à boêmia, empunhando um violino que tocava gaiatamente. As primeiras lembranças de Edino são dos ensaios de Carnaval que aconteciam na alfaiataria do avô. Ali despertou o interesse pela música. "Meu pai era bem claro nos propósitos. A farra era com ele e os amigos. Ele me destinava ao estudo sério do violino". Começou a estudar o instrumento com o pai, aos 7 anos. No programa, em vez dos sambas e maxixes da jazz band, sonatas de Corelli, Bach, minuetos e "quilos de czárdas". "Eu queria jogar bola de gude. Mas meu pai aparecia de repente em casa e eu corria para pegar o violino para fingir ser um aluno compenetrado".
Mesmo fingido, o estudo deu resultados e, aos 9 anos, Edino se apresentava em várias cidades de Santa Catarina como virtuose. "Eu era o menino prodígio de Brusque. Toda cidade tem o seu. Aí quando vinha um musicista na cidade logo me apresentavam a ele". Nas suas andanças pedagógicas, Koellreutter foi parar em Brusque, e conheceu Edino. Aos 14 anos, deu um concerto em Florianópolis que chamou a atenção do então governador, Nereu Ramos. Então ganhou uma bolsa para estudar violino no Conservatório Nacional do Rio de Janeiro. Lá, voltou a se encontrar com Koellreutter, na época líder da vanguarda dodecafônica no Brasil. Assim começou a se processar a segmentação do talento do jovem músico. No conservatório, aprendia pelo método mais tradicional. Mas dosava o conservadorismo freqüentando as aulas de Koellreutter, que o iniciou no dodecafonismo, nas tendências contemporâneas e na composição livre. "Rabisquei minha primeira composição para entregar a ele", lembra Edino. "Koellreutter olhou para minha tentativa e a pôs de lado, me convidando a começar tudo do início: contraponto, harmonia, composição".
Ao lado de Guerra-Peixe e Claudio Santoro, fez parte do primeiro núcleo do grupo Música Viva, fundado pelo professor alemão. "Aprendi muita coisa", conta. "Comecei a fazer minhas primeiras composições seriais, mas sem deixar de lado o resto. O Koellreutter envolvia a gente em tudo quanto era concurso ou projeto. Em 1948, fez com que todos nós compuséssemos uma parte da trilha de um longa-metragem intitulado 'Mãe', do diretor Teófilo Barros. A gente participava de concursos, gravações, o que pintasse. Isso me infundiu um pragmatismo que até hoje mantenho. A grande lição que tive do meu mestre é que o músico não deve se isolar do mundo".
Muitos hinos e gravações depois, o professor apresentou o jovem aluno ao compositor Aaron Copland, um dos maiores mestres norte-americanos, de passagem pelo Brasil. Ele estava escolhendo três bolsistas sul-americanos para um programa de seis semanas para seus seminários em Tanglewood, patrocinados por uma fábrica de tratores. Copland escolheu Edino Krieger para integrar o seminário, acenando ainda com um uma bolsa de um ano para depois do evento, na Juilliard School of Music, de Nova York. O jovem aterrissou nos EUA, em 1948, pensando que teria um comitê de recepção no aeroporto de La Guardia, em Nova York. "Mas quem me recebeu foi um policial, que me levou a um hotel, trancou a porta por fora e me conduziu na manhã seguinte à ilha de Elis", conta o maestro. Por um descompasso telegráfico, o comitê de Copland havia aparecido um dia antes. "Resultado: passei um fim de semana inteiro na prisão da ilha de Elis, jogando pingue-pongue com uns indianos que também esperavam ser liberados". Na segunda-feira, Copland o mandou chamar pelo alto-falante e Edino estreou no seminário de música de Tanglewood.
"Copland trabalhou orquestração. Era uma pessoa excelente, um sujeito muito simpático e acessível", diz. Durante o seminário, encontrou o compositor francês Darius Milhaud, que, sabendo que o jovem vinha do Brasil, dizia toda vez que o encontrava: "Saudades do Brasil! Saudades do Brasil!" Milhaud se autoparodiava. "Saudades do Brasil" é o título de uma de suas obras mais conhecidas.
Na Juilliard, o bolsista estudou com Peter Menin e apresentou lá algumas de suas primeiras composições. "Já na época eu me distanciava do dodecafonismo e compunha baseado em temas tonais e modais". Ao voltar ao Brasil, em 1950, caía em plena efervescência do debate entre o grupo Música Viva e os nacionalistas, capitaneados pelo compositor Mozart Camargo Guarnieri, discipulo e herdeiro estético de Mário de Andrade. 'O Camargo escreveu a "Carta Aberta", desancando o grupo de Koellreutter e chamando o dodecafonismo de coisa espúria. Mas a gente mesmo no grupo tinha consciência de que o uso do serialismo era um meio, não um fim em si mesmo". Como resposta ao debate, Edino Krieger partiu para uma terceira via. Em 1952, compôs o "Sururu dos 12 sons", um choro para flauta e cordas dodecafônico que, no entanto, era brasileiro até debaixo d´água (intitulou-o mais tarde de "Choro", para não parecer provocação). "Quando trilhei pelo dodecafonismo, não fiz música abstrata. O 'Sururu" era uma codificação de certos componentes brasileiros dentro da música brasileira".
Na época, paralelamente á atividade como compositor, teve que trabalhar na mídia. "Tornei-me assistente do Rei Momo na Rádio Mec ", brinca, explicando que Nelson Nobre, o chefe da discoteca da emissora, virava o Rei Momo da cidade durante o Carnaval. Para complementar o orçamento, topou um convite do compositor Francisco Mignone, para editar a página de programação musical da "Tribuna da Imprensa", recém-fundada por Carlos Lacerda. "Na 'Tribuna' eu critiquei o despropósito da cólera dos nacionalistas e me ocupei da programação de concertos e óperas da cidade. Desde o início me dei conta de que precisava anunciar o concerto antes de criticá-lo, procedimento ñão muito comum naquele tempo". Nos anos 70, repetiu a dose no "Jornal do Brasil", mas desistiu porque o espaço da música erudita diminuía a olhos vistos. "Sempre achei que uma página deveria servir para beneficiar a vida musical. Música não é como teatro. Leva um tempo enorme para ser ensaiada e só dura um instante, o do concerto. Se não houver cobertura da imprensa, nada sobre dela. O crítico manifesta uma opinião pessoal, com a qual podemos discordar. Mas também registra o fato acontecido e nisso ele é insubstituível".
Sem ter seguido carreira acadêmcia, Krieger optou por desenvolver o trabalho como organizador de eventos e projetos. Em 1952, começou a dirigir a série "Concertos para a Juventude", que nos anos 70 foi para a TV. Organizou em 1962 a Orquestra Siunfônica Nacional do MEC. Fundou em 1975 a Bienal de Música Contemporânea do Rio. Para as comemorações dos 500 anos do Descobrimento, teve aprovados pelo governo dois projetos: o de um espetáculo audiovisual sobre o acontecimento e o da elaboração de um livro com ensaios musicológicos sobre 500 anos de música brasileira.
Como músico, ainda deseja compor sinfonias. "Brahms compôs a sua primeria aos 40 anos. Por que não posso fazer a minha depois dos 70?" Quanto a ópera, tem medo de compor mais uma candidata à desaparição, "como tantas outras que a gente viu por aí". Prepara um ciclo de canções e música coral sobre poemas do conterrâneo Cruz e Souza, cujo centenário da morte é celebrado este ano. "São poemas difíceis de musicar porque têm uma autonomia assustadora", comenta. "Mas é um desafio a que me propus".
O estilo de Edino Krieger como compositor se baseia no ecletismo, no entusiasmo melódico-rítmico e na brevidade formal. Escreveu para conjuntos de câmara peças como o "Quarteto nº 1" (1955), forjado segundo os preceitos contemporâneos, e o "Concerto para 2 violões e Orquestra de Cordas" (1994). Embora não seja pianista, compôs um "Prelúdio (Cantilena) e Fuga (Marcha rancho)" (1954), numa mistura de tradição erudita e formas brasileiras. A marcha-rancho, estruturada como uma fuga dupla, foi arranjada para quatro vozes e ganhou, em 1967, letra do poeta Vinicius de Moraes. A música recebeu o título de "Fuga e Anti-Fuga" e ganhou medalha de ouro no II Festival Internacional da Canção, em 1967. Entre os cantores que apresentaram a música, figurava a estreante Beth Carvalho, mais tarde sambista. Esta marcha -ancho, como muitas outras canções de Edino Krieger, é banhada em lirismo e nostalgia. Ele busca evitar tais características nas obras sinfônicas, entre elas a monumental e stranvinskiana "Ludus Symphonicus", peça estreada em 1965 ela Orquestra Sinfônica de Boston. Ali e em outras obras mais recentes, como o "Te Deum" (1997), para coro infantil, coro juvenil, coro gregoriano, metais e percussão, comparece todo o cabedal de uma linguagem desenvolvido ao longo de 50 anos.
"Aprendi todas as regras, mas nunca fui muito obediente a elas", constata, com ponta de auto-ironia. A desobediência foi tão sistemática que dela surgiu uma das produções musicais mais interessantes e despretensiosas da música brasileira do século XX. E mal começou a ser ouvida.