João Carlos Martins encerra ciclo de Bach




Há obstinações que consomem uma vida, e podem justificá-la. Aos 57 anos de idade e 49 de carreira, o pianista brasileiro João Carlos Martins completa um projeto que concebeu quando tinha 10 anos de idade: gravar toda a obra para teclado do compositor alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750) segundo suas próprias convicções estéticas. A edição "Martins/Bach" (gravadora Concord), com 19 CDs, um CD bônus e um livro, será lançada em janeiro de 1998 no hotel Plaza de Nova York e estará nas lojas em março. O evento celebra o cinqüentenário da carreira de Martins e marca seu retorno às turnês internacionais, abandonadas desde os anos 70.

As gravações aconteceram em duas fases: dez CDs de 1979 a 1985, quando ainda seu contrato era com a Labor Records, mais tarde comprada pela Concord. A segunda se deu de 1993 a abril deste ano, ao todo nove CDs A última gravação aconteceu em Sófia, na Bulgária. Foram peças avulsas e duas tocatas. De 4 a 28 de abril último, dedicou-se a gravar em Sófia, indo do hotel ao estúdio, estudando obsessivamente ao lado do produtor Heiner Stadler. Além disso, gravou os concertos para dois pianos (com seu irmão, José Eduardo Martins), duetos e o grande "Prelúdio em Lá Menor". A gravações vão constar nos dois últimos volumes da edição Bach. A última peça do volume 19 é uma "Fugueta em Dó Menor". Foi a primeira peça que Martins tocou, com 8 anos de idade, duas semanas depois de ter começado a tocar piano.

O CD bônus da edição fechará o arco, trazendo gravações particulares de interpretações de Martins feitas entre 1948 e 1960, abarcando seu período de formação. Constarão os registros feitos pelo pai de Martins quando o pianista tinha oito anos, inclusive a execução primitiva da "Fugueta". Outras raridades são o "Concerto em Si Bemol Maior", de Mozart com Armando Belardi e a Orquestra da Rádio Gazeta, executado durante o concurso de solistas patrocinado pela rádio Gazeta de São Paulo em 1950, e o "Sonho de amor", de Liszt. Além do CD, a caixa virá com um livro com ensaios e análises sobre a obra e a trajetória do pianista, escrito pelo crítico David Duvall, autor de best-sellsers musicais como "Conversations with Menuhin" e "Evenings with Horowitz".

A Concord planeja para o lançamento da edição "Bach/Martins" um extenso material de divulgação, como calendário, relógio, displays, folhetos e outros produtos com o rosto do artista. Afinal, o feito é histórico. Nunca um pianista ousou ir tão longe na abordagem da produção de Bach. São partitas, prelúdios e fuga, concertos, suítes, invenções, fantasias e variações trabalhadas com perfeccionismo e um ponto de vista polêmico: interpretar Bach com expressão romântica, entusiasmo e o perfeccionismo que só um estúdio de gravaçâo pode proporcionar. Isso posiciona a aventura do artista ao lado da do canadense Glenn Gould (1932-1982).

A exemplo de Gould, a abordagem de Martins provém de uma reflexão profunda e subjetiva em torno de Bach, um ruminar de longo e dolorido progresso, feito de recuos, acidentes e interrupções. No ponto final de ambas as empreitadas está a idéia de reconstruir o legado de Bach sob a espécie da modernidade. Martins cultiva o mesmo senso de perfeccionismo de Gould no que tange à digitação e à articulação. Martins possui a capacidade rara, idêntica à de Gould, de manter a regularidade digital em qualquer velocidade, sem que a nota "caia" antes de a outra vir à tona. A interpretação do pianista brasileiro se distingue pelo toque mais agressivo, a ornamentação mais sintética e expressivismo. Gould era um amante da forma clara e da ornamentação ostensiva. Como resultado, surge um Bach diverso pelos dedos de Martins: um Bach polêmico como o de Gould, mas dotado de uma vitalidade rítmica que o canadense parece ter desconsiderado.

"Gould gravou 70% da produção de Bach; eu, 98%", orgulha-se Martins, em entrevista concedida na semana passada em São Paulo, onde passou suas férias. Ficaram de fora a "Arte da Fuga" e uma fuga sobre um tema de Albinoni. O motivo é simples, segundo o pianista: "Não são peças que eu admire. Além do que a "Arte da Fuga" possui muitas versões para piano e, na minha opinião, se trata de um conjunto de exercícios para escolas de música e não combinaria no contexto da obra artística completa". A posição causa controvérsia, já que "Arte da Fuga", apesar do propósito pedagógico, contém algumas das mais admiradas fugas "artísticas" de Bach, como a que se baseia nas letras de seu sobrenome, e recebeu versões de artistas fundamentais, como Gustav Leonhardt e Wanda Landowska. O fato é que Gould também não gostava muito da obra e se recusou a gravá-la. Polêmicas também se fazem de ausência.

"Bach foi a pessoa que mais se envolveu em polêmica em sua época", diz Martins. "Ele agrediu os hábitos da época, introduzindo dados inéditos na escritura musical. Isso chegou até o século XX. Ele ficava feliz em se envolver em discussão e, se estivesse vivo, estaria do lado dos progressistas em relação à interpretação de suas obras. Eu também faço parte do contexto da controvérsia".

O pianista jura que está sendo fiel ao texto da partitura e explica sua abordagem com paciência infinita. Seus fundamentos se fincam em uma hipótese: "Bach talvez tenha sido o primeiro artista a ter sensibilidade e técnica suficientes para lidar igualmente com o órgão e o cravo. O piano nada mais é do que a realização da sua obra, unindo o volume sonoro do órgão e a clareza do cravo. Os sons se sobrepõem no órgão. Assim, tomo a liberdade de usar o pedal quando entro em outro acordo em obras de Bach em que a técnica do órgão predomina". De acordo com Martins, Bach uniu os pulmões do órgão com a clareza do cravo e somente o piano moderno é capaz de tirar todo o proveito dessa linguagem. E dispara esta: "O piano é a conseqüência tecnológica da escrita de Bach".

Restaurar o espírito da obra é um exercício normal de liberdade, já que qualquer escrita musical compreende colaboração do intérprete. "Me lembro, por exemplo, das versões de 1955 e 1979 das "Variações Goldberg", de Gould. São totalmente diferentes. Também não vejo como Bach também não tenha ele próprio alterado sua maneira de tocar. Não existe lei, mas a intuição de como tocar. Bach queria que cada um acreditasse na sua verdade dentro daquilo que ele escreveu. Os pilares são de Bach, mas a vontade vem do intérprete. É nesse sentido que eu respeito o texto original".

Prevê que daqui a 30 anos a música histórica terá se tornado definitivamente histórica e sua interpretação de Bach ainda será ouvida. "No começo do século havia excesso de liberdade. Landowska e Gould apareceram então para dar um ponto de equilíbrio, ainda que com leituras muito peculiares. Você precisa acreditar na sua interpretação."

A crença o conduz a convicções como a da eficácia de um conselho que o pintor Salvador Dalí lhe deu durante um jantar em 1970: "Estávamos na mesa de jantar num restaunte finíssimo de Nova York. Dalí estava acompanhado pela Mia Farrow. Conversa vem, conversa vem, ele veio com o conselho: 'Vá dizendo por aí que você é o melhor intérprete de Bach e um dia irão acreditar. Eu faço isso há 50 anos em tem gente que pensa que eu sou o melhor pintor do mundo'. A gente riu, mas ali estava um conselho sobre a persistência".

Ao longo de sua carreira, o artista viveu problemas capazes de fazer qualquer um desistir de insitir. Em 1967, passou a sofrer de síndrome de movimentos repetitivos decorrente de uma lesão no nervo cubital. "A lesão me provocava dores enquanto tocava", conta. Parou de 1970 a 1978 por causa do excesso de dor. De 1978 a 1985, voltou aos palcos, mas teve que tomar precauções par se apresentar, como colocar o braço no gelo e fazer exercícios específicos. Em 1993, estrelou o caso Pau-Brasil, que envolvia sua empresa no esquema de corrupção no governo de Paulo Maluf. Provou inocência, rompeu com o ex-prefeito de São Paulo, de quem foi colaborador durante 20 anos, e decidiu trocar o Brasil pelos Estados Unidos. No período em que se envolveu em política, abanonou o piano no período em que se envolveu na política. "Também não tinha mais prazer em tocar. Para mim piano tinha sido meio de vida desde que comecei. Virou naqueles oito anos um meio de morte", diz. Juntou os cacos da reputação política abalada e voltou à forma em 1993. "Percebi que no piano estava a minha salvação", diz, subentendendo-se que piano é igual a Bach. Voltou a praticar e retomou o projeto. Em 20 de maio de 1995, em Sófia, ele saiu do estúdio de gravação, feliz por ter concluído o 16º CD do ciclo. Foi então abordado por dois assaltantes, que lhe queriam levar o passaporte. Martins resistiu e foi espancado. Teve convulsõe e ficou estirado na calçada por horas sem socorro. Isso lhe provocou uma lesão no cérebro que lhe paralisou a mão direita. De volta aos EUA, começou a fazer um tratamento de reprogramação cerebral. "As células do hemisfério esquerdo do cérebro que conduzem o braço direito estavam mortas. O tratamento visava a desviar o uso dos neurônios da fala para movimentar a mão direita exclusivamente para tocar piano. O resultado é que nunca estive tocando tão bem quanto agora". Enquanto fala, a mão paralisa diante do piano. Ao tocar, se torna subitamente mudo. Um jornal americano chegou a chamá-lo de "pianista cyborg".

"Concluí que quando você tem uma deficiência, precisa recriar tudo dentro do seu cérebro e acaba crescendo musicalmente", afirma. Em maio de 1996, reuniu forças para reestrear no palco, depois de onze anos de ausência. O evento aconteceu no Carnegie Hall em Nova York, com grande repercussão na imprensa. Pouco antes, Martins havia solicitado à Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo que agendasse um espaço para que a reestréia acontecesse no Brasil. "Fui ignorado", reclama."Muitas pessoas no Brasil não conseguem desvincular o problema político do meu trabalho artístico. O resultado é que existe uma discrepância absurda entre a critica brasileira e a do resto do mundo. Todo mundo reconhece a importância da minha contribuição. Em São Paulo me dão pau. Daí decidi mudar de rumo Para que vou me desgastar e tocar numa cidade em que ninguém quer me ouvir?"

Enquanto isso, suas gravações e os raros ganham as manchetes do "New York Times" . "Billboard", "Fanfare", "The Washington Post" etc. Em maio de 1998, sai em turnê pelos Estados Unidos. Até o fim do ano, grava com a English Chamber Orchestra e o violinista Pinchas Zuckerman obras contemporâneas, liberando-se da enorme convivencia de Bach.

"Acredito no ideal", avalia. "Conheço a teoria da queda e da ascensão. Já toquei bem e mal, tive altos e baixos. Eu talvez tenha sido um dos únicos brasileiros a ter cumprido com o seu ideal com autenticidade e impondo seus próprios princípios".

Disso ele pode ter certeza. A edição "Martins/Bach" revela, nos 17 CDs lançados até agora, uma vitalidade e uma originalidade de interpretação que renderão teses no futuro próximo. Os altos e baixos da existência foram filtrados e quase não persistem nos CDs, produzido com cuidado e amor ao ofício. O ideal de transfiguração foi atingido. O ciclo de Bach de João Carlos Martins já está na história das realizações da música brasileira. Em seu conjunto, é um monumento ao livre-arbítrio em música. Basta que o ouvinte se despoje de preconceitos e se deixe sacudir pelos dedos machucados de um grande artista.

Luís Antônio Giron

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