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Extremos de Villa-Lobos




O mercado discográfico brasileiro tem realimentado o catálogo de obras do compositor carioca Heitor Villa-Lobos (1887-1959) com uma vagareza tamanha, que pouca coisa foi realizada desde a última eferméride, há oito anos. Por infelicidade a cultura brasileira se move aos solavancos eventuais das comemorações. A obra do mestre máximo da , no entanto, se afirmou internacionalmente em concertos e no farto catálogo erudito europeu. Chegam agora às lojas de disco três títulos nacionais de relevância.

São eles o CD duplo com os ``Quartetos de Cordas de nª 7, 8, 9, 10 e 11´´ pelo Quarteto Amazônia (Kuarup Discos) e duas reedições em CD de LPs da soprano mineira Maria Lúcia Godoy: ``Maria Lúcia Godoy Interpreta Villa-Loos´´´, de 1977, ao lado de diversas formações instrumentais, e ``14 Serestas de Villa-Lobos´´, de 1983, com acompanhamento pelo pianista gaúcho Miguel Proença (Polygram). Os três títulos colaboram no enriquecimento do catálogo e na revisão estética da obra do compositor.

Os dois discos da soprano estavam fora de catálogo desde a época de seus lançamentos. Eles balizam um estágio de excelência na interpretação das canções do compositor, sua produção mais popular. A voz de Maria Lúcia possuía, na época das gravações, uma qualidade timbrística peculiar. Além disso, o fôlego e a interpretação contida da artista fizeram época, e escola. Algumas sessões de Maria Lúcia se cimentaram de modo permanente à partitura das serestas, composta entre 1925 e 1926. La Godoy tem esse poder de imprimir um selo à escritura do compositor. Consegue dosar sua alta erudição a peças curtas, baseadas em temas folclóricos. Eram momentos de relaxamento do músico, que compunha canções em meio à confusão de seu apartamento, no centro do Rio. Não podia viver sem música, mesmo que frívola às vezes.

Na esfera oposta, os quartetos, em número de 17, exprimem o foco da arte do músico. Escrito em três fases diversas da carreira, fornecem uma síntese de sua evolução formal. Villa confessou ter aprendido a escrever par a formação por meio do estudo dos 84 quartetos do austríaco Franz Joseph Haydn (1732-1809), que definiu o gênero segundo leis do equilíbrio formal. Os quatro primeiros quartetos do brasileiro, feitos entre 1915 e 1917, seguiam tais características. O quinto quarteto, de 1938, foi um gesto de descontração, povoado de temas folclóricos articulados ao sabor da inspiração. A arte inquestionável do compositor se materializa de 1942 em diante. Considerava o oitavo quarteto, escrito em 1944 e apresentado dois anos depois, ``um quarteto de verdade´´, conforme depoimento da violinista Mariuccia Yacovino, aluna do compositor, em texto do livreto do CD da Kuarup. Villa-Lobos, segundo ela, orgulhava-se do oitavo quarteto por causa dos aspectos que ele enumerou: ``Harmonias em movimento contrário, glissandos dinâmicos de sforzando e pianíssimos súbitos, processoa ainda não explorados no gênero´´. Morreu compondo os esboços para aquele que viria a ser o décimo oitavo quarteto.

O projeto de gravação da primeira integral dos quartetos começou em 1984, quando a Kuarup lançou os quartetos nºs 4, 5 e 6, pelo Quarteto Bessler-Reis. Ele teve seguimento até 1992, com a edição de CDs com os quartetos da fase inicial (nºs 1, 2 e 3) e da final (nºs 12, 13 e 14) pelos mesmos intérpretes. Em 1994 o Bessler-Reis se desfez, sem que conseguisse completar o ciclo. A Kuarup decidiu chamar o Quarteto Amazônia para levar a cabo a idéia. O grupo tem como violoncelista Alceu Reis, remanescente do Quarteto Bessler-Reis. É a única semelhança que os dois CDs novos guardam com os três CDs anteriores. O Quarteto Amazônia é mais comportado que o Bessler-Reis; tecnicamente, soa ainda mais preciso que o antecessor. Deveria se encarregar de uma integral pela especificidade do estilo de interpretação. Nessa série intermediária, ouve-se o compositor atento à progressão da forma e à desmontagem do sistema tonal. Não há quase traço brasileiro neles.

De fato, Villa pedia que a posteridade não o julgasse como autor de escolas e de ´´ismos´´. Entre seus papéis, deixou um rascunho de uma entrevista, que faria consigo próprio, para deixar evidente todas as suas opiniões artísticas. Ali, dá a entender que não desejou se filiar a corrente estética alguma, nem mesmo ao nacionalismo musical, ao qual tem sido identificado, por uma questão de preguiça crítica e historiográfica. ``Julgo que devemos crer na intenção de toda obra de arte, embora ela nos pareça confusa na primeira impressão´´, escreveu. ``Porque ela nasce de uma função divina, misteriosa, inexplicável e passa, fatalmente, para uma outra função no mesmo estado psíquico em que nasceu´´. Reivindicava a educação musical da massa como único modo de sobrevivência da música. Deixaria de existir se passasse a não ser compreendida e virar mero impulso não assimilado pelos sentidos.

É preciso conhecer estética e cultura brasileira para apreciar a estranha polaridade entre o popularesco e folclórico das serestas e a busca experimental dos quartetos. O compositor não gostava de ``ismo´´, mas ele se equilibrava bem entre as escarpas de um abismo de registros. Sua música não é contida por uma etiqueta. Compreende uma diversidade de tirar o juízo.
Luís Antônio Giron