A "artinha'' do Mozart da Rua das Marrecas

O conhecimento musical no Brasil se desenvolveu por meio da pedagogia. Os primeiros balbucios de pensamento estético se dão nas lições de música produzidas pelos compositores coloniais. Até hoje estes são apresentados pela história da música como figuras pitorescas. Ela deixa de lado métodos, fundamentos e formação intelectual desses artistas, como se se tratassem de gênios surgidos por geração espontânea. O fato é que compositores setecentistas brasileiros legaram tratados, lições e "artinhas'', como se chamavam os livros que continham os rudimentos da música. Basta citar os exemplos do baiano Caetano de Mello de Jesus com a "Escola de Canto'' (1759), o pernambucano Luiz Álvares Pinto com a "Arte de Solfejar'' (1761), a "Arte Explicada de Contraponto'' (1797), do português radicado em São Paulo André da Silva Gomes, e o "Método de Pianoforte'' (1821), do padre carioca José Maurício Nunes Garcia (1767-1830).Desses tomos, apenas o último foi publicado. O "Método'', do ''padre-mestre'' que encantou D. João VI quando aportou no Rio em 1808, acaba de sair em edição organizada pelo cravista Marcelo Fagerlande (Relume Dumará/RioArte. 168 págs., R$ 29,00). A publicação representa um avanço nos estudos musicais no país e o primeiro estágio para o conhecimento do cabedal teórico dos pensadores sonoros da Colônia. A negligência das instituições nacionais para com a arte é tão flagrante que precisaram passar diversas gerações até que Fagerlande -de 35 anos, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos mais brilhantes instrumentistas de música histórica em atividade no país- tomasse a iniciativa de estudar para seu mestrado o manuscrito de José Maurício, depositado desde o início do século XIX no Conservatório Nacional de Música, hoje Escola de Música da UFRJ. O método foi lançado em disco (Funarte, 1983, pela pianista Ruth Serrão) antes de ganhar uma edição impressa, compreendendo fac-símile do manuscrito e estudo histórico e musicológico sobre a obra. Agora que o disco está fora de catálogo, aparece a consolidação da obra por Fagerlande. A ignorância brasileira é profunda graças à industriosa preguiça das instituições.

A pesquisa de Fagerlande levou três anos para ser concluída. "O pior foi o trabalho de convencer editores de que a obra era importante'', comenta. O que resulta dela é a espantosa constatação de que José Maurício foi não só o compositor colonial mais importante, mas principalmente um sábio que encontrou no Rio de Janeiro do século XVIII condições para se formar e se manter atualizado com a produção européia. Evidencia-se que a vida musical carioca da Colônia já possuía um circuito de ensino, produção e consumo da música, concentrado na prática privada e no aparelho educacional jesuítico. Outra conclusão, ainda mais importante, é a de que o músico mulato praticamente introduziu o ensino de piano naquele que viria a ser chamado no século XX de "país de panistas''. "A obra de José Maurício pode ser considerada, até o presente momento, o primeiro método de teclado brasileiro que se tem notícia'', afirma Fagerlande.

O "Mozart da Rua das Marrecas'', como o musicólogo apelida o compositor, formou a geração de músicos que viria a fundar o Imperial Conservatório de Música. Em 1794, ele criou em sua casa, na rua das Marrecas, centro do Rio, um "Cuso de Música'', que viria a manter pelos 28 anos seguintes. À viola de cordas metálicas, ao cravo ou ao piano, José Maurício também incorporou e estabeleceu no país o repertório clássico vienense. Proferia palestras sobre arte e, segundo o historiador Alfredo de Taunay, "colocava Haydn acima de Haendel, a par de Mozart e só abaixo de Beethoven, que costumava denominar divino''. Como mestre-de-capela do rei, foi ele quem estreou em 1819, na Capela Real, o "Requiem'', de Mozart.

O compositor austríaco Sigismund Neukomm (1778-1858), que esteve no Rio entre 1816 e 1821 a serviço da corte, faz o perfil de José Maurício em suas memórias. Chamou-o de "o maior improvisador do mundo''. Correspondente do jornal alemão "Allgemeine Musikalische Zeitung'', ele escreveu que "a execução da obra-prima de Mozart não deixou nada a desejar, todos os talentos competiam para servi-la''. De acordo com o historiador Luiz Heitor, mencionado por Fagerlande, o jornal alemão publicou em 1821 a notícia, enviada por Neukomm, segundo a qual "graças aos esforços do sr. Neukomm e do Padre Maurício, ouviremos A Criação de Haydn. Já se trabalha na distribuição das partes vocais''. Não há notícia da apresentação pública do oratório.

José Maurício utilizou-se de transcrições de obras de Haydn (o segundo movimento da "Sinfonia Surpresa'') e Rossini (abertura do "Barbeiro de Sevilha'') e de trechos de seu "Requiem'' (1816) a fim de elaborar o "Método de Pianoforte''. Escrito expressamente "para o Dr. Jozé Mauricio e seu irmão Apolinário'', filhos do compositor, o compêndio original traz 112 páginas manuscritas, acrescidas de um estudo sobre harmonia. O filho do mestre padre e autor de modinhas Jozé Mauricio recorda-se em seus "Apontamentos Biográficos'', que passou a receber lições pai mais freqüentes do pai "desde q'o No. D. João VI retirou-se pa Portugal, qdo elle ficou então mais cazeiro e socegado ou descançado'' (sic).

A exclusividade da dedicatória parece não ter sido estrita. Nas palavras de Fagerlande, o método consiste na "síntese da orientação didática no ensino da rua das Marrecas''. Divide-se em elementos de teoria, descrição dos principais ornamentos, solfejo e o tratado sobre o instrumento, com doze lições e seis "fantezias''. O "socegado'' mestre, refugado pelo Brasil independente como músico da colônia, achou tempo de sistematizar o que acumulou com a profissão.

O ensaio de Fagerlande compara o método do padre a similares contemporâneos e deduz que todos eles mostram uma defasagem em relação à evolução musical da metrópole. José Maurício usa um vocabulário semelhante ao dos tratados do fim do século XVIII. Suas lições e fantasias, segundo Fagerlande, não se destinam só ao piano, mas também ao cravo. O estudioso destaca a estrutura pedagógica do volume, que apresenta as peças e exercícios em dificuldades técnicas progressivas até chegar a peças mais complexas, intituladas de "fantezias''. José Maurício vale-se das 24 tonalidades e da "aria da capo'', sem se ocupar da forma-sonata. Explica dedilhados e faz indicações de temas e dinâmicas que mostram que o músico estava atualizado. Fagerlande chega a sugerir que José Maurício foi o primeiro compositor brasileiro a ter abolido o baixo contínuo da prática musical. Até os anos 30 do século XIX o cravo e o baixo contínuo, elementos barrocos, eram comuns nos salões fluminenses, ao passo que a Europa já adentrava o Romantismo. Mas José Maurício descartou o ensinamento do baixo contínuo, sintonizado com os procedimentos clássicos.

Hipótese mais interessante do ensaio de Fagerlande é de que o compositor não teria estudado as peças de teclado de Mozart e Haydn. "Tinha conhecimento apenas das obras sacras", afirma. Isso justificaria a ausência da forma sonata no "Método'. O musicólogo apóia-se na análise estrutural da obra para sustentar o argumento. Segundo ele, a notação mauriciana do grupeto (ornamento formado por um conjunto de notas que enfatiza ou conecta a nota principal a uma outra) é extensiva, ou seja, cada colcheia é fixada na partitura. Ora, este tipo de notação era usado para música religiosa por Haydn e contemporâneos. O símbolo do grupeto utilizado nas obras para teclado era um "esse'' deitado, um formato mais sintético. José Maurício não o menciona e provavelmente não o absorveu quando enfrentou peças para teclado de Haydn e Mozart diante do rival, o compositor Marcos Portugal, e o rei.

Fagerlande termina o livro defendendo a inclusão do "Método de Pianoforte'' nos currículos das escolas de música e conservatórios. "É uma obra com um número variado de peças de pequeno fôlego, que ajudam na formação do iniciante. Além de tudo, foi feita por um compositor local e traz música brasileira de qualidade'', diz.

Ao seguir a análise clara do musicólogo, o leitor, mesmo leigo, vai se dar conta da envergadura estética de José Maurício. Ele detém o conhecimento da linguagem do teclado e da composição tonal. Ocupa-se das regras básicas, mas se atreve em formas livres em suas fantasias. Varia as tonalidades, os ritmos, a dinâmica e o fraseado. José Maurício esbanja intervalos característicos do final do século XVIII, como o de sétima sobretônica, sétima da sensível, nona e sexta napolitana e até de segunda. Na "Fantasia 5'', aponta Fagerlande, ele chega ao reuinte de escrever o crescendo à maneira de Scarlatti. Também nas fantasias o compositor vale-se da modulação para nuançar os períodos. É o que acontece na Lição 10, em que a seção de transição é bemolizada para forjar um efeito dramático.

Torna-se claro que José Mauricio assimilou e ensinou a teoria dos afetos do século XVII, e talvez mesmo de maneira consciente. Escreveu 20 missas, centenas de peças sacras, uma "Sinfonia Fúnebre'' e até uma ópera, que se perdeu. Sua "artinha'' desvenda a base de uma grande arte. O livro de Fagerlande contribui para que ela faça parte definitiva da vida musical.

Luís Antônio Giron

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