O Aurélio acha que tudo deve ser história com agá,
mas prefiro reforçar o caráter do texto com estória
mesmo. (Os ingleses, corretamente, não abriram mão de story,
que é bem diferente de history). Posso justificar a escolha.
A idéia de escrever este livro vinha sendo acalentada há
tempos, e quase que partiu do título. Desde o início da minha
carreira, seja nos conjuntos de Música Popular e orquestras, e mesmo
durante os muitos anos de estudo, pude somar experiências, estórias
e situações inusitadas, tão particulares do músico.
Com o passar dos anos, passei a temer que essas informações
pudessem se perder, pois amontoaram-se em minha memória mas por
falta de espaço muita coisa já estava sendo deletada (ah,
a promiscuidade dos neologismos de hoje...).
Conversar fiado sempre foi uma das mais sérias atividades dos músicos,
quando descansam de seus instrumentos. O bate-papo nos bastidores, camarins
ou esquinas, além de divertir servia também para saber de
algum disco recente, o estilo de alguma estrela do jazz ou da regência,
a performance de algum colega ou mesmo técnicas para execução
de uma ou outra passagem musical. Esses assuntos, apesar de informais,
com o passar do tempo acabam por se fundir, com naturalidade, no panelão
da História (com agá) da Música, colorindo-a com os
aspectos mais insólitos e pitorescos.
Sem querer provocar discussão antes do tempo, mas aproveitando essa
interação entre formalidade e informalidade, aviso os navegantes
que grafo Música e Cultura (assim como Contrabaixo, Piano e Violino)
com a inicial maiúscula ao invés de minúscula. Conforme
o caso, prefiro música e cultura, assim mesmo, e por igual razão
escrevo maestro ou Maestro, a depender do regente (essa última,
por sua vez, é uma palavra que para mim implica em mero gerúndio,
aquele está regendo, enquanto um Maestro é um Mestre. Com
as devidas escusas aos gramáticos mais ortodoxos e aspirantes a
Furtwängler e Toscanini.
Para melhor esclarecer essas peculiaridades do texto, deve-se lembrar do
inesgotável repertório de anedotas sobre a classe. (Mesmo
sabendo que boa parte foi extraída de casos reais, mas acabou inserida
nesse verdadeiro folclore pelas mãos mágicas do tempo). Por
isso neste livro qualquer semelhança entre a história e fatos
ou pessoas verdadeiras na maioria das vezes não é mera coincidência.
(Em 1895, W. Francis Gates, da Philadelphia, já havia compilado
300 anedotas - digamos - verdadeiras. Infelizmente não tive acesso
a elas).
O anedotário sobre músicos é parte integrante do dia
a dia dos profissionais, e cada orquestra tem seu piadista de plantão
- como o violinista Rastelli, da Sinfônica de Campinas. Era no mínimo
uma nova por dia (impossível conhecer tantas, devia inventar). Certo
dia, durante um intervalo entre ensaios, no City Bar - botequim de péssima
categoria em frente ao Centro de Convivência -, Rastelli, cercado
por colegas junto ao balcão, disse "hoje vou contar uma de português".
Do outro lado o dono do bar, exclamou, irritado: "pois não estás
a ver que sou português"? Rapidamente, Rastelli retrucou: "não
tem problema, se não entenderes eu conto de novo".
Deixando de lado por enquanto o anedotário, o conhecimento de fatos
pitorescos da vida de instrumentistas, regentes e compositores é
parte da vida do músico, costume não vem de pouco tempo:
talvez finque raízes em épocas tão remotas quanto
as das manifestações artísticas mais primitivas (o
grande Maestro Hans von Büllow costumava dizer: “no princípio
era o ritmo”).
Inicialmente, passei a registrar essas estórias de forma mais ou
menos aleatória*, do jeito que emergiam à lembrança,
esperando que alguma hora eu pudesse concatená-las sem o risco de
privá-las da naturalidade com que foram surgindo. Quando esses fatos,
causos e anedotas começaram a se encadear, esboçaram-se tamanhas
semelhanças entre eles que o texto passou a tomar corpo de forma
natural, agrupando-os em frases, parágrafos e capítulos,
como em uma composição musical: entretela de temas, variações,
desenvolvimentos, recapitulações, seções e
finalmente movimentos*. As idéias foram se sucedendo, em improviso,
tecendo aqui e ali verdadeiras cadências* musicais.
Muito embora minhas reflexões tentem respeitar certa cronologia,
torna-se necessário com freqüência preterir o tempo em
favor do sentido universal que empresto ao texto. Colaboram para quebrar
a seqüência histórica a interferência de fatos
recentes nas descrições de acontecimentos do passado longínquo
e vice-versa. Posso dizer que o verdadeiro leitmotiv* do livro é
a personalidade ímpar dos músicos, nem tanto sua história
ou sua obra.
Outra característica importante a ressaltar é o aspecto da
transmissão oral (gosto de dizer: aural, de aura) de boa parte dessas
informações. Muitos fatos e situações narrados
- seja por simples lembrança ou complementados por pesquisa - surgiram
do registro de relatos ouvidos e vividos, de uma forma ou de outra também
passados adiante em corrente e gravados na memória de uma verdadeira
teia de interlocutores. (continua...)
O PODER DA MÚSICA
Desde o início dos tempos, a Música assumiu papel de destaque
em nossa civilização. Talvez a segunda mais antiga profissão
(a primeira é a que teria juntado “a fome com a vontade de comer”,
de todos tão conhecida) tenha começado com aquele troglodita
que, sobressaindo-se na arte de se comunicar com pessoas, coisas e deuses
por meio de gritos, ruídos e batidas no peito, logo foi designado
pelo chefe para animar a tribo, declarar guerra aos vizinhos, comunicar-se
telegraficamente pelas selvas, expulsar demônios e mesmo mudar o
tempo (até hoje, entre nossos indígenas, existe um chocalho
enorme chamado pau-de-chuva). Fora, é claro, uma tradição
de milênios que sobrevive em nossos dias: encomendar o corpo dos
defuntos.
O Instituto Português do Patrimônio Histórico e Antropológico
(IPPHA) divulgou resultados de escavações feitas no final
de 1994 na Serra do Montejumo, próximo a Lisboa. Entre adereços,
objetos e ossadas de mais de cem trogloditas, foi encontrado um fêmur
de veado com uma escala de quatro orifícios. À parte comentários
maldosos de que os furos teriam sido realizados acidentalmente pelas brocas
dos próprios arqueólogos lusitanos, fica comprovada a existência
de instrumentos musicais um pouco mais sofisticados entre os homens pré-históricos,
que como se vê não buscavam apenas a sobrevivência de
sua espécie.
Divertida é a história do ancestral encontrado por supostos
arqueólogos lusitanos, em algum sítio pré-histórico.
Um esqueleto descoberto dentro de uma espessa parede de certa construção
milenar trazia uma placa no peito: Guinness Livro dos Recordes - campeão
mundial de esconde-esconde.
Entre os sumérios, os músicos tinham atribuições
funerárias. Deduz-se que, por essa razão, eram sempre retratados
com os semblantes bastante tristes. Dez séculos antes de Cristo,
David acalmava Saul com sua lira e mantinha um coral de centenas de vozes
para acompanhar seus famosos salmos, além de formar orquestras que
contavam, às vezes, com dezenas de trombetas (chegou a nomear milhares
de cantores e centenas de mestres para seus sacerdotes). E os assírios,
setecentos anos antes de Cristo, já conheciam a Kithara, instrumento
de cordas com jeito de violão.
Os gregos - fora as contribuições do matemático Pitágoras*,
que organizou boa parte do sistema a partir do qual evoluiu a música
ocidental - já sabiam que o deus Apolo (além de consumação
do ideal de beleza) era protetor da Música. E que Pã tocava
uma flauta de sons misteriosos, empenhado em conquistar o amor da ninfa
Syrinx - que inspirou, no mundo real e no início deste século,
o compositor Claude Debussy (1862-1918) em obra mágica que lhe deve
o título, uma das páginas mais lindas jamais escritas para
a Flauta Transversal.
Com sua Lira, Orfeu narcotizou Caronte, que o conduziu em seu barco, rumo
ao inferno, para encontrar a amada Eurídice. Também não
podemos nos esquecer de que a Odisséia e a Ilíada de Homero
eram cantadas - e que naquela primeira Ulisses foi seduzido pelo canto
das sereias, verdadeira cantada que quase o levou ao naufrágio.
Para os romanos a Música também tinha papel de destaque.
Os exércitos usavam grandes fanfarras para animar seus desfiles.
E Nero, que era o vencedor hors-concours de todas as maratonas de canto
que mandava organizar, dedilhava sua Lira suavemente enquanto observava
Roma, poderosa, pegar fogo.
Não é só na antiguidade que a Música assume
papel especial entre heróis e vilões de todos os tipos: mais
perto de nós, Jules Verne já fazia seu Capitão Nemo,
como fosse um Nero moderno, inebriar-se entre Prelúdios* e Fugas
no órgão de tubos da sala de estar de seu submarino, aguardando
a grande explosão. Como Nemo, o grande vilão intergaláctico
Duran costumava entregar-se ao som de um hipnotizante órgão
de tubos - em cujo interior havia um mecanismo erótico, no qual
prendeu a estonteante heroína espacial Barbarella. O vilão
utilizou o instrumento como poderosa máquina de prazer e tortura
- iniciando com afagos prazerosos em suaves piani*, passando por moderados
crescendi até levar sua prisioneira à tortura de um fortissimo,
orgasmo que deveria conduzi-la à morte.
Muitos séculos antes de Barbarella - mais precisamente em 1475,
em Florença - governantes já percebiam certas qualidades
mágicas na arte musical. Por decreto, os músicos municipais
eram obrigados a tocar para o povo de uma sacada da Prefeitura local todos
os sábados à noite em honra ao governo, louvando-o por ter
ministrado justiça na semana anterior. Incrível: quarto de
século antes de Pedro Álvares Cabral aqui aportar - quase
quinhentos anos antes de Getúlio Vargas -, e antes mesmo do advento
da TV, já havia sido inventada uma versão...(Continua)...
Orquestra Sinfônica: orquestra é palavra que vem do grego orkestra, que se referia ao lugar junto ao palco onde o coro cantava e dançava na antiguidade. Modernamente, designa um conjunto de instrumentos de cordas e arco ao qual podem ser agregados sopros, percussão e outros instrumentos. As características da atual orquestra sinfônica passaram a ser delineadas no século XVIII, consolidando-se no final do século XIX. O regente conduz a orquestra de seu pódio*, de costas para a platéia, virando-se para o público somente para cumprimentá-lo ou receber as esperadas ovações. À esquerda do maestro, na frente do naipe* de primeiros Violinos, fica o braço direito do chefe, o spalla da orquestra, sujeito encarregado de afinar o conjunto, marcar as arcadas*, fazer os solos de Violino principal e, mestre de cerimônias, comandar o senta-levanta dos músicos e receber os cumprimentos do regente e solistas, representando os anônimos colegas. Ao lado do spalla, na mesma estante, fica o concertino da orquestra, seu assistente, que entre outras atribuições deve ajudar o chefe a virar as páginas. Meio que escondidos atrás dos primeiros ficam os segundos Violinos, que executam partes menos vistosas e difíceis e que, em sua maioria, gostariam de passar para a fila dos primeiros. Bem em frente ao maestro, junto aos praticáveis (plataformas onde sentam madeiras e metais), ficam as Violas, que ali podem ser melhor ouvidas (nada mais natural, pois na partitura são a voz de registro médio das cordas). Do lado oposto dos Violinos sentam os Violoncelos, sujo spalla está sentado à mão direita do maestro (talvez razão pela qual se sintam abençoados). Um pouco atrás, no fundo e na extrema direita, os Contrabaixos têm posição privilegiada, pois observam o conjunto do alto de seus bancos (que lembram as banquetas de lanchonetes e botequins), e podem sair mais rápido pelas coxias no final dos concertos, pois spalla, regente, solistas e fãs sempre se amontoam do outro lado. Uma vez sentada a massa das cordas, chega a vez das madeiras. Na primeira fila sobre o praticável, Flautas com Oboés, e na segunda Clarinetes com Fagotes formam a tropa de choque dos sopros. Como têm mais volume do que as cordas, ficam ali atrás para que não as cubram, o que geralmente não é possível. Nas duas últimas filas espalha-se a metaleira (referência pouco sutil aos conjuntos de heavy-metal que lhes é emprestada pelos demais colegas): Trompas com Trompetes e Tuba com Trombones, respectivamente. Esses últimos costumam ficar um pouco mais afastados da fila da frente tanto para não ensurdecer os colegas quanto para abrir espaço para a ação das varas de seus instrumentos por entre as estantes - facilitando-lhes também, é claro, a tarefa pouco higiênica de escorrer durante as pausas a saliva acumulada, por meio de uma pequena válvula. No fundo, à esquerda, o arsenal da Percussão e Tímpanos, a chamada bateria ou cozinha, que faz o desgosto dos Violinos. Espremida à esquerda, solitária, a harpista, dona de instrumento angelical que tem de chegar mais cedo para afinar suas dezenas de cordas, tarefa que é impossível quando os músicos já estão no palco preludiando*.
Pauta: papel de música. Na teoria musical, pauta ou pentagrama são aquelas cinco linhas e quatro espaços onde se escrevem os símbolos musicais. É o terror do músico popular.
Piani:
plural de piano, designação de dinâmica* que em italiano
quer dizer suave, baixinho. É o que o maestro mais sussurra: “piano,
piano”...Crescendo é o aumento gradativo de volume, e diminuendo
o contrário. Accelerando, como a palavra diz, apressa o andamento,
enquanto ritardando, é óbvio, o reduz. (Continua...)
Henrique
Autran Dourado
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