Anna Maria Kieffer grava integral de Nepomuceno

 

Alberto Nepomuceno em 1897

 

A mezzo-soprano Anna Maria Kieffer e o pianista Achille Picchi lançam, na terça-feira, dia 25, às 19h30, no Instituto Cultural Itaú (av. Paulista, 149, São Paulo), o CD "Alberto Nepomuceno. Canções" (Akron), com 23 das 87 canções do compositor cearense Alberto Nepomuceno (1865-1920). No lançamento, os intérprete mostram algumas obras e fazem uma apresentação audiovisual sobre a vida e a obra do compositor. É um primeiro passo para a recuperação do prestígio de uma obra hoje abandonada aos livros de história da música brasileira, como se Nepomuceno não fosse mais que um precursor do nacionalismo musical e um mestre medíocre. A pesquisa de Anna e Picchi demonstra que ele foi o maior compositor de canções do Brasil e um dos grandes mestres do fin-de-siècle tropical. O projeto da cantora é registrar em CD e divulgar a integral da obra vocal de Nepomuceno.

O disco acrescenta dados inéditos à idéia que se tem sobre o compositor. Afinal, são gravadas pela primeira vez muitas das canções. Anna escolheu as que tinham letra em português e indicação de opus. Há música baseada em versos de Machado de Assis, João de Deus, Gonçalves Dias, Juvenal Galeno, Luís Guimarães Filho, Coelho Neto, Osório Duque Estrada, Gonçalves Crespo e outros poetas da época. A prosódia dessas músicas é impostada e um tanto artificial, reproduzida com fidelidade pela cantora. Mas foi o marco de consolidação do canto em português, ainda considerado monstruoso na época, apesar do ensaio de ópera nacionalista acontecido nas décadas de 1850 e 1860, com encenação de diversas óperas em português. A teimosia de Nepomuceno impôs o canto em português definitivamente por força de suas composições para voz e piano.

Ele não foi, porém, um nacionalista integral. Conforme observa o historiador Vasco Mriz, suas músicas em vernáculo não ultrapassam 30 por cento do total de sua produção. A maioria de seus "lieder" é em italiano, alemão e até sueco. O aprendizado do compositor se deu em Berlim, Roma e Paris, onde estudou órgão com os principais mestres do período. Nascido em Fortaleza, filho de músico, estudou em Recife, dirigindo ali os concertos do Clube Carlos Gomes. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1884, onde tocou piano no Clube Beethoven e na Sociedade de Concertos Clássicos. Na época, pediu bolsa de estudos ao governo para cursar o conservatório de Milão. A bolsa foi negada, mas o escultor Rodolfo Berardelli bancou a viagem do músico à Milão, em 1888, onde estudou como maestro Terziani, o mesmo que havia dirigido a estréia da ópera "Il Guarany", de Carlos Gomes, em 1870. Depois estudou inscreveu na Akademische Meister Schule de Berlim e na Scola Cantorum de Paris. Em Berlim, compôs a suíte "Série Brasileira", uma das plataformas inaugurais do nacionalismo musical. A obra utiliza, por exemplo, o tema folclórico "Sapo Cururu" no movimento inicial, "Alvorada na Serra", o maxixe no "Intermezzo" e no "Batuque" que encerra a obra. Escreveu e fez estrear, na capital francesa, a música de cena para a peça "Electra", de Sófocles, na adaptação de Charles Chabauldth. Voltou ao Rio em 1895, para assumir a cadeira de órgão do Insituto Nacional de Música. Ao dirigir a apresentação da "Suíte Brasileira", em 1897, chamou negativamente a atenção da crítica por causa do "Batuque", que foi chamado de "verdadeiro ultraje à divina arte". A obra tem orquestração pobre e pouca imaginação, mas é considerada uma conquista pelos nacionalistas. A vida de Nepomuceno no Rio foi uma seqüência de sofrimentos e decepções, como aconteceu com todos os artistas que decidiram prestar serviços ao país. Suas duas óperas, "Ártemis" (1898), com libreto de Coelho Neto, e "Abul" (1899), baseada no drama de Herber Ward, representada em 1913 em Buenos Aires e Rio, com relativo sucesso. Entre 1906 e 1906, foi diretor do Insituto Nacional de Música, o que lhe permitiu algumas viagens ao exterior, como a que o levou à Exposição de Bruxelas em 1910, onde regeu diversas obras de compositores brasileiros. Ao deixar o Instituto, compôs obras sinfônicas, trios e quartetos e obfas para voz e orquestra. Richard Strauss regeu o "Prelúdio do Garatuja" em 1920. Morreu pobre, em casa de um amigo, agonizando enquanto entoava cada vez mais piano um cantochão.

Datam de Paris, 1894, as primeiras canções do CD, entre elas "Ora dize-me que a verdade", "Amo-te muito", ambas com versos de João de Deus, "Mater Dolorosa" (Gonçalves Crespo) e "Tu és o Sol" (Juvenal Galeno), canções vincadas pelo romantismo schumanniano, bem como "Medroso de Amor" (Juvenal Galeno), espécie de lundu transfigurado em que o cantor manda embora a moreninha que o enfeitiça. A composição mais recuada data de Petrópolis, 1899, e se intitula "Xácara". A canção tem um certo sabor de modinha, assim como "Trovas I" (Duque Estrada), de 1901, "Soneto" (Coelho Neto) e sua canção mais conhecida "A Jangada" (Juvenal Galeno), última composição, de 1920. Nestas músicas, os ritmos nacionais aparecem reelaborados de acordo com os preceitos do lied alemão. Vasco Mariz prefere definir o compositro como como "brasileirista" em vez de "nacionalista", pois ele mais sugere um nacionalismo do que chega a praticá-lo integralmente. Mário de Andrade condena nas canções de Nepomuceno a distorção da prosódia natural do português pelas exigências do ritmo e da melodia. Comete uma injustiça. O CD mostra domínio da prosódia e naturalidade rítmica, apesar da impostação típica das regras do português cantado, ajudadas a serem definidas, aliás, pelo próprio Mário de Andrade. Seja como for, Nepomuceno escreveu em 1895 uma frase que até hoje ecoa no meio musical: "Não tem pátria o povo que não canta em sua língua". Prova de sua universalidade, Nepomuceno não levou a frase à risca, dedicando-se a diversas línguas e tradições.

A interpretação de Anna Maria Kieffer é moderna, sem prestar fidelidade ao clima prosódico da época. Sua voz precisa sopra ânimo a peças esquecidas e dadas como obsoletas. O papel do piano não é de mero acompanhador de acordes. Picchi ressalta as harmonias sofisticadas e as intervenções do teclado, que muitas vezes se combina à voz como unidade indissolúvel. Os dois músicos mostram que Nepomuceno compõe a trilha sonora do fim-de-século brasileiro. É datada e assim, em sua especificidade temporal, deve ser apreciada. Nepomuceno foi o principal compositor de lieder brasileiro. A condenação da arbitrariedade da prosódia, diga-se de passagem, atingiu também os lieder de Schubert, Beethoven e Schumann, entre outros. A releitura que empreende da obra do compositor cearense só pode acontecer neste momento em que a estética nacionalista já deixou de exercer influência e força institucional e se torna necessário retomar a produção de alguns anjos caídos da Belle Époque. O CD, primeiro de uma série, é uma empresa intelectual e artística de alta significação.

Luís Antônio Giron                                                    


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