Crítica
Sinfonia Varsovia
Teatro Municipal de São Paulo
23/09/1997

English
 

Sinfonia Varsóvia inicia turnê com paixão
 
 

O primeiro concerto da turnê brasileira da orquestra Sinfonia Varsóvia, dia 23 de setembro de 1997 no Teatro Municipal, constituiu um dos melhores espetáculos sinfônicos da temporada de concertos de São Paulo. Com regência do maestro e compositor polonês Krystof Penderecki, o grupo de 47 músicos homenageou o compositor Franz Schubert (1797-1831), cujo bicentenário se comemora este ano, e o pós-classicismo vienense. O espetáculo revelou uma orquestra capaz de executar com fogo e exatidão obras mais ou menos consagradas do repertório.

A nota sinistra ficou por conta do público, que cada vez mais parece desacostumado com as regras básicas de etiqueta de uma sala de concertos. A primeira delas é observar o silêncio. Durante o evento, pessoas entraram e saíram atabalhoadamente na platéia, ocupando poltronas vagas e provocando enorme barulho. Nos intervalos, o festival de tosses soava mahleriano. O Municipal deve redobrar o controle de lugares e penalizar os barulhentos.

O alarido e a inquietação prejudicaram muito pouco a Sinfonia Varsóvia. A orquestra atingiu o ponto de excelência depois de 13 anos de trajetória. Quando esteve no Brasil há quatro anos, também com Penderecki à batuta, no Teatro Cultura Artística, mostrou um desempenho mediano e frio. Desta vez, as cordas estão endiabradas, os sopros exatos e Penderecki, regendo como nunca. Inflamou os músicos, agitando a batuta na mão esquerda com fúria e segurança.

O espetáculo começou com a abertura "Egmont" (Op. 84), de Ludwig van Beethoven (1770-1827). Foi um aquecimento. A orquestra toca de acordo com os preceitos clássicos de instrumentação. Aquilo que o público se acostumou a ouvir em escala monumental soou discreto, ligeiramente abafado. O classicismo tem essa textura aveludada, que Penderecki soube explorar com perfeição. Logo depois, o "Concerto para violno e orquestra emré maior, Op. 61", também de Beethoven, rendeu instantes de delírio virtuosísticos do italiano Uto Ughi. Concerto urdido como uma peça de integração entre solista e orquestra, foi executado com fidelidade às idéias originais do compositor. Predominou o balanço instrumental e a clareza timbrística. Era como se a partitura transcorresse ponto a ponto diante dos olhos do público. Os músicos foram aplaudidos de pé e Ughi bisou com um capricho para violino solo de Paganini. Outra vez se esmerou no virtuosismo, embora o ritmo tenha lhe escapado vez ou outra na execução de uma peça tão complexa tecnicamente quanto banal em termos de expressão.

A segunda parte compreendeu a 'Sinfonieta nº 2 para cordas e clarinete", de Penderecki, e a "Sinfonia nº 5 em si bemol maior [D. 485]", de Shubert. A primeira obra foi composta originalmente para quinteto de cordas em 1993, como uma homenagem ao lirismo schubertiano. A transcrição para solista e orquestra, recém-realizada, expande as possibilidades expressivas. É uma obra neoclássica, tonal, com componentes dinâmicos inquietantes. Seus cinco movimentos se desenrolam compactados, um originando o outro, num entrelaçamento temático indiscernível. O clarinetista Aleksander Románski manteve com alto empenho a discussão com as cordas, porque a peça parece se movimentar no conflito temático e do tutti e solo. Penderecki demonstrou a possibilidade de ser subjetivo e acessível sem renunciar à contemporaneidade. Ralizou uma "volta à pintura figurativa" na composição ao restaurar procedimentos expressivos condenados pela rígidas leis da música contemporânea.

Seguiu-se a "Quinta" de Schubert, esta também uma homenagem. O autor retrabalhou temas de Mozart sob um ponto de vista metodológico mais avançado. Utilizou sua própria linguagem modulatório e temática para fazer os temas progredirem e criarem uma leitura metalingüística da obra de Mozart. De certa forma, Schubert já era neoclássico em plena vigência do classicismo. Enquanto os compositores comuns enveredavam pela linguagem epigonal, ele já voltava com soluções hermenêuticas, como se traduzisse para a atualidade o passado imediatamente anterior. Mais uma vez, a orquestra exibiu toda a paixão e rigor possíveis. Fez a obra soar como numa estréia.

O critério de avaliação de uma orquestra deveria ser aquele que dá conta da capacidade de transformar a letra morta em primeira audição. A Sinfonia Varsóvia atingiu esse estágio evoluído da execução musical. Schubert, Beethoven e Penderecki se deram a conhecer como se nunca tivessem aparecido antes por aqui.

Luís Antônio Giron 


Back to the index