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Jeitinho brasileiro completa 200 anos

 

 

Por Luís Antônio Giron

do Rio

Domingos Caldas Barbosa faz a alegria dos nacionalistas. Talvez não haja nada considerado tão tipicamente brasileiro quanto esse poeta e músico português nascido provavelmente durante uma travessia de navio entre Angola e Brasil, filho de negociante branco e escrava. Caldas Barbosa (1738-1800) criou-se no Rio. Desde muito cedo foi presa da própria língua. Construiu a fama explorando costumes exóticos do Brasil. O volume de sua coleção de versos, intitulado "Viola de Lereno", foi editado há duzentos anos. Nenhuma editora local ou portuguesa parece ter-se lembrado do fato. Mas o livro representa, nas palavras do crítico Wilson Martins (ôHistória da Inteligência Brasileira", 1977), o "aparecimento da sensibilidade brasileira". Segundo Manuel Bandeira, Barbosa trata-se do "primeiro brasileiro onde encontramos uma poesia de sabor inteiramente nosso. É o marco inicial do jeitinho brasileiro, aliás termo que ele emprega abundantemente. Seu nome não consta das enciclopédias da música popular local e é posto em segundo plano nas histórias literárias. A última edição brasieira de "Viola de Lereno" foi feita pelo Instituto Nacional do Livro em 1944. Deixou uma contribuição artística ainda não interpretada de forma racional.

Faz-se, assim, injustiça contra uma figura relevante, o fundador do vocabulário completo da consciência coletiva do país. Na época em que cursava o Colégio dos Jesuítas no Rio, alguns personagens de seus poemas satíricos foram reclamar ao vice-rei sobre o tom pouco elogioso com que eram retratados. O vice-rei não teve outro remédio que enviá-lo como soldado à Colônia de Sacramento, no extremo sul do Brasil, hoje território uruguaio. Em 1763, o jovem sátiro decidiu fixar-se em Lisboa. O resultado foi o estrondoso sucesso da música crioula em uma corte narcotizada pela austeridade. Os historiadores Oliveira Lima e Teófilo Braga acham que a voga dos cantos mestiços de Lereno deriva da popularidade das óperas de outro carioca, o dramaturgo Antonio José da Silva, o Judeu, morto pela Inquisição em 1739. Entretanto, as óperas do Judeu não guardavam exotismo algum e seguiam o paradigma do bel canto napolitano.

Caldas Barbosa se tornou o primeiro trovador da malandragem e dos sentimentos brasileiros a ter escapado do anonimato. Em Lisboa, lançou a modinha e o lundu, gêneros musicais praticados pela gente mestiça da Colônia que formariam a base da música brasileira: de um lado a tristeza derramada da modinha; de outro, a umbigada sensual-afro do lundu. Lereno Selinuntio (codinome adquirido na Arcádia Romana) apropriou-se da poção mágica. Sozinho, alterou a configuração dos saraus da corte lisboeta. Era convidado a apresentar suas canções, acompanhando-se ao violão. E estas eram cantadas de boca em boca, vendidas em partituras e coletâneas de poemas. Morreu de uma rápida enfermidade em Lisboa em 1800, deixando inéditos, ram reunidos no segundo tomo de Viola de Lereno, publicado em Portugal em 1826.

Até ser editado o primeiro volume do livro, Caldas Barbosa havia lançado obras em diversos gêneros e consolidado a reputação. Começou tendo alguns poemas publicados em 1778 na Coleção de poesias feitas na feliz Inauguração da estátua d'El Rei Nosso Senhor D. João. Seguiram-se Epitalâmio (1777), o drama jocoso Os viajantes ditosos, representado no Teatro do Salitre em 1790. A Recompilação dos Sucessos Principais da Escritura Sagrada saiu em versos, em 1792. A farsa dramática A Saloia Namorada ou O Remédio é Casar foi representada em 1793 no Real Teatro de S. Carlos. No ano seguinte, no mesmo palco, foi mostrado o drama joco-sério ŽVingaça da cigana. Escreveu o poema épico Lebreida na mesma época. Em 1799, apareceu sua única obra em prosa, um texto de ocasião: Descrição da grandiosa quinta dos senhores de Belas e notícia de seus melhoramentos (1799). O conjunto da obra é constrangedoramente medíocre. Com Viola de Lereno, no entanto, a fama do capadócio (poeta-músico popular) ultrapassou de longe a do escritor.

Foi tanta que atravessou o Canal da Mancha. Em seu diário sobre os costumes da vida portuguesa (ôSketches of Spain and Portugal", escrito em 1787), o nobre e escritor William Beckford (1760-1844) relata que as notas cantadas em Lisboa por Caldas Barbosa eram irresistíveis, até mesmo para ele, autor do romance fantástico e erótico Vathek. "Com uma impertinência infantil, elas se instalam em seu coração antes que este possa se armar contra sua influência enervante, escreve. "Você imagina estar engolindo leite, enquanto vai permitindo o veneno da volúpia nos recessos mais íntimos de sua existência.

Talvez o julgamento de Beckford incorresse em exagero. O fato é que as modinhas e lundus de Lereno, além de farsas e poemas de sua lavra, tiveram enorme repercussão na época. Enquanto a corte requebrava, na colônia fazia sucesso um antípoda de Lereno, Tomás Antônio Gonzaga com o nada nacionalMarília de Dirceu (Viola de Lereno saiu na Bahia bem depois, em 1813). Caldas Barbosa Colecionou títulos e inimigos. A família Vasconcelos e Souza, à qual pertencia o vice-rei do Brasil, apresentou-o à sociedade portuguesa e lhe conseguiu ordenação como capelão da Casa da Súplica. Além de ser recebido na Arcádia Romana, foi convidado a figurar entre os fundadores da Nova Arcádia de Lisboa e da Academia de Belas-Artes portuguesa. O crítico José Agostinho de Macedo o intitulou de Anacreonte redivivo.

Como sempre acontece, proliferaram os rivais literários. Os poetas árcades locais o viam como um intruso, fruto espúrio da colônia. Bocage passou a produzir epítetos, explorando o aspecto mestiço do bardo. Chamava-o de "fusco trovador" , "coitado orangotango" e "neto da rainha Ginga". Felinto Elíseo dizia que Lereno não passava de um imitador Anacreonte e tinha pretensões a cisne.

Humilde, o poeta respondia aos ataques com quadrinhas singelas como esta: "Não é do Tamise um cisne/ Quem vai soltar este canto;/ Brasileiro papagaio

D'arremedo a voz levanto. Nem Zé Carioca teria representado melhor o Brasil naqueles tempos.

Uma das grandes questões dos estudos brasileiros desde o século XIX foi saber se houve algum resquício de cultura nacional antes da Independência, em 1822. Por instinto de preservação, os intelectuais nativos sentiram necessidade de localizar a essência tipicamente brasileira apesar do domínio português e dali deduzir a descendência. São os mitos da nacionalidade.

O cânone cometeu muitas impropriedades. Alguns pesquisadores juram que há traços modinheiros na música de José Maurício Nunes Garcia (1767-1830). Mas este autor mulato, pelo contrário, lembra mais o austero Haydn do que os batuques do lundu. Também a questão da brasilidade tem assombrado desde dom Pedro I o poema "O Uraguai", de José Basílio da Gama, publicado em Lisboa em 1769. Mas é tão brasileiro quanto Camões. O escultor Aleijadinho era tipicamente nacional? O fato é que todos esses senhores foram súditos portugueses e procuraram compartilhar da cultura cosmopolita que as cortes de Lisboa faziam questão de fomentar, com ênfase no modelo italiano.

Caldas Barbosa também era português e não há notícia de que tenha pensado em separatismo em algum momento de sua vida. Cultivou, no entanto, o acento da colônia, chegando a transcrevê-lo em suas iiras, dando nova rítmica ao português cortesão. Wilson Martins reforça a afirmação do historiador Varnhagen, para quem Caldas Barbosa não deveria ser julgado por suas cantigas. Para eles, estas merecem outro tratamento. "Devem ser estruturalmente estimadas em perspectivas inteiramente diversas das que estabelecemos para a apreciação da música popular contemporânea", embora, segundo o crítico, muitos versos antecipem de fato a música popular. Talvez para dotar Lereno de reputação culta, os analistas se encarregaram de extrair-lhe o lado popular e modinheiro.

"Dir-se-ia que a poesia alegre e o lundu fossem as técnicas de evasão e superação dessa alma sensível", escreve Martins, como a insistir que a arte de Lereno é superior à do mero letrista. Por levar a técnica da poesia muito a sério, alguns estudiosos apontam a construção fraca do poeta. O crítico José Verissimo o intitula poeta mercenário. Sobre Lebreida escreveu Varnhagen que não passa de "frouxa composição em 59 oitavas que nem merecem o nome de poema". Mesmo "Viola de Lereno" não merece elogio maior de Massaud Moisés e José Paulo Paes no "Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira". Escreve a dupla: "É uma coleção de lundus, modinhas e liras de um arcadismo visivelmente de decadência, em que a frouxidão formal é compensada por certa esponteidade de linguagem, no adociamento dos dengues e no sentimentalismo, entre lascivo e servil, tanto quanto pelo uso frequente de termos regionais, já se pode considerar diferencialmente brasileira."

Acontece que a fatura poética de Caldas Barbosa parece demonstrar que o lundu e a modinha não eram técnicas de evasão e superação, como quer Martins, nem frouxidão formal, e sim o meio primordial de seu trabalho. O ritmo das poesias de Lereno é vinculado aos dos dois gêneros e assim também a temática. O lundu, rápido e repetitivo, se presta ao humor; a lenta modinha, aos lamentos. O fato de ser um trovador não lhe tira o valor poético, mesmo porque a música popular está cheia de densidade literária. O servilismo não está nas modinhas e lundus, mas nos poemas encomiásticos perpetrados ao sabor das conveniências.

Poucos atentaram para a raiz musical das letras de Lereno. No fim do século XIX, Silvio Romero encontrou índices da popularidade do poeta-músico no Nordeste, onde as liras da "Viola de Lereno" são até hoje cantadas como música folclóricas. Na "Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial" (1952). Sérgio Buarque de Hollanda reforça o argumento: "Entre os poetas do seu tempo, quem mais vivamente exprimiu a meiguice brasileira, antepassado dos atuais cantores populares.ô

Deve, sim, ser encarado como um letrista fundador de linhagem que vai dar na música popular contemporânea. O dengue, o humor, a bajulação e a melancolia são traços característicos dos versos musicados do Brasil, de Lereno a Caetano. O próprio capadócio compôs muitas músicas, lançadas em arranjos italianizantes no século XIX, quando modinha e lundu passaram a ser cantados nos intervalos de óperas e viraram gêneros semi-eruditos. As melodias são ingênuas, mas grudam no ouvido para sempre, com o ritmo solto e economia de modulações. O estilo rococó comparece nos temas, mas de forma desviada. As clássicas Ulina, Armânia, Elfina e Dorila se misturam a Nhanhá, Xarapim e negras requebrantes. Os ambientes pastorais são percorridos pelo lundum, o jeitinho brasileiro, o amor que bateu asas e voou, chulices, fandangos, pimenta malagueta e a ternura que no Brasil "oh! se tem! tem".

Basta ler os poemas em voz alta para a síncope do lundu e a melancolia da modinha virem à tona. Lereno não resiste à leitura silenciosa. Escreveu odes tenebrosas, como a que inicia com: "Trepai, ó fértil vide;/ Por vós nos vem buscar Nações inteiras/ Abrindo a terra, ide". Tudo muda com as liras, feitas com o olho na música. Ao ganhar som, mesmo o da voz, tornam-se vivas, anunciadoras de Vinicius de Moraes, Sinhô, Dorival Caymmi, João Gilberto, Chiquinha Gonzaga e todos os poetas musicos da tradição popular. Esta quadrinha soa pura Bossa Nova, cantada por João: "Quem quiser saber se eu amo/ Repare em meus olhos bem/ Que eles não sabem calar/ A paixão que o peito tem". Só falta Caymmi dizer "Isto, Amor, não é bem feito/ Não, não é bem feito, não". O caráter mestiço aparece em versos como "Amor comigo é tirano/ Mostra-me um modo bem cru,/Tem-me mexido as entranhas/ Q' uestou todo feito angu. Se visse o meu coração/Por força havia ter dó/ Porque o Amor o tem posto/ Mais mole que quingombó". Em  "Retrato de Meu Bem, ele escreve como a anunciar Dolores Duran: "Pois que o lindo original/ Meus tristes olhos não vêem/ Quero ao menos consolar-me/ C'o retrato do meu bem".

O vocabulário colonial está nos ritmos, melodias, nos dengues e sentimentos. A estutura simples permite que a música se adapte a ela com facilidade e toque qualquer sensibilidade. Fez poesia funcional, com frivolidade tão grande quanto talento. A exemplo dos artistas da música popular, não pode ser considerado poeta puro, mas letrista. O erro de julgamento de muito literato brasileiro reside em confundir letra de música com poesia. Ambos os setores possuem suas especificidades. Tomar um pelo outro empobrece o ponto de vista. Assim, liras e cantigas sempre vão parecer poemas frouxos, já que o suporte delas é sonoro e está na forma-canção.

Caldas Barbosa atuou como um Adão da nacionalidade. Apontou e nomeou os signos logo depois adotados como pátrios. Estes se incorporaram de tal forma ao imaginário brasileiro que parecem agora lugar comum. Mas houve quem os pronunciasse pela primeira vez. O chavão foi um dia original.

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