Biblioteca Reformada ARPAV | Biografia |
J.
C. Ryle
O
volume agora nas mãos do leitor requer algumas sentenças explanatórias como
prefácio. Eu ficaria insatisfeito se houvesse algum equívoco quanto à sua
natureza e propósito.
Ele
consiste de uma série de escritos biográficos, publicados em um bem conhecido
e valiosíssimo periódico mensal, durante os anos de 1866 e 1867 (The
Family Treasury). O meu objetivo em compor estes escritos foi trazer ao público,
em uma forma compreensiva, as vidas, caracteres e obras dos ministros líderes,
por cuja agência Deus se agradou em reavivar o Cristianismo na Inglaterra há
cem anos atrás. Eu há muito havia sentido que estes grandes homens não eram
bastante conhecidos, e seus méritos, por consequência, não suficientemente
reconhecidos. Eu creio que a Igreja e o mundo deveriam saber alguma coisa a mais
do que parecem saber sobre homens tais como Whitefield, Wesley, Romaine,
Rowlands, Grimshaw, Berridge, Venn, Toplady, Hervey, Walker e Fletcher. Por
vinte anos eu esperei ansiosamente por algum relato digno destes poderosos heróis
espirituais. Por fim, eu fiquei cansado de esperar, e resolvi ‘tomar a pena’
em minha própria mão, e fazer o que estava ao meu alcance através das páginas
de um periódico. Estes escritos, em aquiescência a desejos de amigos, são
agora reunidos em forma de livro.
Até
onde a minha tentativa foi bem sucedida, eu deixo agora ao julgamento do público.
No que tange a méritos literários, este volume não tem o que reivindicar. Os
seus capítulos foram escritos de mês em mês, em meio a muitos compromissos
ministeriais, debaixo de uma pressão a qual ninguém pode entender, a não ser
aqueles que escrevem para periódicos. Esperar que tal volume seja um modelo de
aperfeiçoada composição seria um absurdo. A única pretensão que tenho é a
de um grau tolerável de acuracidade com relação aos fatos históricos. Eu
tive o cuidado de não fazer nenhuma afirmação, a menos que pudesse encontrar
alguma autoridade para sustentá-la.
O
leitor cedo descobrirá que eu sou um entusiástico admirador dos homens cujos
perfis eu tracei neste volume. Eu confesso isto honestamente. Eu sou um
verdadeiro entusiasta a respeito deles. Eu acredito firmemente que, excetuando
Lutero com seus contemporâneos do Continente e os nossos próprios mártires
reformadores, o mundo não tem visto homens semelhantes a estes desde os dias
dos apóstolos. Eu creio que não houve ninguém que tenha pregado tão pura
verdade bíblica, ninguém que tenha vivido vidas semelhantes, ninguém que
tenha mostrado tanta coragem no serviço de Cristo, ninguém que tenha sofrido
tanto por causa da Verdade, ninguém que tenha realizado tanto bem. Se alguém
pode mencionar homens melhores, tal pessoa sabe mais do que eu.
Eu
lanço agora este volume com a fervorosa oração de que Deus possa desculpar
todos os seus defeitos, que use-o para a Sua própria glória, e levante em sua
Igreja homens tais quais os que são aqui descritos. Seguramente, quando nós
olhamos para o estado da Inglaterra, nós podemos muito bem perguntar, ‘Onde
está o Senhor Deus de Whitefield e de Rowlands, de Grimshaw e de Venn? Ó
Senhor, reaviva a Tua obra!’
Stradbroke
Vicarage, 10 de agosto de 1868.
J.
C. Ryle
O
assunto que desejo tratar neste volume é parcialmente histórico e parcialmente
biográfico. Se algum leitor espera, devido ao título, uma estória fictícia
ou alguma coisa parcialmente extraída da minha imaginação, eu temo que ficará
desapontado. Tal tipo de escrito não é de minha alçada, e eu não teria tempo
disponível para isto se o fosse. Fatos, puros fatos, e as cruas realidades da
vida absorvem todo o tempo que eu posso dispor para o serviço literário.
Eu acredito, entretanto, que para a maioria dos leitores, o assunto que escolhi não necessita de apologia. A pessoa que não sente interesse na história e biografias de seu país é certamente um pobre patriota e um péssimo filósofo.
‘Patriota’,
ele não pode ser chamado. O verdadeiro patriotismo fará com que um inglês se
interesse por tudo o que concerne à Inglaterra. Um verdadeiro patriota gostará
de saber alguma coisa acerca de cada um que tenha deixado sua marca no caráter
inglês, do Venerável Bede a Hugh Stowell, de Alfredo, o Grande, a Pounds, o
originador das Escolas Ragged.
‘Filósofo’
certamente ele não é. O que é filosofia senão a história ensinada pelos
exemplos? Conhecer os degraus através dos quais a Inglaterra alcançou a sua
presente condição, é essencial a um entendimento correto tanto de nossos
privilégios, como de nossos perigos nacionais. Conhecer os homens que Deus
levantou para fazer o Seu trabalho em dias passados, nos guiará ao procurarmos
por padrões em nossos próprios dias e nos dias por vir.
Eu
me aventuro a pensar que não há um período da história da Inglaterra que
seja tão instrutivo para um cristão como os meados do século passado. Este é
o período do qual, ainda hoje, sentimos sua influência. Este é o período com
o qual os nossos avós e bisavós estiveram imediatamente associados. Este não
é um período sem importância, do qual não possamos extrair as mais úteis lições
para os nossos próprios dias.
Deixe-me
iniciar, tentando descrever a condição real da Inglaterra há cem anos atrás.
Uns poucos e simples fatos bastarão para tornar isto claro.
O
leitor deve lembrar que eu não vou falar de nossa condição
política. Eu poderia facilmente lhe dizer que, nos dias de Sir Robert
Walpole, o Duque de Newcastle, e do Ancião Pitt, a posição da Inglaterra era
bastante diferente da que ocupa agora. Grandes homens de estado e oradores havia
entre nós, não há dúvida. Mas nossa posição entre as nações da terra era
comparativamente pobre, fraca e humilde. A nossa voz entre as nações tinha
muito menos peso do que tem obtido desde então. O estabelecimento de nosso Império
Indiano mal havia iniciado. Nossas possessões australianas eram uma parte do
mundo apenas recentemente descoberto, mas ainda não colonizado. Aqui, havia um
forte partido no país que ainda ansiava pela restauração dos Stuarts. Em
1745, o Pretendente (ao trono) e um exército da Highland (terras montanhosas da
Escócia) marcharam daquele país para invadir a Inglaterra e chegaram até
Derby. Corrupção, desonestidade e desgoverno em altos postos eram a regra e a
pureza, exceção. Incapacidade civil e religiosa ainda abundavam. Os Atos
Corporativos não haviam ainda sido revogados. Ser um não-conformista era
considerado apenas um pouco melhor do que um sedicioso ou rebelde. Municípios
corruptos prosperavam. O suborno em todas as classes era aberto, descarado e
abundante. Tal era a Inglaterra politicamente há cem anos atrás.
O leitor deverá
lembrar ainda, que eu não vou falar de nossa condição do ponto de vista econômico
e financeiro. A nossa vasta indústria de algodão, seda e linho tinha apenas
começado a existir. Os nossos imensos tesouros minerais de carvão e
ferro estavam quase que intocados. Nós não possuíamos barcos a vapor,
locomotivas, estradas-de-ferro, gás, telégrafo elétrico, agências
financeiras, agricultura científica, estradas pavimentadas, comércio livre,
arranjos sanitários, nem polícia digna do nome. Deixe qualquer inglês
imaginar, se é que ele pode, o seu país sem qualquer das coisas que acabei de
mencionar, e ele terá apenas uma pálida idéia da condição econômica e
financeira da Inglaterra há cem anos atrás.
Mas
eu deixo estas coisas aos economistas, políticos e historiadores deste mundo.
Embora interessantes, não há dúvida, elas não fazem parte do assunto ao qual
eu desejo me deter. Eu desejo tratar
deste assunto como um ministro do Evangelho de Cristo. É à condição moral e
religiosa da Inglaterra há cem anos atrás que eu desejo confinar minha
atenção. Aqui está o ponto para o qual eu desejo dirigir os olhos do leitor.
O estado deste país do ponto de vista moral e religioso em meados do século passado era tão dolorosamente insatisfatório, que é difícil transmitir uma idéia adequada da situação. O povo inglês do tempo presente, que nunca foi levado a inquirir acerca deste assunto, não pode ter uma idéia da escuridão que prevalecia. Do ano de 1700 até a época da Revolução Francesa, a Inglaterra parecia estéril de tudo o que é realmente bom. Como tal estado de coisas pode ter surgido em uma terra de Bíblias livres e de um Protestantismo professo, quase que ultrapassa a compreensão. O Cristianismo parecia jazer como morto, tanto assim que você poderia ter dito: ‘ele está morto’. Moralidade, apesar de muito exaltada nos púlpitos, era completamente pisoteada nas ruas. Havia escuridão nas altas camadas, assim como nas baixas, escuridão na Corte e no campo, no Parlamento e no bar; escuridão no interior e escuridão na cidade; escuridão entre os ricos e escuridão entre os pobres; uma grossa, densa escuridão moral e religiosa; uma escuridão que podia ser sentida.
É o caso de alguém perguntar: ‘o que as igrejas faziam há cem anos atrás?’ A resposta pode ser dada rapidamente. A Igreja da Inglaterra existia naqueles dias com seus artigos admiráveis, sua tradicional liturgia, seu sistema paroquial, seus cultos dominicais e seus dez mil clérigos. O grupo não-conformista existia, com suas liberdades duramente adquiridas e seus púlpitos livres. Mas, infelizmente, uma explicação deve ser dada sobre ambos os grupos. Eles existiam, mas é difícil dizer se viviam. Eles não faziam nada; estavam completamente adormecidos. A maldição do Ato da Uniformidade parecia repousar sobre a Igreja da Inglaterra. A doença do comodismo e a ausência de perseguição pareciam pairar sobre os não-conformistas. Teologia natural, sem uma única doutrina distintiva cristã, moralidade fria ou ortodoxia estéril, formavam o corpo principal do ensino tanto nas igrejas como nas capelas. Os sermões, em toda parte, eram pouco melhores do que pobres ensaios morais, totalmente destituídos de qualquer coisa capaz de despertar, converter ou salvar almas. Ambas as partes pareciam, por fim, concordar em um ponto: deixar o diabo em paz e não fazer nada pelos corações e almas. E no que concerne às importantes verdades pelas quais Hooper e Latimer tinham ido para a fogueira, Baxter e muito dos puritanos para a prisão, elas pareciam ter sido totalmente esquecidas e colocadas na prateleira.
Visto
que este era o estado de coisas nas igrejas e capelas, ninguém ficará surpreso
ao saber que o país estava inundado de infidelidade e ceticismo. O príncipe
deste mundo fez um excelente uso da oportunidade. Seus agentes estavam ativos e
zelosos em promulgar todos os tipos de idéias estranhas e blasfemas. Collins e
Tindal denunciavam o Cristianismo como política clerical. Whiston afirmava
serem os milagres da Bíblia grandes embustes. Woolston declarava que eles eram
alegorias. Arianismo e Socinianismo eram abertamente ensinados por Clark e
Priestly e se tornaram moda entre a classe intelectual da comunidade. Um simples
fato pode nos dar uma idéia da completa incapacidade do púlpito em vencer o
progresso de toda essa enchente de impiedade. O célebre advogado Blackstone
teve a curiosidade, no princípio do reinado de George III, de ir de igreja em
igreja para ouvir cada sacerdote importante em Londres. Ele disse que não ouviu
um único discurso que apresentasse mais Cristianismo do que os escritos de Cícero,
e que lhe seria impossível descobrir, do que ouvira, se o pregador era um
seguidor de Confúcio, de Maomé ou de Cristo!
Evidências
desta situação são, infelizmente, abundantes. A minha dificuldade não está
tanto em descobrir testemunhas, quanto em selecioná-las. Este foi o período ao
qual o Arcebispo Secker se referiu em um dos seus comentários: ‘Nisto não podemos estar enganados, que um aberto e professo desprezo
da religião tomou-se, através de uma variedade de tristes razões, o caráter
distintivo da época. Tal era a devassidão e o desdém de princípios nas
camadas mais elevadas, e tal o desregramento, intemperança e a audácia em
cometer crimes nas mais baixas, que se a torrente de impiedade não viesse a
parar, tornar-se-ia absolutamente fatal. O Cristianismo é ridicularizado e
injuriado com pouquíssima reserva, e os que o ensinam, sem reserva alguma’. Este
foi o período quando o Bispo Butler, em seu prefácio à ‘Analogia’, usou as seguintes palavras dignas de nota: ‘Tem-se
assumido como fato consumado que o Cristianismo não é mais um assunto para
inquirição, e que agora, finalmente, descobriu-se que se trata de mera ficção.
Como conseqüência, tem sido tratado presentemente como sendo
um ponto de concordância entre todas as pessoas de discernimento, nada restando
senão instituí-lo como um dos assuntos preferidos para gracejo e ridículo’.
E queixas como estas não se confinavam aos clérigos. O Dr. Watts declara
que nos seus dias, ‘havia uma decadência
generalizada de religião vital nos corações e vidas das pessoas, e que esta
era, em geral, uma constatação observada com pesar entre todos os que
consideram seriamente no seu coração a causa de Deus’. O Dr. Guyse,
outro não-conformista muito respeitado, diz: ‘A religião
natural insinua-se como o tópico predileto de nossa época; e a religião de
Jesus só tem valor por causa daquela, e somente na medida em que leve adiante a
luz da natureza e seja um mero aperfeiçoamento deste tipo de luz. Tudo o que é
distintivamente cristão, ou que é peculiar a Cristo, tudo o que diz respeito a
Ele e que aparentemente não tenha sua fundação na luz natural, ou que vá além
dos princípios da natureza, é colocado de lado, banido e desprezado’. Testemunhos
como este podem ser facilmente multiplicados dez vezes. Mas eu poupo o leitor.
Provavelmente o suficiente já foi apresentado para provar que quando eu falo da
condição moral e religiosa da Inglaterra no início do século dezoito como
dolorosamente insatisfatória, não estou fazendo uso de uma linguagem exagerada.
Quem
eram os bispos daqueles dias?
Alguns deles eram, sem dúvida, homens de intelectos e culturas poderosas e de
vidas irrepreensíveis. Mas os melhores deles, tais como Secker, Butler, Gibson,
Lowth e Horn, pareciam incapazes de fazer mais do que deplorar a existência de
males, os quais viam, mas não sabiam como solucionar. Outros, como Lavington e
Warburton, fulminavam ferozes acusações contra entusiasmos e fanatismos, e
pareciam temer que a Inglaterra viesse a tomar-se demasiadamente religiosa! Mas
a maioria dos bispos, para dizer a verdade, eram homens do mundo. Eles estavam
desqualificados para a posição em que se encontravam. O caráter predominante
do corpo episcopal pode ser avaliado pelo fato de que o arcebispo Cornwallis
dava bailes e festas no palácio de Lambeth, até que o próprio rei teve que
interferir escrevendo e, pedindo que abandonasse tais práticas. Deixe-me também
acrescentar, que quando os ocupantes do colégio episcopal estavam incomodados
pela rápida propagação da influência de Whitefield, foi sugerido com
seriedade, nas esferas mais altas da igreja, que a melhor maneira de dar um fim
a sua influência, era torná-lo bispo.
O
que era o clero paroquial daqueles dias? A vasta maioria deles estava imersa no mundanismo, e não sabia nem se
importava com coisa alguma da sua profissão. Não faziam o bem, nem gostavam
que ninguém o fizesse no lugar deles. Eles caçavam, atiravam, eram proprietários
de terras, praguejavam, bebiam e jogavam. Eles pareciam determinados a conhecer
tudo, exceto Jesus Cristo e Ele crucificado. Quando eles se reuniam, geralmente
era para brindar ‘à igreja e ao rei’ e para edificarem-se mutuamente na
carnalidade de suas mentes, preconceitos, ignorância e formalismo. Quando
retornavam para suas próprias casas, era para fazerem o mínimo e pregarem o
mais raramente possível. E quando pregavam, seus sermões eram tão indizível
e indescritivelmente ruins, que é reconfortante lembrar que eram geralmente
pregados a bancos vazios.
Que
tipo de literatura teológica nos foi legada há cem anos atrás?
A mais pobre e fraca na língua inglesa. Esta foi a época a que pertencem obras
religiosas como a intitulada ‘O Dever Total do Homem’, e os sermões de
Tillotson e Blair. Pergunte em qualquer loja de livros antigos e você descobrirá
que não há teologia tão invendável como os sermões publicados na metade e
no final do século passado.
Que
tipo de educação possuíam as ordens mais baixas cem anos atrás?
Na maior parte das paróquias e especialmente nos distritos rurais, eles não
tinham educação alguma. Quase todas as nossas escolas rurais foram construídas
a partir de 1800. A ignorância era tão extrema, que um pregador metodista em
Somersetshire foi levado a juramento diante dos magistrados porque havia citado
em um sermão que, ‘Aquele que não crê
será condenado!’ Enquanto que Yorkshire não fica atrás de Somersetshire,
pois nesta cidade, um oficial de polícia levou Charles Wesley diante dos
magistrados, acusando-o de ser um simpatizante do pretendente ao trono da
Inglaterra, porque em uma oração pública ele havia pedido ao Senhor que ‘trouxesse
de volta os seus exilados!’ Para completar, o vice chanceler de Oxford
realmente expulsou seis estudantes da universidade porque ‘eles
tinham tendências metodistas, e resolveram orar e expor as Escrituras em residências
particulares’. Dizer palavrões extemporâneos, alguém observou, não
criava nenhum problema aos estudantes de Oxford, mas orar extemporaneamente era
uma ofensa que não podia ser tolerada!
Como
era a moral de cem anos atrás?
Basta dizer que a prática de duelo, adultério, fornicação, jogo, linguagem
obscena, profanação do domingo e bebedice, dificilmente era considerada como
conduta condenável. Estas eram as práticas da moda nas camadas elevadas da
sociedade, e ninguém seria mal visto por dar-se a elas. A melhor evidência
disto pode ser encontrada nas pinturas de Hogarth.
Qual
era a literatura popular de cem anos atrás? Eu deixo de lado o fato de que
Bolingbroke, Gibbon e Home, o historiador, estavam todos profundamente mortos no
ceticismo. Eu me refiro mesmo é à literatura frívola que estava muito em voga.
Folheie as páginas de Fielding, Smollett, Swift e Sterne, e você obterá a
resposta. A habilidade desses escritores é inegável; mas a indecência de
muitos dos seus escritos é tão berrante e vulgar, que poucas pessoas hoje em
dia gostariam de permitir que as obras deles fossem vistas sobre a mesa de suas
salas de visitas.
Eu
temo que o retrato que venho esboçando seja ainda muito escuro e pálido. Eu
desejaria poder lançar um pouco mais de luz sobre ele. Mas fatos são inflexíveis,
especialmente fatos sobre literatura. A melhor literatura de cem anos atrás é
encontrada nos escritos morais de Addison, Johnson, e Ateele. Mas eu temo que os
efeitos dessa literatura no público em geral eram infinitamente pequenos. Na
verdade eu creio que Johnson e os ensaístas não tiveram maior influência
sobre a religião e moralidade das massas do que a ‘vassoura’ da renomada
Sra. Partington teve sobre as ondas do oceano Atlântico.
Para
resumir tudo e concluir esta parte do meu assunto, eu peço que o leitor se
lembre de que as boas obras com as quais todos agora estão familiarizados não
existiam há cem anos atrás. Wilberforce ainda não havia atacado o comércio
de escravos. Howard ainda não havia reformado as prisões. Raikes ainda não
havia estabelecido as escolas dominicais. Nós não tínhamos sociedades bíblicas,
escolas para crianças pobres, missões urbanas, sociedades de ajuda pastoral,
missões a povos pagãos. O espírito da sonolência estava sobre a nossa terra.
Do ponto de vista moral e religioso, a Inglaterra dormia profundamente.
Eu
não posso deixar de observar, ao concluir este capítulo, que nós deveríamos
ser mais gratos pelos tempos em que vivemos. Eu temo que sejamos mais tendentes
a olhar para os males que vemos ao nosso redor, e a esquecermos quão piores
eram as coisas há cem anos atrás. De minha parte, não alimento ilusões
quanto aos ‘bons tempos antigos’ dos quais alguns falam com deleite e admito
isso francamente. Eu os considero como uma mera fábula e mito. Acredito que o
tempo em que estamos vivendo é um dos melhores que a Inglaterra já viu. Não
digo isso com jactância. Sei que temos muitas coisas para deplorar. O que eu
realmente digo é que as coisas poderiam ser piores. A nossa situação era
muito pior há cem anos atrás. O nível geral da religião e da moral é
indubitavelmente muito mais elevado hoje. Pelo menos, em 1868, nós estamos
despertados. Nós vemos e sentimos os males, os quais as pessoas não sentiam há
cem anos atrás. Nós lutamos para nos ver livres desses males; nós desejamos
nos corrigir. Apesar de nossas muitas faltas, não estamos profundamente
adormecidos. Em todos os lados há ânimo, ação, movimento, progresso e não
estagnação. Por piores que estejamos, confessamos o nosso mal estado. Por mais
fracos que estejamos, reconhecemos nossa fraqueza. Por mais insignificantes que
sejam nossos esforços, estamos empenhados em melhorar. Embora estejamos fazendo
pouco por Cristo, estamos tentando fazer alguma coisa. Agradeçamos a Deus por
isso! As coisas poderiam estar piores. Comparando os nossos próprios dias com
os meados do século passado, há razão para agradecermos a Deus e para criar
coragem. A Inglaterra está em um estado melhor do que se encontrava há cem
anos atrás.
Que
uma grande mudança, para melhor, aconteceu na Inglaterra nos últimos cem anos
é um fato o qual, eu suponho, nenhuma pessoa bem informada jamais tentaria
negar. Seria tão difícil negar isto, quanto negar que houve uma Reforma
Protestante nos dias de Lutero, um Longo Parlamento no tempo de Cromwell, ou uma
República Francesa no fim do último século. Houve uma grande mudança para
melhor. Tanto na religião, quanto na moral, o país passou por uma completa
revolução. As pessoas não pensam, não falam, nem agem como faziam em 1750.
Este é um grande fato, que os filhos deste mundo não podem negar, por mais que
tentem explicá-lo. Negar isso seria tão difícil quanto persuadir-nos de que a
maré alta e a maré baixa sob a ponte de Londres são uma e a mesma coisa.
Mas por que meio foi efetuada esta grande mudança? A quem devemos este
imenso melhoramento da situação religiosa e moral que, sem dúvida, ocorreu na
Inglaterra? Quais, em uma palavra, foram os instrumentos que Deus empregou para
realizar a grande Reforma Inglesa do século dezoito? Este é o ponto que desejo
examinar de um modo geral, no presente capítulo. Os nomes e biografias dos
principais agentes, eu reservarei para os capítulos subseqüentes.
O
governo do país não pode reivindicar o crédito pelas mudanças.
Moralidade não pode vir à existência através de decretos-lei e estatutos. Até
hoje as pessoas nunca vieram a ser religiosas por meio de atos parlamentares. De
qualquer forma, os parlamentos e administrações do século passado fizeram tão
pouco pela religião e moral quanto quaisquer outros que já existiram na
Inglaterra.
Nem tampouco as mudanças vieram da Igreja da Inglaterra como um corpo. Os
lideres daquela venerável entidade estavam totalmente desqualificados para as
necessidades da época. Entregue a si mesma, a Igreja da Inglaterra
provavelmente teria morrido apesar de toda a sua ‘dignidade’ e submergido em
seus próprios esteios.
Nem
tampouco as mudanças vieram dos não-conformistas. Satisfeitos com seus trunfos
adquiridos a duras penas, aquela digna classe de homens parecia ter parado de
remar. Em pleno gozo do seu direito de consciência, eles esqueceram os grandes
princípios vitais de seus antepassados e seus próprios deveres e
responsabilidades.
Quem,
então, foram os reformadores do século passado? A quem, abaixo de Deus,
estamos em débito pelas mudanças que ocorreram?
Os
homens que efetuaram a nossa libertação da situação em que nos encontrávamos
há cem anos atrás foram uns poucos indivíduos, a maioria deles ministros da
Igreja da Inglaterra, cujos corações Deus tocou mais ou menos ao mesmo tempo
em várias partes do país. Eles não eram prósperos nem altamente relacionados.
Eles não tinham nem dinheiro para comprar seguidores, nem influência familiar
para demandar atenção e respeito. Eles não eram colocados em evidência por
nenhuma igreja, partido, sociedade, ou instituição. Eles eram simplesmente
homens a quem Deus chamou e levantou para realizar Sua obra, sem acordos,
esquemas ou planos prévios. Eles fizeram Sua obra no antigo modo apostólico,
tornando-se os evangelistas de seus dias. Eles ensinaram um conjunto de verdades.
Eles as ensinavam do mesmo modo, com calor, veracidade e dedicação, como
homens plenamente convencidos do que ensinavam. Eles as ensinavam no mesmo espírito,
sempre amoroso, compassivo e, como Paulo, até mesmo chorando, mas sempre
ousados, inabaláveis e não temendo a face de homens. E eles as ensinavam
seguindo o mesmo método, sempre agindo na ofensiva, não esperando que os
pecadores viessem a eles, mas buscando e procurando-os; não perdendo tempo
sentados, esperando até que os pecadores se oferecessem para se arrepender, mas
tomando de assalto os redis de impiedade, como homens atacando uma brecha, não
dando descanso aos pecadores enquanto estivessem agarrados aos seus pecados.
O
movimento desses corajosos evangelistas sacudiu a Inglaterra de uma ponta à
outra. A princípio, as pessoas nas altas camadas, tentaram desprezá-los. Os
homens letrados escarneciam deles como fanáticos; os ‘sábios’ faziam
piadas, e inventavam apelidos para eles; a igreja fechou-lhes as portas; os não-conformistas
deixaram-nos de lado; a massa ignorante perseguia-os. Mas o movimento desses
poucos evangelistas continuou, e se fez sentir em cada parte do país. Muitos
foram levantados e despertados para pensar sobre a religião. Muitos foram
humilhados por causa de seus pecados. Muitos se reprimiram e assustaram-se
diante da sua própria impiedade. Muitos foram reunidos e levados a professar
uma religião vigorosa e decidida. Muitos foram convertidos. Muitos que
discordavam do movimento foram secretamente estimulados a tentarem se igualar a
eles. O pequeno rebento tornou-se uma forte árvore; o pequeno córrego tornou-se
um profundo e largo rio; a pequena centelha tornou-se uma chama firme a queimar.
Uma vela foi acesa, da qual nós agora desfrutamos o beneficio. O sentimento
sobre religião e moralidade de todas as classes no país assumiu um aspecto
totalmente diferente. E tudo isto, sob a direção de Deus, foi realizado por
uns poucos aventureiros sem patrocinadores e sem pagamento! Quando Deus toma uma
obra nas mãos, nada pode pará-la. Quando Deus é por nós, ninguém pode ser
contra nós.
A
instrumentalidade pela qual os reformadores espirituais do século passado
levaram avante sua ação é facílima de ser descrita. Não foi mais nem menos
do que a antiga arma apostólica da pregação. A espada que o apóstolo Paulo
empunhou com poderoso efeito, quando ele tomou de assalto as fortalezas do
paganismo dezoito séculos atrás, foi a mesma espada pela qual eles obtiveram
suas vitórias. Dizer, como alguns têm dito, que eles negligenciaram a educação
e escolas, é totalmente incorreto. Aonde quer que eles estabelecessem congregações,
eles educavam as crianças. Dizer, como outros têm dito, que eles
negligenciaram os sacramentos, é simplesmente falso. Aqueles que fazem tal
afirmação apenas revelam sua inteira ignorância da história religiosa da
Inglaterra de cem anos atrás. Seria fácil citar homens entre os lideres
reformadores do século passado cujos membros comungantes poderiam ser contados
às centenas, e que honravam a Ceia do Senhor mais do que quarenta e nove de
cinqüenta outros ministros em seus dias. Mas, além de qualquer dúvida, a
pregação era a arma favorita deles. Eles sabiamente retornaram aos primeiros
princípios e adotaram os métodos apostólicos. Eles sustentavam, junto com o
apóstolo Paulo, que a principal tarefa de um ministro é ‘pregar o Evangelho’.
Eles pregavam em todo lugar. Se o púlpito de uma paróquia da Igreja estava
aberto para eles, eles alegremente se colocavam à disposição. Se não
pudessem conseguir um púlpito, eles estavam igualmente prontos para pregar em
um celeiro. Nenhum lugar lhes parecia impróprio. No campo ou ao lado de uma rua,
num parque ou num mercado, em travessas ou vielas, em porões ou sótãos, em
cima de uma barrica ou de uma mesa, em cima de um banco ou de um degrau, aonde
quer que pudessem reunir ouvintes, os reformadores espirituais do século
passado estavam prontos para falar-lhes a respeito de suas almas. Eles estavam
prontos a tempo e fora de tempo para fazer o trabalho de pescadores de homens e
circundavam o mar e a terra levando avante a obra do Pai. E isto era algo novo.
Podemos nós imaginar que isto produziu um grande resultado?
Eles
pregavam de modo simples. Eles corretamente concluíram que o primeiro requisito
a ser alcançado em um sermão, é que seja entendido. Eles perceberam
claramente que milhares de hábeis e bem compostos sermões eram totalmente inúteis,
porque estavam acima da capacidade dos ouvintes. Eles se esforçaram para descer
ao nível do povo, e para falar o que o povo podia entender. Para alcançar isto,
eles não se envergonhavam de crucificar o seu estilo e de sacrificar sua reputação
de eruditos. Para atingir este objetivo, eles usaram ilustrações e exemplos em
abundância, e, como seu Mestre divino, fizeram uso de lições extraídas de
cada objeto na natureza. Eles colocaram em prática o dito de Agostinho: ‘Uma
chave de madeira não é tão bonita quanto uma de ouro, mas se ela puder abrir
a porta enquanto a de ouro não, ela é muito mais útil.’ Eles reviveram
o estilo dos sermões através dos quais Lutero e Latimer costumavam obter
eminente sucesso. Em poucas palavras, eles perceberam a verdade que o grande
reformador alemão queria dar a entender quando disse: ‘Ninguém
pode ser um bom pregador para o povo, senão estiver disposto a pregar de uma
maneira que possa parecer infantil e vulgar a alguns’. E tudo isto era
também completamente novo há cem anos atrás.
Eles
pregavam com fervor e de modo direto. Eles colocaram de lado aquele modo
enfadonho, frio, pesado e sem vida de pregar, o qual há muito havia feito dos
sermões um sinônimo do que é tedioso. Eles proclamavam as palavras de fé com
fé, e a história da vida, com vida. Eles falavam com ardente zelo, como homens
que estavam totalmente persuadidos de que o que diziam era verdade, e que ouvir
o que pregavam era algo da maior importância para o benefício eterno deles.
Eles falavam como homens que tinham uma mensagem de Deus para você, e que
precisavam entregá-la, e que tinham que obter sua atenção enquanto a
comunicavam. Eles colocavam o coração, a alma e sentimentos nos seus sermões
e despediam seus ouvintes para casa convencidos, afinal, de que o pregador fora
sincero e queria o bem deles. Eles acreditavam que você deve falar do coração
se você deseja falar ao coração, e que deve haver indiscutível fé e convicção
no púlpito para que venha a haver fé e convicção nos bancos. Tudo isto, eu
repito, era algo que havia se tornado quase que obsoleto há cem anos atrás.
Podemos nós imaginar que isto arrebatou o povo e produziu um imenso efeito?
Mas qual era o conteúdo e o tema da pregação que produziu efeito tão
maravilhoso há cem anos atrás? Eu não insultarei o bom senso dos meus
leitores dizendo apenas que a pregação deles era ‘simples, zelosa, fervorosa,
verdadeira, amável, corajosa, viva’ e assim por diante; é preciso que se
compreenda que ela também era eminentemente doutrinária, positiva, dogmática
e distinta. As fortalezas do pecado no século passado nunca teriam sido
subjugadas meramente por zelo e ensinos errôneos. As trombetas que derrubaram
os muros de Jericó não eram trombetas que emitiam sons incertos. Os
evangelistas ingleses do século passado não eram homens de credo incerto. Mas
o que era que eles pregavam? Alguma informação a este respeito não será sem
utilidade.
Uma
das coisas que os reformadores espirituais do século passado ensinaram
constantemente era a suficiência e supremacia das Sagradas Escrituras. A Bíblia,
toda e não mutilada, era a sua única regra de fé e prática. Eles aceitavam
todas as suas afirmativas sem questioná-las ou colocá-las em dúvida. Eles não
sabiam nada a respeito de porção alguma das Escrituras que não fosse
inspirada. Eles nunca admitiram que o homem tenha em si alguma ‘faculdade
verificadora’, pela qual as asseverações das Escrituras pudessem ser
avaliadas, rejeitadas ou aceitas. Eles nunca se esquivaram de asseverar que não
pode haver erro na Palavra de Deus e que, quando não podemos entender ou
conciliar algumas partes do seu conteúdo, a falta está no intérprete e não
no texto. Em toda a pregação, eles eram eminentemente homens de um só livro.
Estavam contentes em depositar sua confiança naquele livro e por ele resistir
ou sucumbir. Esta era uma das características de suas pregações. Eles
honravam, amavam e reverenciavam a Bíblia.
Além
disso, os reformadores do século dezoito ensinavam constantemente a total
corrupção da natureza humana. Eles nada sabiam da idéia moderna de que Cristo
está em todos os homens, e de que todos possuem algo de bom dentro de si, que
precisa apenas ser despertado e usado para poder salvá-los. Eles nunca
agradaram a homens ensinando isso. Eles lhes diziam claramente que estavam
mortos e que precisavam viver; que se encontravam culpados, perdidos,
desamparados, desesperados e em perigo iminente de destruição eterna. Por mais
estranho e paradoxal que possa parecer a alguns, o primeiro passo deles no propósito
de tornar bom o homem, era mostrar-lhes que eles eram completamente maus, e o
seu argumento primordial, no sentido de persuadir as pessoas a fazerem alguma
coisa por suas almas, era convencê-los de que não podiam fazer nada por elas.
Além
disso, os reformadores do século passado ensinavam constantemente que a morte
de Cristo na cruz era o único meio de expiação para o pecado do homem, e que,
quando Cristo morreu, Ele morreu como nosso substituto - ‘o Justo pelo injusto’.
Este, na verdade, era o ponto cardinal em quase todos os seus sermões. Eles
nunca ensinaram a doutrina moderna de que a morte de Cristo foi apenas um grande
exemplo de auto-sacrifício. Eles viam nela algo muito mais elevado, maior e
mais profundo do que isto. Viam nela o pagamento do assombroso débito do homem
para com Deus. Eles amavam a pessoa de Cristo, se regozijavam nas Suas promessas
e instavam os homens a andarem segundo o exemplo dEle. Mas o assunto que eles se
deliciavam em tratar, acima de todos os outros, era o sangue redentor que Cristo
derramou por nós na cruz.
Além disso, os reformadores do século dezoito ensinavam constantemente a
grande doutrina da justificação pela fé. Eles anunciavam aos homens que a fé
era a coisa necessária a fim de obterem, para suas almas, benefício na obra de
Cristo; que antes de virmos a crer, estamos mortos e não temos benefício
nenhum em Cristo e que a partir do momento em que cremos, passamos a viver e ter
pleno direito a todos esses benefícios. Justificação por tornar-se membro de
igreja, justificação sem crença e confiança, eram noções que eles não
toleravam. Tudo, se você crer e a partir do momento em que crê; nada, se você
não crer - era a própria essência da pregação deles.
Além disso, os reformadores do século dezoito ensinavam constantemente a
necessidade universal de conversão do coração e uma nova criação pelo Espírito
Santo. Eles proclamavam em todo lugar às multidões a que se dirigiam: ‘Vocês
precisam nascer de novo’. Filiação a Deus através do batismo, filiação
a Deus ao mesmo tempo em que fazemos a vontade do diabo, eles nunca admitiram. A
regeneração que eles pregavam não era algo dormente, apático e inerte. Era
alguma coisa que podia ser vista, discernida e conhecida através de seus
efeitos.
Além
disso, os reformadores do século dezoito ensinavam constantemente a ligação
inseparável entre verdadeira fé e santidade pessoal. Eles nunca aceitaram por
um só momento, que estar arrolado como membro de igreja ou a simples profissão
de fé eram provas de que um homem era crente, se ele não vivesse uma vida
piedosa. Um verdadeiro crente, eles sustentavam, deve sempre ser reconhecido por
seus frutos e estes frutos devem ser plena e inequivocamente manifestos em todas
as áreas da vida. ‘Ausência de frutos, ausência de graça,’ era o teor
invariável da pregação deles.
Finalmente,
os reformadores do século dezoito ensinavam constantemente as doutrinas
igualmente verdadeiras do ódio eterno de Deus pelo pecado e o amor de Deus
pelos pecadores. Eles nada sabiam a respeito de um amor insuficiente para salvar
do inferno e de um céu aonde santos e não santos são ambos finalmente
admitidos. Eles usavam, tanto a respeito do céu como a respeito do inferno, a
linguagem mais clara possível. Nunca recuaram em declarar, nos termos mais
claros, a certeza do julgamento de Deus e da ira porvir, se os homens
persistirem na impenitência e incredulidade; e apesar disso, nunca cessaram de
magnificar as riquezas da bondade e compaixão de Deus e de conclamar todos os
pecadores a arrependerem-se e voltarem-se para Deus antes que fosse tarde demais.
Estas
eram as principais verdades que os evangelistas ingleses do século passado
pregavam constantemente. Estas eram as principais doutrinas que eles estavam
constantemente proclamando, quer na cidade quer no campo, quer em igrejas quer
em céu aberto, quer entre ricos quer entre pobres. Estas foram as doutrinas
através das quais eles viraram a Inglaterra de cabeça para baixo, e fizeram
homens do campo e trabalhadores de minas de carvão chorarem até que suas faces
sujas ficassem marcadas pelas lágrimas; cativaram a atenção de nobres e filósofos,
tomaram de assalto as fortalezas de Satanás, arrancaram milhares como que tições
do fogo, e mudaram o caráter da época. Você pode chamá-las de doutrinas
simples e elementares se desejar. Diga, se lhe agradar, que você não vê nada
de grande, surpreendente, novo ou peculiar nesta lista de verdades. Mas é inegável
o fato de que Deus abençoou estas verdades, a ponto de reformar a Inglaterra há
cem anos atrás. O que Deus abençoou não despreze o homem.
Quais
foram os homens que reavivaram a religião na Inglaterra há cem anos atrás?
Quais foram seus nomes, a fim de que possamos honrá-los? Onde eles nasceram?
Como foram educados? Quais são os fatos mais importantes nas suas vidas? Qual
foi a área especial em que trabalharam? A estas questões eu desejo fornecer
algumas respostas no presente e nos subseqüentes capítulos.
Eu
tenho pena do homem que não tem interesse nestas perguntas. Os instrumentos que
Deus emprega para fazer a sua obra no mundo merecem um cuidadoso exame. O homem
que não se incomoda em olhar para os chifres de carneiro que derrubaram Jericó,
para o martelo e estaca que mataram Sísera, para as tochas e trombetas de Gideão,
para a funda e pedra de Davi, pode muito bem ser considerado como uma pessoa
fria e sem coração. Eu estou certo de que todos os que lerem este volume
gostarão de conhecer alguma coisa a respeito dos evangelistas ingleses do século
dezoito.
O
primeiro que mencionarei é o bem conhecido George Whitefield. Embora não seja
o primeiro em ordem, se olharmos para a data de seu nascimento, eu o coloco como
primeiro quanto aos méritos, sem nenhuma hesitação. De todos os heróis
espirituais de cem anos atrás, nenhum compreendeu tão cedo quanto Whitefield,
as demandas de seu tempo, e ninguém estava tão na dianteira na grande obra de
ofensiva espiritual. Eu penso que cometeria uma injustiça se colocasse qualquer
outro nome na frente do seu.
Whitefield
nasceu em Gloucester, no ano de 1714. Esta venerável cidade, que foi o lugar de
seu nascimento, está ligada com mais de um nome que deveria ser querido a todo
amante da verdade protestante. Tyndal, um dos
primeiros e mais capazes tradutores da Bíblia inglesa, também nasceu em Gloucester. Hooper,
um dos maiores e melhores dos nossos reformadores ingleses, foi bispo de
Gloucester, e foi queimado na fogueira por causa da verdade de Cristo, diante da
sua própria igreja, no reinado da Rainha Maria. No século seguinte, Miles
Smith, Bispo de Gloucester, foi um dos
primeiros a protestar contra os procedimentos romanizadores de Laud, o qual era
então Deão de Gloucester. Na verdade, ele ia tão longe nos seus sentimentos
protestantes que quando Laud moveu a mesa de comunhão da catedral para o lado
direito, e a colocou pela primeira vez do lado oposto do altar, em 1616, o Bispo
Smith ficou tão ofendido que se recusou a entrar na catedral a partir daquele
dia até a sua morte. Lugares como Gloucester, não podemos duvidar, têm
vinculados a si uma rica herança de muitas orações. A cidade aonde Hooper
pregou e orou, e onde o zeloso Miles Smith protestou, foi o lugar onde nasceu o
maior pregador do Evangelho que a Inglaterra jamais viu.
Como
muitos outros homens famosos, Whitefield era de origem humilde, e não gozava de
conhecimento de pessoas ricas ou nobres para ajudá-lo a ir avante no mundo. Sua
mãe possuía a hospedaria Bell em Gloucester, e parece que não prosperou no
negócio. De qualquer modo, parece que ela nunca teve condições de fazer nada
para que Whitefield avançasse na vida. A hospedaria ainda existe, e é tida
como o lugar de nascimento não apenas do nosso maior pregador inglês, mas também
de um bem conhecido prelado inglês: Henry Philpot, Bispo de Exeter.
O
início da vida de Whitefield, de acordo com seu próprio relato, foi tudo,
menos religioso, embora, como muitas crianças, ele tivesse ocasionais fisgadas
de consciência e afetos espasmódicos de sentimentos de devoção. Mas, os hábitos
e os gostos em geral são o único teste verdadeiro dos caracteres dos jovens.
Ele confessa que era ‘dado à mentira,
conversa obscena, galhofa tola’, e que era um ‘profanador
do domingo, freqüentador de teatro, jogador de cartas e leitor de romances’.
Tudo isso, diz ele, continuou até a idade de quinze anos.
Pobre
como era, sua residência em Gloucester lhe proporcionou a vantagem de uma boa
educação na escola pública secundária da cidade. Aí ele foi um estudante
externo até a idade de 15 anos. Nada é conhecido a respeito do seu progresso aí.
Entretanto, ele dificilmente deve ter sido ocioso, pois neste caso não estaria
pronto para ingressar na universidade logo depois, com a idade de 18 anos. Além
disso, suas cartas mostram uma familiaridade com o latim, através de freqüentes
citações, o que dificilmente seria conseguido se não houvesse aprendido na
escola. O único fato conhecido a respeito dos seus dias na escola é o fato
curioso de que ele era notável por sua elocução e memória, e foi selecionado
para recitar discursos diante da Corporação de Gloucester quando da sua visita
anual à Escola Secundária.
Com
a idade de 15 anos Whitefield deixou a escola, e parece ter abandonado o latim e
o grego por um tempo. Com toda a probabilidade, as difíceis circunstâncias
financeiras de sua mãe tornaram absolutamente necessário que ele fizesse
alguma coisa para ajudá-la no seu negócio e que ganhasse o seu próprio
sustento. Assim, ele começou a ajudá-la no serviço diário de sua hospedagem.
‘Finalmente,’ diz ele, ‘eu
coloquei o meu avental azul, lavei copos, limpei salas e, em uma palavra, tornei-me
um zelador declarado durante um ano e meio.’
Este estado de coisas, entretanto, não durou muito; o negócio da sua mãe
na hospedaria não floresceu e ela finalmente aposentou-se totalmente. Um antigo
colega de escola reavivou em sua mente a idéia de ir para Oxford, e ele voltou
para os bancos da Escola Secundária reiniciando seus estudos. Alguns amigos que
estavam interessados por ele se levantaram no Pembroke College, em Oxford, onde
a Escola Secundária de Gloucester fez duas exibições. Finalmente, após
diversas circunstâncias providenciais terem suavizado o caminho, ele ingressou
em Oxford como um servente no Pembroke College com a idade de 18 anos.
O período em que Whitefield residiu em Oxford foi o momento crucial na sua
vida. O seu jornal nos diz que durante os dois ou três anos que antecederam a
sua ida para a Universidade, ele não esteve isento de convicções religiosas.
Mas, a partir do momento em que ingressou no Pembroke College, estas convicções
rapidamente amadureceram em direção a um cristianismo convicto. Ele fazia uso
diligente de todos os meios de graça ao seu alcance. Ele gastava seus tempos
vagos visitando a prisão da cidade, lendo para os prisioneiros, e tentando
fazer o bem. Ele conheceu os famosos John Wesley, seu irmão Charles Wesley, e
um pequeno grupo de jovens do mesmo pensamento, incluindo o conhecido autor de ‘Theron
and Aspasion,’ James Hervey. Este era o devotado grupo aos quais o termo ‘metodistas’
foi aplicado pela primeira vez, por causa do seu ‘método’ estrito de viver. Num certo período da sua vida,
Whitefield parece ter devorado com prazer livros como: ‘Thomas à Kempis’,
e, ‘O
Combate Espiritual de Castanuza’, e ter estado em perigo de tornar-se um
semi-papista, um ascético ou um místico, e de fazer da auto-negação o centro
da religião. Ele diz em seu jornal: ‘Eu
sempre escolhia o pior tipo de alimento. Eu jejuava duas vezes por semana; minha
aparência era desprezível. Eu pensava que passar brilhantina no cabelo era
impiedade. Eu usava luvas de lã, roupa remendada, e sapatos sujos; e pensei que
estava convencido de que o reino não consiste em comida e bebida, mas ainda
persistia resolutamente nestes atos voluntários de auto-negação, porque
encontrava neles grande estímulo para a vida espiritual.’ Ele foi
gradualmente libertado de toda esta escuridão, em parte pelo conselho de um ou
dois cristãos experientes, e em parte pela leitura de livros tais como: ‘A
Vida de Deus no Coração do Homem’ de
Scougal, ‘Apelo Sério’ de Law, ‘Apelo aos não Convertidos’
de Baxter, ‘Alerta a Pecadores não
Convertidos’ de Alleine, o comentário de Matthew Henry. ‘Acima de tudo’
diz ele, ‘tendo a minha mente agora mais
aberta e alargada, eu comecei a ler as Sagradas Escrituras de joelhos, colocando
de lado todos os outros livros e orando, se possível, sobre cada linha e
palavra. Isto proveu alimento e bebida de fato para minha alma. Eu diariamente
recebia vida fresca, luz e poder do alto. Eu obtive mais conhecimento verdadeiro
da leitura do Livro de Deus em um mês do que jamais
poderia adquirir de todos os escritos dos homens.’ Uma vez ensinado a
entender a gloriosa liberdade da graça de Cristo, Whitefield nunca mais voltou-se
para o ascetismo, legalismo, misticismo, ou estranhas idéias da perfeição
cristã. A experiência adquirida por meio de amargo conflito lhe foi muito
valiosa. As doutrinas da livre graça uma vez plenamente aprendidas, lançaram
profundas raízes no seu coração, e tornaram-se como se fosse osso do seu osso
e carne da sua carne. De todo o pequeno grupo de metodistas de Oxford, nenhum
parece ter se apossado tão cedo de uma clara visão do Evangelho de Cristo como
ele o fez, e nenhum a guardou tão resolutamente até o fim.
Com
a idade de 22 anos, Whitefield foi admitido às Santas Ordens pelo Bispo Benson
de Gloucester, no Domingo da Santíssima Trindade, em 1736. Sua ordenação não
resultou da sua própria busca. O bispo ouviu de Lady Selwyn e de outros a
respeito do seu caráter, mandou buscá-lo e deu-lhe cinco guinéus para comprar
livros, oferecendo-se para ordená-lo quando ele desejasse, embora tivesse
apenas 22 anos de idade. Esta oferta inesperada o alcançou quando ele estava
cheio de escrúpulos a respeito da sua própria condição para o ministério.
Aquilo desfez as amarras e o levou a tomar uma decisão. ‘Eu
comecei a pensar’, diz ele, ‘que se continuasse a resistir, eu lutaria contra Deus’.
O
primeiro sermão de
Whitefield foi pregado na própria cidade onde ele nasceu, na Igreja de Sta.
Mary-le-Crypt, em Gloucester. A sua própria descrição é o melhor relato que
pode ser dado: ‘Domingo passado, de
tarde, eu preguei meu primeiro sermão, na Igreja de Sta. Mary-le-Crypt, onde
fui batizado e também pela primeira recebi o sacramento da Ceia do Senhor.
Curiosamente, como você pode facilmente conjecturar, isto atraiu uma grande
congregação na ocasião. A visão, à princípio,
atemorizou-me um pouco. Mas fui confortado com um sentimento sensível ao meu
coração da presença divina, e logo descobri a indizível vantagem de ter sido
acostumado a falar em público quando garoto na escola, e de exortar
prisioneiros e pessoas pobres nas suas casas quando na Universidade. Por meio
disso fui guardado de ser demasiadamente desencorajado. Quando eu prosseguia
percebi um fogo se acender, até que por fim, embora tão jovem e cercado por
uma multidão daqueles que me conheciam desde os dias da minha meninice, eu
acredito que fui habilitado a pregar o Evangelho com algum grau de autoridade. Alguns
poucos escarneceram, mas a maioria parecia subitamente impressionada; e eu ouvi
que uma queixa foi feita ao bispo, de que eu havia levado quinze pessoas à loucura
com o meu primeiro sermão! O digno prelado desejou que a loucura não viesse a
ser esquecida antes do próximo domingo.’
Quase
que imediatamente após sua ordenação, Whitefield foi para Oxford e obteve seu
grau de Bacharel em Artes. Ele então começou sua vida ministerial regular
assumindo deveres temporários na Tower Chapel em Londres. Enquanto servia ali,
pregou continuamente em muitas igrejas de Londres, e entre outras, nas igrejas
paroquiais de Islington, Bishopsgate, Sto. Dunstan,
Sta. Margaret, Westminster, Ibow, Cheapside. Desde o início ele obteve um grau de popularidade tal, que nenhum pregador
antes ou desde então provavelmente jamais alcançou. Quer em dias de semana ou
domingos, onde quer que ele pregasse as igrejas lotavam e uma grande sensação
era produzida. A grande verdade é que um pregador extemporâneo e realmente
eloqüente, pregando o puro Evangelho com os dons de voz e de maneiras não
usuais, era naquele tempo uma completa novidade em Londres. As congregações
eram tomadas de surpresa e arrebatadas. De Londres ele foi transferido por dois
meses para Dummer, numa pequena paróquia rural em Hampshire, perto de
Basingstoke. Esta era uma esfera de ação totalmente nova, e ele parecia como
que um homem enterrado vivo entre aquele povo pobre e iletrado. Mas cedo ele
adaptou-se a situação, e concluiu posteriormente que colheu muito proveito das
conversas que teve com os pobres. De
Dummer ele aceitou um convite, o qual lhe havia sido feito com insistência
pelos irmãos Wesley para visitar a colônia de Geórgia na América do Norte,
para ajudar no cuidado de uma casa de órfãos que havia sido estabelecida perto
de Savannah para filhos de colonizadores. Após pregar por alguns poucos meses
em Gloucestershire, e especialmente em Bristol e Stonehouse, ele viajou para América
no segundo semestre de 1737, permanecendo lá por cerca de um ano. As coisas
relacionadas com esta casa de órfãos, deve-se observar, ocuparam muito da sua
atenção desde este período da sua vida até a sua morte. Apesar de bem
intencionado, parece ter sido uma decisão de questionável sabedoria, e
certamente acarretou a Whitefield um mundo de ansiedade e responsabilidade até
o fim de seus dias.
Whitefield
retornou da Geórgia na segunda parte do ano de 1738, em parte para obter as
ordens do sacerdote, que lhe foram conferidas pelo seu antigo amigo, o Bispo
Benson, e em parte para tratar de negócios relacionados com a casa de órfãos.
Ele cedo descobriu, entretanto, que a sua posição não era mais a mesma de
antes de haver viajado para a Geórgia. O grosso do clero não lhe era mais
favorável e olhavam-no com suspeitas, como um entusiasta e um fanático. Eles
estavam escandalizados principalmente por causa da pregação da doutrina da
regeneração ou do novo nascimento, como algo que muitas pessoas batizadas
necessitavam grandemente! O número de púlpitos aos quais ele tinha acesso
rapidamente diminuiu. Os guardiões da igreja, os
quais não tinham olhos para a bebedeira e impureza, ficaram cheios de
intensa indignação sobre o que eles chamavam de ‘violação
da ordem’. Bispos que podiam tolerar o Arminianismo, Socinianismo e Deísmo,
encheram-se de indignação contra um homem que declarava plenamente a expiação
de Cristo e a obra do Espírito Santo, e começaram a denunciá-lo abertamente.
Para abreviar, deste período da sua vida em diante, o campo de utilidade de
Whitefield dentro da Igreja da Inglaterra estreitou-se rapidamente de todos os
lados.
O
fato que neste tempo provocou uma reviravolta em todo o curso do ministério de
Whitefield foi sua adoção do sistema de pregação a céu aberto. Observando
que milhares em todo lugar não freqüentavam locais de culto, gastavam seus
domingos na ociosidade ou no pecado e não eram alcançados pelos sermões
pregados dentro das paredes dos templos, ele resolveu, num espírito de ofensiva
santa, ir atrás deles ‘nas ruas e becos’,
de acordo com o princípio de seu Mestre, e ‘compeli-los
a entrar’. A sua primeira tentativa em fazer isso foi entre os mineiros de
carvão em Kingswood, perto de Bristol, em fevereiro de 1739. Depois de muita
oração, ele foi um dia para o monte
Hannam, colocou-se de pé sobre o monte, e começou a pregar a aproximadamente
uma centena de mineiros, baseado em Mateus 5:1-3.
Logo a coisa tornou-se conhecida. O número de ouvintes rapidamente aumentou,
até que a congregação contava com muitos milhares. Seu próprio relato da
conduta destes mineiros de carvão negligenciados, os quais nunca haviam estado
em uma igreja nas suas vidas, é profundamente comovente: ‘Não
tendo’, escreve ele a um amigo, ‘nenhuma
justiça própria para renunciar, eles ficavam felizes ao ouvir de um Jesus, o
qual era um amigo de publicanos, e que não veio chamar os justos, mas pecadores
ao arrependimento. A primeira vez que descobri que estavam sendo afetados foi
através da visão dos sulcos brancos feitos por suas lágrimas, que rolavam
abundantemente das suas faces negras, visto que haviam saído das suas minas de
carvão. Centenas deles foram logo levados a uma profunda convicção, a qual,
foi comprovado, terminou felizmente em uma sadia e total conversão. A mudança
era visível a todos, apesar de alguns terem escolhido atribuí-la a qualquer
outra coisa que não ao dedo de Deus. Visto que a cena era totalmente nova, ela
freqüentemente ocasionava muitos conflitos interiores. Às vezes, quando vinte
mil pessoas estavam diante de mim, eu não tinha uma só palavra para dizer,
quer a Deus ou a eles. Mas eu nunca fui totalmente desamparado, e freqüentemente
(porque negar isto seria mentir contra Deus) fui de tal modo assistido, que vim
a saber, por uma feliz experiência, o que o nosso Senhor tencionava ao dizer
‘do seu interior fluirão rios de água viva’. O firmamento aberto sobre mim,
a vista dos campos adjacentes, com a visão de milhares, alguns em carroças,
outros sobre o dorso de cavalos, e alguns nas árvores, e às vezes, todos
comovidos e em lágrimas, era quase que demais para mim e dominava-me totalmente.’
Dois
meses depois disto Whitefield iniciou a prática de pregação a céu aberto em
Londres, no dia 27 de abril de 1739. As circunstâncias nas quais isto aconteceu
foram curiosas. Ele havia ido para Islington para pregar a convite do vigário,
seu amigo, Sr. Stonehouse. No meio da oração os guardiões da igreja vieram a
ele e pediram sua licença para pregar na diocese de Londres. E claro que
Whitefield não tinha esta licença, assim como nenhum outro ministro que não
oficiava regularmente na diocese, naqueles dias. O resultado da questão foi que,
sendo proibido de pregar pelos guardiões da igreja no púlpito, ele foi para
fora depois da comunhão e pregou no cemitério da igreja. ‘E’,
diz ele, ‘Deus agradou-se em
assistir-me na pregação e a comover tão maravilhosamente os ouvintes, que
acredito que poderíamos ter ido para a prisão cantando hinos. Não digam os
adversários que eu mesmo me retirei das suas sinagogas. Não! Eles me
expulsaram.’ Daquele dia em diante ele tomou-se um constante pregador do
campo quando quer que o tempo e a estação do ano o fizesse possível. Dois
dias depois, no domingo de 29 de abril, ele registra: ‘Eu
preguei em Moorfields a uma multidão extremamente grande. Tendo ficado
debilitado pelo meu sermão da manhã, eu descansei de tarde dormindo um pouco,
e às cinco horas fui e preguei em Kenninngton Common, à cerca de duas milhas
de Londres, quando não menos do que trinta mil pessoas foram estimadas estar
presentes’. Daí em diante, aonde quer que houvesse amplos espaços
abertos ao redor de Londres, aonde quer que houvesse grandes grupos de ociosos,
ímpios, profanadores do domingo reunidos, em Hackney Fields, Mary-le-bone
Fields, May-Fair, Smithfields, Blackheath, Moorfields, Kenninngton Conmion, lá
estava Whitefield levantando sua voz por Cristo. O Evangelho assim proclamado
era ouvido e alegremente recebido por centenas que nunca sonharam em ir a um
lugar de adoração. A causa da pura religião avançou e almas foram arrancadas
das mãos de Satanás, como brasas do fogo. Mas a coisa estava indo rápido
demais para a igreja daqueles dias. O clero, com poucas exceções, recusava
inteiramente apoiar este estranho pregador. Com um espírito de verdadeira
inveja, eles nem gostavam de ir atrás das massas da população semi-pagã, nem
queriam que ninguém fosse fazer o trabalho para eles. A conseqüência foi que
as pregações de Whitefield nos púlpitos da Igreja da Inglaterra a partir
deste tempo cessaram quase que inteiramente. Ele amava a igreja na qual havia
sido ordenado; ele gloriava-se nos seus artigos de fé; ele usava com prazer os
seus livros de oração. Mas a igreja não o amava, e assim perdeu o uso dos
seus serviços. A pura verdade é, que a igreja da Inglaterra daqueles dias não
estava pronta para um homem como Whitefield. A igreja estava sonolenta demais
para entendê-lo e incomodada com um homem que não se aquietava nem deixava o
diabo em paz.
Os
acontecimentos da história de Whitefield a partir deste período até o dia da
sua morte são quase que inteiramente da mesma compleição. Um ano era
exatamente como o outro e tentar segui-lo seria apenas pisar repetidamente sobre
o mesmo solo. De 1739 até o ano da sua morte em 1770, um período de 31 anos,
sua vida foi de uma desenvoltura uniforme. Ele foi eminentemente um homem de uma
só coisa, que era o cuidado dos negócios de seu Mestre. De domingo de manhã
aos sábados à noite, de primeiro de janeiro a 31 de dezembro, excetuando-se
quando ficava impossibilitado por doença, ele estava quase que incessantemente
pregando a Cristo, e indo ao redor do mundo convidando os homens ao
arrependimento, a virem a Cristo e a serem salvos. Dificilmente houve uma cidade
de considerável tamanho na Inglaterra, Escócia ou País de Gales, que ele não
tenha visitado como evangelista. Quando as igrejas lhe estavam abertas, ele
pregava alegremente nas igrejas; quando apenas capelas podiam ser conseguidas,
ele pregava com alegria nas capelas. Quando igrejas e capelas estavam ambas
fechadas, ou eram demasiadamente pequenas para conter seus ouvintes, ele estava
pronto e desejoso de pregar ao ar livre. Por 31 anos ele laborou deste modo,
sempre proclamando o mesmo Evangelho glorioso, e sempre, até onde os olhos
humanos possam julgar, com imenso efeito. Numa única semana de pentecostes, após
pregar em Moorfields, ele recebeu cerca de mil cartas de pessoas espiritualmente
aflitas, e admitiu à mesa do Senhor trezentos e cinqüenta pessoas. Nos trinta
e quatro anos do seu ministério é reconhecido que ele pregou publicamente
dezoito mil vezes.
Suas viagens foram prodigiosas, quando consideradas as ruas e meios de
transportes do seu tempo. Mais do que qualquer homem nos tempos modernos, ele
estava familiarizado com ‘perigos no
deserto e perigos no mar’. Ele visitou a Escócia quatorze vezes e em
nenhum outro lugar foi mais bem aceito e útil do que naquele país amante da Bíblia.
Ele cruzou o Atlântico sete vezes, de ida e de volta, em miseráveis e lentos
barcos a vela e atraiu a atenção de milhares em Boston, New York e
Philadelphia. Ele foi à Irlanda duas vezes, e em determinada ocasião quase foi
assassinado por uma turba de papistas ignorantes em Dublin. Na Inglaterra e no
País de Gales, ele percorreu cada um de seus condados, da Ilha de Wight até
Berwick-on-Thiid, e da Land’s End até North Foreland.
O seu trabalho ministerial regular em Londres durante a estação de inverno,
quando a pregação no campo era necessariamente suspensa, era, às vezes,
prodigioso. Seus compromissos semanais no Tabernáculo em Tottenham Court Road,
o qual foi construído por ele quando os púlpitos da igreja estabelecida foram
fechados, compreendiam os seguintes trabalhos: cada domingo de manhã ele
ministrava a Ceia do Senhor a diversas centenas de comungantes, às seis e meia.
Depois disso, ele lia orações, e pregava de manhã e de tarde. Então pregava
novamente no início da noite, às cinco e meia, e concluía dirigindo-se a um
largo grupo de viúvas, casais, homens e mulheres solteiros, todos sentados
separadamente na área do Tabernáculo, com exortações apropriadas às suas
respectivas situações. Nas manhãs de segunda, terça, quarta e quinta, ele
pregava regularmente às seis horas. Nas tardes de segunda, terça, quarta,
quinta e sábado, ele fazia palestras. Isto, pode-se observar, perfazia treze
sermões por semana. E durante todo este tempo ele mantinha uma ampla correspondência
com pessoas em quase toda parte do mundo.
Que qualquer constituição humana pudesse suportar os labores que
Whitefield suportou durante tanto tempo, parece surpreendente. Que sua vida não
tenha sido ceifada pelos perigos aos quais estava freqüentemente exposto, não
é menos surpreendente. Mas ele foi imortal até que seu trabalho fosse
realizado. Por fim, ele morreu
subitamente em Newbury Porth, na América do Norte, num domingo, 29 de setembro
de 1770, ainda relativamente novo, com 56 anos
de idade. Ele foi casado com uma viúva chamada James, de Abergavenny, a qual
morreu antes dele. Se podemos julgar pela pouca menção que ele faz da esposa
em suas cartas, o casamento não parece ter contribuído muito para sua
felicidade. Ele não deixou filhos, mas deixou um nome bem melhor preservado do
que se tivesse deixado filhos e filhas. Talvez nunca tenha havido um homem do
qual se pudesse dizer tão verdadeiramente que gastou e foi gasto por Cristo
como George Whitefield.
As circunstâncias particulares do fim deste grande evangelista são tão
profundamente interessantes que eu não me desculparei em demorar-me neles. Foi
um fim em extraordinária harmonia com
o teor da sua vida. Assim como havia vivido por mais de trinta anos, assim ele
morreu: pregando até o fim. Ele
literalmente morreu no posto. ‘Morte súbita’,
freqüentemente dizia, ‘é glória
súbita. Quer correto ou não, não posso deixar de desejar partir desta maneira.
Para mim seria pior do que a morte ter de ser assistido na doença e ver os
amigos chorando ao redor de mim’. Ele teve o desejo do seu coração
atendido. Foi ceifado numa noite por um acesso espasmódico de asma, quase que
antes que seus amigos viessem a saber que se encontrava doente.
Na
manhã de sábado, de 29 de setembro, o dia em cuja noite morreria, Whitefield
viajou a cavalo de Portsmouth em New Hampshire, a fim de cumprir um compromisso
de pregar em Newbury Porth no domingo. No caminho, infelizmente,
ele foi convidado insistentemente para pregar em um lugar chamado Exeter, e
apesar de se sentir muito doente, não teve coragem de recusar. Um amigo
observou que antes de iniciar a pregação, ele parecia mais indisposto do que o
usual, e lhe disse, ‘O senhor está mais
habilitado para ir para cama do que para pregar.’, ao que Whitefield
replicou: ‘É verdade, senhor’, e
então, virando-se para o lado, apertou as mãos uma na outra e olhando para
cima disse: ‘Senhor Jesus, eu estou
cansado na tua obra, mas não da tua obra. Se ainda não terminei minha carreira,
deixa-me ir e pregar uma vez mais nos campos, selar a tua verdade, vir para casa
e morrer’. Então ele foi e pregou a uma enorme multidão nos campos,
baseado em II Coríntios 8:5, pelo
espaço de quase duas horas. Foi seu último sermão, e uma conclusão
apropriada a toda a sua carreira.
Uma
testemunha ocular deu o surpreendente relato da cena final da vida de
Whitefield: “Ele levantou-se de sua cadeira, e permaneceu em pé. A sua
simples aparência era um poderoso sermão. A magreza de sua face, a palidez do
seu semblante, a luta evidente do brilho celestial em um corpo decadente demais
para falar, era algo profundamente interessante; o espírito estava querendo,
mas a carne estava morrendo. Nesta situação ele permaneceu por diversos
minutos, sem conseguir falar. Então ele disse: ‘Esperarei
pela graciosa assistência de Deus, porque Ele irá, estou certo, assistir-me
uma vez mais para falar em seu nome.’ Então ele pregou talvez um de seus
melhores sermões. A parte final continha as seguintes palavras: ‘Eu
vou; eu vou para um descanso que me está preparado. O meu Sol deu luz a muitos,
mas agora ele está se pondo - não,
agora ele está se levantando para o zênite da glória imortal. Eu vivi mais do
que muitos na terra, mas eles não viverão mais do que eu nos céus. Muitos
viverão mais do que eu na terra, e permanecerão quando este corpo não mais
existir, mas lá, oh, pensamentos divinos!, eu estarei num mundo aonde tempo,
idade, doença, e sofrimentos são desconhecidos, o meu corpo agora falha, mas o
meu espírito se expande. Como eu desejaria viver para sempre para pregar a
Cristo. Mas eu morro para estar com Ele. Quão breve - comparativamente
breve - foi a minha vida comparada com
os imensos labores os quais eu vejo diante de mim ainda não realizados. Mas se
eu partir agora, enquanto ainda tão poucos preocupam-se com as coisas
celestiais, o Deus da Paz certamente visitará vocês’”. Depois que o
sermão terminou, Whitefield jantou com um amigo, então cavalgou para Newbury
Porth, apesar de bastante fatigado. Ao chegar ali, ele ceou cedo e retirou-se
para a cama. A tradição diz que quando ele subia as escadas com uma vela acesa
nas mãos, ele não pôde resistir ao desejo de voltar o rosto, no topo da
escada, e falar aos amigos que estavam reunidos, os quais vieram encontrá-lo.
Enquanto ele falava, o fogo brilhava dentro dele, e antes que pudesse concluir,
a vela que segurava nas mãos queimou até o fim. Ele retirou-se para o seu
quarto para não mais sair de lá com vida. Um violento acesso de asma se
apoderou dele logo depois que foi para a cama e antes das seis da manhã, o
grande pregador estava morto. Quando chegou a hora, ele não tinha nada para
fazer a não ser morrer. Onde ele morreu, aí foi enterrado, em uma câmara
mortuária abaixo do púlpito da igreja, onde ele estava comprometido para
pregar. O seu sepulcro é visto até o dia de hoje e nada faz a pequena cidade
onde morreu tão famosa quanto o fato de que ali estão os ossos de George
Whitefield.
George Whitefield, na minha avaliação, foi tão decididamente o principal
e o primeiro dentre os reformadores ingleses do século passado, que não me
desculpo por oferecer algumas informações adicionais a seu respeito. O real
bem que ele fez, o caráter peculiar da sua pregação, o caráter privado do
homem, são todos pontos que merecem consideração. São pontos, posso
acrescentar, a respeito dos quais tem havido muita compreensão incorreta.
Esta compreensão incorreta talvez seja inevitável, e não deveria nos
surpreender. As fontes para que se forme uma correta opinião a respeito de um
homem como Whitefield são necessariamente muito escassas. Ele não escreveu
livros lidos por milhões, de fama universal, como ‘O Peregrino’, de Bunyan. Ele não encabeçou cruzadas contra
uma igreja apóstata com o apoio de uma nação e príncipes ao seu lado como
Martinho Lutero. Ele não fundou nenhuma denominação, que ligasse sua fé aos
seus escritos e preservasse cuidadosamente seus melhores atos e palavras. Há
Luteranos e Wesleyanos nos dias presentes, mas não há ‘Whitefieldianos’. Não! O grande evangelista foi um homem
simples e sincero, que viveu para uma coisa apenas: pregar a Cristo. Fazendo
isto, ele não se importava com mais nada. Os registros a respeito desse homem são
amplos e plenos nos céus, não há dúvida, mas são poucos e escassos na
terra.
Não devemos esquecer, além disso, que muitos em todas as épocas não vêem
nada em homens como Whitefield senão fanatismo e entusiasmo. Eles abominam tudo
que se pareça com ‘zelo’ em religião. Eles detestam todos os que viram o
mundo de cabeça para baixo, fogem do velho caminho da tradição e não deixam
o diabo sozinho. Tais pessoas, não tenho dúvidas, nos diriam que o ministério
de Whitefield somente produziu excitação temporária, e que sua pregação era
mera extravagância, não havendo nada de especial a ser admirado no seu caráter.
E de se temer que a dezoito séculos atrás houvessem dito o mesmo a respeito do
apóstolo Paulo.
A pergunta, ‘Que bem fez Whitefield?’ é uma pergunta que eu respondo
sem a menor hesitação. Eu acredito que o bem direto que ele fez às almas
imortais foi enorme. Eu vou adiante, - eu acredito que foi incalculável.
Testemunhas dignas de crédito na Inglaterra, Escócia e América registraram
sua convicção de que ele foi um instrumento na conversão de milhares de
pessoas. Muitos, onde quer que ele pregasse, foram não apenas satisfeitos,
excitados, e arrebatados, mas abandonaram seus pecados, e foram feitos reais
servos de Deus. ‘Enumerar pessoas’, eu não esqueço, é em todos os tempos
uma prática objetável. Somente Deus pode ler os corações e discernir o trigo
do joio. Muitos, sem dúvida, em dias de excitação religiosa, são tidos como
convertidos, os quais não o foram de modo algum. Mas eu desejo que meus
leitores compreendam que a minha alta avaliação da utilidade de Whitefield é
baseada em sólida base. Eu peço que observem bem o que os contemporâneos de
Whitefield pensavam sobre o valor de seus labores.
Franklin, o bem conhecido filósofo americano era um homem frio e calculista,
um Quaker por profissão, o qual, não é de se esperar, que viesse a fazer uma
elevada avaliação do trabalho de nenhum ministro. Ainda assim ele confessou: ‘era
maravilhoso ver a mudança logo efetuada através da sua pregação nos hábitos
dos habitantes de Philadelphia. De descuidados ou indiferentes sobre religião,
parecia como se o mundo inteiro estivesse se tornando religioso.’ O próprio
Franklin, deve-se notar, foi o principal editor de obras religiosas na
Philadelphia, e a sua prontidão em imprimir os sermões e jornais de Whitefield
mostram o seu julgamento da influência que Whitefield exercia na mente dos
americanos.
Maclaurin, Willison, Macculloch, foram ministros escoceses cujos nomes são
bem conhecidos no norte de Tweed, sendo que os dois primeiros merecidamente
alcançaram elevada posição como escritores teológicos. Todos eles têm
testificado repetidamente que Whitefield foi um instrumento na realização de
imenso bem na Escócia. Willison em particular diz, ‘que Deus o honrou com surpreendente sucesso entre pecadores de todas
as classes e convicções’.
O
velho Henry Venn de Huddersfield e Yelling foi um homem de forte bom
senso, assim como de grande graça. Sua opinião foi que ‘se
a grandeza, extensão, sucesso e a ausência de sentimentos interesseiros nos
labores de um homem podem conferir distinção entre os filhos de Cristo, então
estamos autorizados a afirmar que dificilmente qualquer um se igualou ao Sr.
Whitefield’. Novamente ele diz: ‘Ele
foi abundantemente bem sucedido nos seus amplos labores. Os selos do seu ministério,
do início ao fim, estou persuadido, foram maiores do que poderiam ser
creditados se o número pudesse ser fixado. Uma coisa é certa: sua espantosa
popularidade devia-se apenas à sua utilidade, pois ele mal abria a sua boca
como um pregador e Deus conferia uma extraordinária bênção às suas palavras.’
John Newton era um homem perspicaz, assim como um eminente ministro do
Evangelho. Seu testemunho é: ‘Aquilo
que determinou o caráter do Sr. Whitefield como uma luz resplandecente, sendo
agora sua coroa de júbilo, foi o singular sucesso que o Senhor se agradou em
conceder-lhe de ganhar almas. Parecia que ele nunca pregava em vão.
Dificilmente talvez haja um local em todo o extensivo âmbito de seus labores
onde possam ainda ser encontrados alguns que não o reconheçam gratamente como
seu pai espiritual.’
John
Wesley não concordava com Whitefield em vários pontos teológicos de não
pouca importância. Mas quando pregou seu sermão fúnebre, ele disse: ‘Temos
nós lido ou ouvido de alguma pessoa que tenha chamado tantos milhares, tantas
miríades de pecadores ao arrependimento? Acima de tudo, temos nós lido ou
ouvido de alguém que tenha sido um instrumento abençoado na condução de
tantos pecadores das trevas para a luz, e do poder de Satanás para Deus?’
Indubitavelmente, estes testemunhos são valiosos, mas há um ponto que eles
não mencionaram. Este ponto é a quantidade do bem indireto que Whitefield
realizou. Embora os efeitos diretos dos seus labores tenham sido grandes, eu
acredito firmemente, que os efeitos indiretos foram ainda maiores. Seu ministério
foi uma benção para milhares que talvez nunca o tenham visto ou ouvido.
Ele foi o primeiro, entre os evangelistas do século dezoito, a restaurar a
atenção para as antigas verdades que produziram a Reforma Protestante. Suas
constantes afirmações das doutrinas ensinadas pelos reformadores, suas
repetidas referências aos artigos, homilias e escritos dos melhores teólogos
ingleses, obrigaram muitos a pensar, compungindo-os a examinarem seus próprios
princípios. Se toda verdade fosse conhecida, eu acredito que comprovaria que a
ascensão e progresso do corpo evangélico da Igreja da Inglaterra recebeu um
poderoso impulso de George Whitefield.
Mas
este não é o único bem indireto que Whitefield fez em seus dias. Ele estava
entre os primeiros a mostrar o caminho correto para enfrentar os ataques dos
infiéis e céticos do cristianismo. Ele viu claramente que a arma mais poderosa
contra tais homens não é um debate metafísico e dissertações críticas, mas
pregar todo o Evangelho, viver todo o Evangelho, e disseminar todo o Evangelho.
Os escritos de Leland, do jovem Sherlock, de Waterland, e de Leslie, não
obtiveram a metade do sucesso que obteve a pregação de Whitefield e seus
companheiros em reprimir a enchente de infidelidade. Estes foram os verdadeiros
campeões do cristianismo. Infiéis raramente são abalados por meros debates
abstratos. Os argumentos mais certos contra eles são a verdade do Evangelho e a
vida do Evangelho.
Acima
de tudo, ele foi o primeiro inglês que parece ter entendido plenamente o que o
Doutor Chalmers apropriadamente chamou de sistema ofensivo. Ele foi o primeiro a
ver que os ministros de Cristo devem fazer o trabalho de pescadores de homens.
Eles não devem esperar que as almas venham a eles, mas devem ir atrás das
almas, e ‘compeli-las a entrar’. Ele não sentava comodamente ao lado de sua
lareira, como um gato num dia de chuva, lamentando-se a respeito da impiedade do
país. Ele saía para enfrentar o diabo na sua cidadela; atacava o pecado e a
impiedade face a face, e não lhes dava sossego. Ele penetrava nas ruas e becos
atrás de pecadores; caçava a ignorância e o vício aonde quer que eles
pudessem ser encontrados. Em resumo, ele aplicou um sistema de ação, que até
o seu tempo era comparativamente desconhecido no seu país, mas um sistema o
qual uma vez iniciado, nunca cessou de ser empregado até o dia de hoje. Missões
nas cidades, missões nos grandes centros, sociedades de visitas distritais,
pregações a céu aberto, missões nacionais, serviços especiais, pregações
em teatros, tudo são evidências de que o valor do ‘sistema ofensivo’ é
agora generalizadamente reconhecido por todas as igrejas. Agora nós entendemos
melhor como trabalhar do que entendíamos cem anos atrás. Mas nunca esqueçamos
que o primeiro homem a dar início a estes tipos de atividades foi George
Whitefield. Vamos dar a ele o crédito que merece.
O caráter peculiar da pregação de Whitefield é o próximo assunto que
demanda algumas considerações. Os homens naturalmente desejam saber qual foi o
segredo do seu sucesso sem paralelo. O assunto está envolto em consideráveis
dificuldades, e não é tarefa fácil formar um julgamento correto a seu
respeito. A idéia comum de muitas pessoas de que ele era um mero e comum
metodista exaltado, notável por nada mais a não ser sua grande fluência,
forte doutrina e uma poderosa voz, não suporta uma momentânea investigação.
O Dr. Johnson foi tolo o suficiente para dizer, que ‘ele
vociferava e impressionava, mas não chamava mais atenção do que um charlatão;
e que ele chamava atenção não por fazer melhor do que os
outros, mas porque fazia algo estranho’. Mas
Johnson foi tudo, exceto infalível nas suas opiniões sobre pastores e religião.
Tal teoria não tem validade. Ela contradiz fatos inegáveis.
E
fato que nenhum pregador na Inglaterra jamais obteve tanto sucesso em atrair a
atenção de tão grandes multidões como Whitefield ao pregar constantemente ao
redor de Londres. Nenhum pregador jamais foi tão universalmente popular em cada
país que visitou, Inglaterra, Escócia e América. Nenhum pregador jamais
manteve sua influência tão completamente sobre seus ouvintes como ele o fez
por 34 anos. Sua popularidade nunca desvaneceu. Ela era tão grande no fim dos
seus dias como o foi no início. Onde quer que ele pregasse, os homens deixavam
suas lojas e empregos para reunirem-se ao redor dele, e ouvir como quem ouve
para a eternidade. Só isso já é um grande fato. Obter a atenção das
‘massas’ por um quarto de século, e pregar incessantemente por todo este
tempo é uma evidência de um poder não comum.
Outro
fato, é que a pregação de Whitefield produzia um poderoso efeito em pessoas
de todos os níveis. Ele ganhou a admiração das altas e baixas camadas, dos
ricos assim como dos pobres, dos eruditos assim como dos ignorantes. Se a sua
pregação houvesse sido popular apenas entre os ignorantes e pobres, nós poderíamos
pensar na possibilidade de que havia pouco nela exceto declamação e barulho.
Mas, longe de ser este o caso, ele parece ter sido aceito por um bom número de
nobres e pessoas bem educadas. O Marquês de Lothian, o Conde de Leven, o Conde
de Duchan, o Lord Rae, o Lord Dartmouth, o Lord James A. Gordon, poderiam ser
citados entre os seus mais calorosos admiradores, além de Lady Huntyngdon e uma
grande quantidade de senhoras da Corte.
E
um fato que eminentes críticos e homens de letras, como o Lord Bolingbroke e o
Lord Chesterfield, foram pessoas que se deleitavam em ouvi-lo freqüentemente.
Era reconhecido que mesmo o frio e artificial Chesterfield aquecia-se com a eloqüência
de Whitefield. Bolingbroke disse: ‘Ele
é o homem mais extraordinário do nosso tempo. Ele tem a eloqüência mais
impressionante que jamais ouvi em qualquer pessoa.’ Franklin, o filósofo,
não mediu palavras ao falar dos poderes da sua pregação. Hume, o historiador,
declarou que valia a pena viajar vinte milhas para ouvi-lo.
A verdade é que fatos como estes não podem ser invalidados. Eles derrubam
completamente a teoria de que a pregação de Whitefield não foi nada, exceto
barulho e exaltação. Bolingbroke, Chesterfield, Hume, e Franklin não eram
facilmente enganáveis. Eles não eram juízes insignificantes de eloqüência.
Eles estavam provavelmente entre os críticos mais qualificados de seus dias.
Suas opiniões imparciais e sem preconceito parecem-me suprir uma prova
inquestionável de que deve ter havido algo muito extraordinário a respeito da
pregação de Whitefield. Mas, afinal, a questão permanece sem ser respondida:
qual foi o segredo da popularidade e efetividade sem rival de Whitefield? Eu
admito francamente que, devido à escassez das fontes que possuímos para formar
nosso julgamento, a pergunta é difícil de ser respondida.
A
pessoa que folhear os 75 sermões publicados de autoria de Whitefield, provavelmente
ficará muito desapontada. Ela não verá neles um intelecto imponente ou
profundidade de mente. Não achará neles uma profunda filosofia, nem
pensamentos extraordinários. Mas, deve-se observar, entretanto, que a grande
maioria foi anotada abreviadamente por
repórteres, e publicados sem correção. Estes dignos homens parecem ter feito
seu trabalho muito indiferentemente, e eram evidentemente ignorantes quanto à
pontuação, parágrafos, gramática, e quanto ao Evangelho. A conseqüência
é que muitas passagens nestes 75
sermões são o que o Bispo Latimer chamaria de uma ‘desfiguração’, e
o que nós chamaríamos hoje em dia de uma completa desordem. Não é de admirar
que o pobre Whitefield tenha dito em uma de suas melhores cartas datada de 26 de
setembro de 1769: ‘Eu desejaria que você tivesse advertido contra a publicação de meu
último sermão. Ele não está tal qual eu preguei. Em alguns lugares a publicação
me faz falar com discordância, e até sem sentido. Em outros lugares o sentido
e a conexão são destruídos por parágrafos desconexos, de modo que o todo está
totalmente impróprio para a leitura do público.’
Entretanto, eu me aventuro a dizer ousadamente, que com todas as suas faltas,
os sermões impressos de Whitefield recompensarão sua leitura. O leitor deve
lembrar-se de que eles não foram preparados cuidadosamente para impressão,
como os sermões de Melville ou Bradley, mas foram pessimamente registrados,
paragrafados, e pontuados, devendo lê-los com isto continuamente em sua mente.
Além disso, deve lembrar-se que uma composição em inglês para ser falada a
ouvintes, e uma composição em inglês para leitura privada, são quase que
duas línguas diferentes; de modo que sermões bons para serem pregados são
ruins quando lidos. Lembremo-nos destas duas coisas, e julguemos de acordo, e eu
estaria muito enganado se não viéssemos a encontrar muito o que admirar em
muitos dos sermões de Whitefield. Da minha parte, eu devo dizer claramente que
eles são grandemente subestimados.
Deixe-me
agora destacar o que parece ter sido as características distintivas da pregação
de Whitefield.
Whitefield
pregava um Evangelho singularmente puro. Talvez poucos homens tenham dado aos
seus ouvintes tanto trigo e tão pouco restolho. Ele não se levantava para
falar sobre sua denominação, sua causa, seu interesse ou seu ofício. Ele
estava perpetuamente lhe falando a respeito dos seus pecados, do seu coração,
de Jesus Cristo, do Espírito Santo, da absoluta necessidade de arrependimento,
fé e santidade, do modo como a Bíblia apresenta estes importantes assuntos. ‘Oh, que justiça a de Jesus Cristo!’ Ele sempre dizia: ‘Eu
devo ser desculpado se menciono isso em quase todos os meus sermões.’ Pregação
desse tipo é a pregação que Deus se deleita em honrar. Ela deve ser
preeminentemente uma manifestação da verdade.
A pregação de Whitefield era singularmente lúcida e simples. O que quer
que seus ouvintes pensassem da sua doutrina, não podiam deixar de entender o
que ele queria dizer. Seu estilo de falar era fácil, claro e coloquial. Ele
parecia abominar sentenças longas e complicadas. Ele sempre tinha em vista o
seu alvo e se dirigia diretamente para lá. Ele dificilmente atrapalhava seus
ouvintes com argumentos obscuros e raciocínios intrincados. Afirmativas bíblicas
simples, ilustrações adequadas, e exemplos pertinentes, eram as armas mais
comuns que ele usava. A conseqüência era que seus ouvintes sempre o entendiam.
Ele nunca atirava acima das cabeças dos seus ouvintes. Aí está outro
importante elemento para o sucesso do pregador. Ele deve esforçar-se de todos
os modos para ser entendido. O arcebispo Usher tinha um ditado muito sábio: ‘Fazer coisas simples parecerem difíceis é coisa que qualquer homem
pode fazer, mas fazer coisas difíceis, simples, é a obra de um grande pregador’.
Whitefield
era um pregador singularmente ousado e direto. Ele nunca usava aquela expressão
indefinida ‘nós’, que parece tão peculiar nos nossos púlpitos, e que
apenas deixa a mente do ouvinte em um estado enevoado e confuso. Ele enfrentava
os homens face a face, como alguém que tem uma mensagem de Deus para eles: ‘Eu
vim aqui para lhe falar a respeito da sua alma.’ O resultado era que
muitos dos seus ouvintes costumavam pensar que os seus sermões eram dirigidos
especialmente a eles. Ele não ficava contente como muitos, em apenas insistir
em uma aplicação pobre, como que um apêndice no final de um longo discurso,
pelo contrário, um constante veio de aplicação corria através de todos os
seus sermões. ‘Isto é para você, e isto é para você’. Seus ouvintes nunca
eram deixados sozinhos.
Outra
característica marcante da pregação de Whitefield era o seu singular poder de
descrição. Os árabes têm um provérbio que diz: ‘o
melhor orador é aquele que pode transformar os ouvidos dos homens em olhos.’ Whitefield
parece ter tido uma faculdade peculiar para fazer isto. Ele dramatizava tão
plenamente seu assunto, que parecia fazê-lo mover-se e andar diante dos seus
olhos. Ele costumava traçar um desenho tão vivo das coisas que estava tratando,
que seus ouvintes podiam crer que na verdade as viam e ouviam. ‘Em
uma ocasião,’ diz um de seus biógrafos, ‘Lord
Chesterfield estava entre seus ouvintes. O grande pregador ao descrever a miserável
condição de um pecador não convertido, ilustrou o assunto descrevendo um
mendigo cego. A noite estava escura e o caminho perigoso. O pobre mendicante foi
abandonado pelo seu cachorro próximo da beira de um precipício, e não tinha
nada para ajudá-lo a apalpar seu caminho senão sua bengala. Whitefield
empolgou-se tanto com seu assunto e o descreveu com tal poder gráfico, que todo
o auditório ficou em total silêncio e sem respirar, como se estivesse vendo os
movimentos do pobre velho homem; e finalmente, quando o mendigo estava a ponto
de dar o passo fatal que o faria precipitar-se do despenhadeiro para inevitável
destruição, Lord Chesterfield correu para salvá-lo exclamando em alta voz,
‘Ele caiu. Ele caiu!’ O nobre Lord tinha sido tão inteiramente arrebatado
pelo pregador, que esqueceu-se de que tudo era apenas uma descrição.’
Outra característica dominante da pregação de Whitefield era o seu
tremendo fervor. Um homem pobre e sem educação disse que ‘ele pregava como um leão.’ Ele conseguia mostrar ao povo que
ele pelo menos cria em tudo que estava dizendo, e que o seu coração, alma,
mente, e força, estavam empenhados em fazê-los acreditar nisto também. Os
seus sermões não eram como os disparos vespertinos de canhão em Portsmouth,
um tipo de descarga formal, disparada continuamente, mas que não perturba ninguém.
Eles eram todos cheios de vida e de fogo. Não havia como escapar deles. Dormir
era praticamente impossível. Você tinha que ouvir quer gostasse ou não. Havia
neles uma santa violência que tomava de assalto a sua atenção. Você seria
facilmente conquistado por sua energia antes que tivesse tempo de considerar o
que fazer. Isto, podemos estar certos, era um dos segredos do seu sucesso. Nós
devemos convencer os homens, de que nós mesmos somos sinceros, se quisermos ser
acreditados. A diferença entre um pregador e outro, freqüentemente não está
tanto nas coisas que são ditas, quanto no modo como são ditas.
Foi registrado por um de seus biógrafos que um senhor americano foi ouvi-lo,
pela primeira vez, em conseqüência de um relato que ouvira dos seus poderes de
pregação. O dia estava chuvoso, a congregação comparativamente pequena e o
início do sermão um tanto quanto pesado. Nosso amigo americano começou a
dizer a si mesmo: ‘Este homem não é
nenhum grande prodígio, afinal de contas’. Ele olhou ao redor e percebeu
a congregação tão pouco interessada quanto ele mesmo. Um homem de idade, em
frente do púlpito, havia adormecido. Mas subitamente, Whitefield interrompeu.
Sua expressão mudou. E então exclamou subitamente em um tom alterado: ‘Se
eu tivesse vindo falar a vocês em meu próprio nome, bem que vocês poderiam
descansar seus cotovelos em seus joelhos, e suas cabeças nas mãos e dormir; e
apenas olharem aqui e ali, dizendo:do que este tagarela está falando? Mas eu não
vim em meu próprio nome. Não! Eu vim em nome do Senhor dos Exércitos!’ (então
ele baixou as mãos e os pés com tanta força que fez com que o prédio
tremesse), ‘E eu preciso ser ouvido.’ A congregação assustou-se. O homem
de idade logo acordou. ‘Ah, Ah.” Gritou
Whitefield fixando nele os olhos, ‘eu o
acordei, não foi? Era exatamente o que eu tencionava. Eu não vim aqui para
pregar a troncos e pedras: eu vim a vocês em nome do Senhor dos Exércitos e
preciso e terei uma audiência.’ Os ouvintes foram rapidamente arrancados
de sua apatia. Cada palavra do sermão a partir daí foi ouvida com profunda
atenção, e o senhor americano nunca mais esqueceu o episódio.
Outra característica da pregação de Whitefield que merece uma nota
especial era a enorme carga de emoção e sentimentos que continha. Não era
coisa incomum para ele chorar profusamente no púlpito. Cornelius Winter, que
freqüentemente o acompanhou em suas últimas jornadas, foi tão longe ao ponto
de dizer que dificilmente o presenciara terminar um sermão sem algumas lágrimas.
Mas, não parece ter havido nada de fingimento nisto. Ele se emocionava
intensamente pelas almas diante dele e seus sentimentos encontravam uma saída
nas lágrimas. De todos os ingredientes do seu sucesso, nenhum, eu suspeito, foi
tão poderoso como este. Isto despertava afeições e tocava fontes secretas nos
homens, as quais nenhuma argumentação e demonstração poderiam mover. Isto
suavizava os preconceitos que muitos haviam concebido contra ele. Eles não
podiam odiar o homem que chorava tanto por suas almas. ‘Eu
vim ouvi-lo,’ alguém disse a ele, ‘com
os meus bolsos cheios de pedras, com a intenção de quebrar a sua cabeça; mas
o seu sermão alcançou o melhor de mim e quebrou o meu coração.’ Uma
vez que alguém se torne convencido de que um homem o ama, este ouvirá
alegremente o que ele tem a dizer.
Eu agora pedirei ao leitor que acrescente a esta análise da pregação de
Whitefield o fato de que até por natureza ele possuía vários dos dons mais
raros, os quais habilitam um homem a ser um orador. Seus gestos eram perfeitos - tão
perfeitos que até mesmo Garrick, o famoso ator, o louvava sobremaneira. Sua voz
era tão poderosa quanto seus gestos - tão poderosa que ele podia fazer com que
trinta mil pessoas o ouvissem de uma vez, e ainda assim tão musical e bem
entoada que alguns diziam que ele podia arrancar lágrimas pelo modo como
pronunciava a palavra ‘Mesopotâmia’. Sua
postura no púlpito era tão curiosamente graciosa e fascinante que era dito que
as pessoas que o ouviam, em cinco minutos estavam esquecidas de que ele era
vesgo. Sua fluência e domínio de uma linguagem apropriada eram da mais alta
ordem, inspirando-o sempre a usar a palavra certa e a colocá-la no correto
lugar. Acrescente, eu repito, estes dons às coisas já mencionadas e então
considere se não há o suficiente em nossas mãos para explicar seu poder e
popularidade como pregador.
Da minha parte, não hesito em dizer que acredito que nenhum pregador inglês
jamais possuiu tal combinação de excelentes qualificações como Whitefield.
Alguns, sem dúvida, o superaram em alguns dos seus dons; outros, talvez, o
igualaram em outros. Mas, quanto a uma combinação bem balanceada de alguns dos
mais finos dons que um pregador possa ter, unidos a uma voz, postura, estilo,
gestos e domínio de palavras, Whitefield, eu repito minha opinião, está
sozinho. Eu acredito que nenhum outro pregador inglês, morto ou vivo, jamais o
igualou. E eu suspeito que sempre descobriremos que exatamente na proporção em
que um pregador se aproxima dessa curiosa combinação de raros dons os quais
Whitefield possuía, exatamente nesta proporção eles obtém o que Clarendon
define ser a verdadeira eloqüência - ‘um
estranho poder de se fazer acreditar.’
A vida íntima e o caráter pessoal desse grande herói espiritual do século
passado são um ramo do meu assunto no qual não me demorarei. De fato, não há
necessidade para fazer isso. Ele era um homem singularmente transparente. Não
havia nada sobre ele que requeresse apologia ou explicação. Suas faltas e boas
qualidades eram ambas claras e evidentes como o meio-dia. Portanto, eu me
contentarei em simplesmente destacar as características proeminentes do seu caráter
até onde for possível serem deduzidas de suas cartas e dos relatos dos seus
contemporâneos, e então trazer meu esboço dele a uma conclusão.
Ele era um homem de profunda e sincera humildade. Ninguém pode ler as suas
mil e quatrocentas cartas, publicadas pelo Doutor Gillies sem observar isto.
Repetidas vezes, no próprio apogeu de sua popularidade, nós o encontramos
falando de si mesmo e do seu trabalho nos termos mais baixos. ‘Deus,
tem misericórdia de mim, um pecador’, ele escreve em 11 de setembro de 1753,
‘e dá-me, por amor da Tua infinita misericórdia, um coração humilde,
agradecido e resignado. Eu sou verdadeiramente mais vil do que o mais vil dos
homens, e fico espantado de usares tal miserável como eu’. ‘Que nenhum dos
meus amigos,’ ele escreve em 27 de dezembro de 1753, ‘clame a tal verme indolente, morno e inútil: poupa-te a ti mesmo.
Ao invés disso, estimulem-me, eu suplico, dizendo: acorda, dorminhoco, e começa
a fazer alguma coisa para o teu Deus.’ Linguagem como esta, sem dúvida,
parece tolice e fingimento para o mundo; mas o leitor da Bíblia bem instruído
verá nela a experiência do coração de todos os santos mais brilhantes. E a
linguagem de homens como Baxter, Brainerd e M’Cheyne. E a mesma inclinação
que havia no inspirado Apóstolo Paulo. Aqueles que têm mais luz e graça são
sempre os homens mais humildes.
Ele era um homem de ardente amor por nosso Senhor Jesus Cristo. Este nome
que está ‘acima de todo nome’ destaca-se
incessantemente em toda a sua correspondência. Como um ungüento perfumado, ele
dá um aroma a todas as suas cartas. Ele parece nunca cansar de dizer alguma
coisa a respeito de Jesus. ‘Meu Mestre’
como George Herbert dizia, nunca fica fora de sua mente. Seu amor, Sua expiação,
Seu sangue precioso, Sua justiça, Sua prontidão em receber pecadores, Sua paciência
e maneira meiga de lidar com os santos, são temas que aparecem sempre frescos
diante de seus olhos. Pelo menos neste aspecto, há uma curiosa semelhança
entre ele e aquele glorioso teólogo escocês, Samuel Rutherford.
Ele
era um homem de incansável diligência e labor no que diz respeito nos negócios
de seu Mestre. Seria difícil talvez, encontrar alguém nos anais da Igreja que
trabalhou tão duro por Cristo e se gastou tão plenamente em seu serviço.
Henry Venn, no sermão fúnebre em sua lembrança, pregado em Bath, deu o
seguinte testemunho, ‘Que sinal e prodígio
foi este homem de Deus, no que diz respeito à imensidão dos seus labores! Alguém
não pode senão ficar espantado que a sua estrutura mortal pudesse, pelo espaço
de quase trinta anos, sem interrupção, sustentar o peso deles; pois o que é
mais fatigante á estrutura humana, especialmente na juventude, do que um esforço
longo, contínuo, freqüente e violento dos pulmões? Quem que conheça sua
estrutura pensaria ser possível que uma pessoa pouco acima da idade adulta,
pudesse falar em uma simples semana, e isto durante anos - em geral quarenta
horas, e em muitas semanas, sessenta - e isto para milhares de pessoas; e após
seus labores, ao invés de descansar, poderia elevar orações e intercessões,
com hinos e cânticos espirituais, como costumava fazer, em cada casa à qual
era convidado? A verdade é que, no que diz respeito ao labor, este extraordinário
servo de Deus fez em algumas semanas tanto quanto a maioria daqueles que, embora
se esforçando, consegue fazer no espaço de um ano.
Ele foi até o fim, um homem de eminente auto-negação. Seu estilo de vida
era o mais simples. Ele foi notadamente um exemplo típico de moderação no
comer e beber. Durante toda a sua vida, ele acordava muito cedo. Sua hora
habitual de levantar-se era às quatro horas, tanto no verão como no inverno; e
era igualmente pontual na hora de recolher-se, cerca de dez horas da noite. Um
homem de oração, ele freqüentemente gastava noites inteiras em leitura e devoção.
Cornelius Winter, que freqüentemente dormia no mesmo quarto, diz que ele às
vezes levantava durante a noite com este propósito. Ele ligava muito pouco para
dinheiro, exceto como uma ajuda para a causa de Cristo, e o recusava, quando lhe
era oferecido para seu próprio uso. Uma vez recusou a importância de sete mil
libras. Ele não acumulou fortuna nem estabeleceu uma próspera família. O
pouco dinheiro que ele deixou ao morrer provinha inteiramente de doações de
amigos. O comentário vulgar que o Papa fez a respeito de Lutero, ‘este
animal alemão não ama o ouro’, poderia bem ter sido aplicado a
Whitefield.
Ele
era um homem de notável desinteresse e simplicidade. Ele parecia viver apenas
para dois objetivos: a glória de Deus e a salvação de almas. Ele não tinha
objetivos secundários ocultos. Ele não levantou nenhum grupo de seguidores que
tomassem seu nome. Ele não estabeleceu nenhum sistema denominacional que
adotasse seus próprios escritos como elementos cardinais. Uma expressão sua é
bem característica do homem: ‘Que o
nome de George Whitefield pereça contanto que Cristo seja exaltado’.
Ele era um homem de um espírito singularmente feliz e alegre. Ninguém que
o visse poderia jamais duvidar que ele se deleitava na sua religião. Perseguido
que foi de muitas maneiras por todo o seu ministério - caluniado por alguns,
desprezado por outros, deturpado por falsos irmãos, sofrendo oposição em todo
lugar pelo clero ignorante do seu tempo, preocupado por incessante controvérsia
- sua flexibilidade nunca
falhou. Ele era um cristão eminentemente alegre, cuja própria conduta
recomendava a obra de seu Mestre. Uma venerável senhora de New York, após sua
morte, ao falar das influências através das quais o Espírito ganhou seu coração
para Deus, usou estas notáveis palavras: ‘O
Senhor Whitefield era tão feliz que isso me provocou a tornar-me uma cristã.’
Finalmente, mas não menos importante, ele era um homem de extraordinária
caridade, catolicidade e liberalidade na sua religião. Ele nada conhecia
daquele sentimento tacanho que faz com que alguns homens imaginem que tudo tem
que ser estéril, fora de seus próprios campos, e que sua própria denominação
tem um completo monopólio da verdade e do Céu. Ele amava todos os que amavam o
Senhor Jesus com sinceridade. Ele media a todos com a medida que os anjos usam,
‘professam eles arrependimento para com Deus, fé no nosso Senhor Jesus Cristo
e santidade de vida?’ Se sim, eles eram seus irmãos. Sua alma ligava-se com
estes homens, qualquer que fosse o nome com que fossem chamados. Diferenças
menores eram madeira, palha e restolho para ele. As marcas do Senhor Jesus eram
as únicas marcas que lhe interessavam. Essa catolicidade era mais notável
quando o espírito dos tempos em que viveu é considerado. Até mesmo os
Erskines, na Escócia, queriam que ele não pregasse em nenhuma outra denominação
que não a deles - isto é, a Igreja da Cessessão. Ele perguntou: ‘Por que somente para eles?’ - E
recebeu a incrível resposta que ‘eles
eram o povo do Senhor.’ Isto foi mais do que Whitefield podia suportar.
Ele disse: ‘Se não há nenhum outro povo de Deus senão eles, se todos os outros
são povo do diabo, eles certamente têm mais necessidade de pregação;’ E
ele finalizou informando-os de que ‘se o
próprio Papa lhe cedesse seu púlpito, ele proclamaria alegremente nele a justiça
de Cristo.’ A esta catolicidade de espírito ele aderiu todos os seus dias.
Se outros cristãos o deturpassem, ele os perdoava, e se recusassem trabalhar
com ele, ainda assim ele os amava. Nada pode ser um testemunho mais valioso
contra a intolerância do que o seu pedido, feito pouco antes da sua morte que,
quando morresse, John Wesley fosse convidado para pregar no seu enterro. Wesley
e ele há muito não concordavam sobre pontos calvinistas; mas Whitefield, até
o fim, estava determinado a esquecer as diferenças superficiais, e a considerar
Wesley como Calvino considerou Lutero: ‘Simplesmente
um bom servo de Jesus Cristo.’ Em outra ocasião um severo professor de
religião lhe perguntou ‘se ele pensava
que veria John Wesley no céu?’ ‘Não, senhor,’ foi a sua extraordinária
resposta; ‘eu temo que não. Ele estará
tão próximo do trono, e nós tão distantes, que dificilmente o veremos’.
Longe de mim dizer que o assunto deste capítulo foi um homem sem faltas.
Como todos os santos de Deus, ele foi uma criatura imperfeita. Ele às vezes
errava nos seus julgamentos. Ele freqüentemente tirava conclusões precipitadas
sobre a providência divina, e se enganava, tomando as suas próprias inclinações
como sendo direção de Deus. Ele era freqüentemente apressado, tanto com sua língua
como com sua pena. Ele não hesitava em dizer que o ‘Arcebispo Tillotson não sabia mais do Evangelho do que Maomé.’ Ele
errava em distinguir algumas pessoas como inimigas do Senhor e outras como
amigas do Senhor tão precipitada e positivamente como às vezes fazia. Era
censurável sua atitude de denunciar muitos ministros como ‘fariseus,’
porque não aceitavam a doutrina do novo nascimento. Mas ainda assim, apesar de
tudo que foi dito, não pode haver dúvida de que, no geral, ele era um homem
eminentemente santo, que se auto-negava, e consistente. ‘As faltas do seu caráter,’ diz um escritor americano - ‘eram
como pontos no sol, detectadas sem muita dificuldade por qualquer observador
moderado e cuidadoso que se esforce em procurá-las, mas, para todo propósito
prático, são pontos perdidos numa efulgência geral e afável’. Quão
bom seria para as igrejas dos nossos dias, se Deus lhes desse mais ministros
como o grande evangelista da Inglaterra de cem anos atrás!
Apenas nos resta dizer que aqueles que desejarem conhecer mais a respeito de
Whitefield fariam bem em ler com atenção os sete volumes de suas cartas e
outras publicações, que o Dr. Gillies editou em 1770. Eu estaria muito
enganado se quem fizer isso não for agradavelmente surpreendido com o seu conteúdo.
E motivo de espanto para mim que, dentre tantas reimpressões no século
dezenove, nenhum publicador tenha tentado reimprimir totalmente as obras de
George Whitefield.
Um
pequeno trecho da conclusão de um sermão pregado por Whitefield em Kennington
Common, pode ser interessante para alguns leitores, e pode servir para dar-lhes
uma pálida idéia do estilo do grande pregador. Foi um sermão baseado no texto,
‘Que pensais vós do Cristo?’ (Mt.
22:42).
‘Ó meus
irmãos, meu coração está dilatado para vocês. Eu confio que sinto alguma
coisa daquela escondida mas poderosa presença de Cristo enquanto estou pregando
a vocês. Sim, ela é doce - ela é extraordinariamente reconfortante. Todo o mal que eu desejo a vocês
que sem razão são meus inimigos, é que sintam o que estou sentindo. Acreditem-me,
embora fosse um inferno para minha alma retornar ao estado natural novamente,
ainda assim, eu desejaria trocar de estado com vocês por um tempo, a fim de que
vocês pudessem conhecer o que é ter Cristo habitando em seus corações pela fé.
Não voltem suas costas. Não deixem que o diabo os faça sair correndo. Não
temam a convicção de pecados. Não pensem mal das doutrinas porque pregadas
fora das paredes da igreja. Nosso Senhor, nos dias de Sua carne, pregou em um
monte, em um barco, em um campo, e eu estou persuadido que muitos têm sentido
aqui a Sua graciosa presença. A verdade é que nós falamos do que conhecemos.
Portanto, não rejeitem o reino de Deus, para o mal de si próprios. Sejam sábios
e recebam o nosso testemunho.
‘Eu não posso, e não permitirei que partam. Permaneçam um pouco, e
ponderemos juntos. Por mais levianamente que vocês estimem suas almas, eu sei
que o nosso Senhor coloca nelas um valor indizível. Ele as considerou dignas de
Seu preciosíssimo sangue. Eu rogo a vocês, portanto, ó pecadores, que se
reconciliem com Deus. Eu espero que vocês não temam ser aceitos no Amado. Eis
que Ele chama vocês. Eis, Ele toma a dianteira e segue vocês com sua misericórdia,
e enviou Seus servos às ruas e becos para compeli-los a entrar.
‘Lembrem-se,
portanto, que nesta hora deste dia, neste ano, neste lugar, foi dito a todos o
que deveriam pensar a respeito de Jesus Cristo. Se vocês perecerem agora, não
será por falta de conhecimento. Eu estou livre do sangue de todos vocês. Vocês
não podem dizer que eu tenho pregado condenação. Não podem dizer que eu
tenho, como os pregadores legalistas, requerido que vocês façam tijolos sem
palha. Eu não tenho ordenado que vocês se façam a si mesmos santos e então
venham a Deus. Eu tenho oferecido a salvação a vocês nos termos mais fáceis
que possam desejar. Eu tenho oferecido toda a sabedoria de Cristo, toda a justiça
de Cristo, toda a santificação e eterna redenção de Cristo, se vocês apenas
crerem nEle. Se você disser que não pode crer, diz certo; pois a fé, assim
como todas as outras bênçãos, é dom de Deus. Mas então espere em Deus, e
quem sabe se Ele não terá misericórdia de você’.
‘Por
que não nutrimos mais pensamentos amorosos a respeito de Cristo? Você pensa
que Ele terá misericórdia de outros e não de você? Você não é pecador?
Cristo não veio a este mundo para salvar os pecadores?’
‘Se
você disser que é o maior dos pecadores, eu replico que isso não será
impedimento para a sua salvação. De fato não será, se você, pela fé se
apegar a Cristo. Leia os Evangelhos e veja quão amavelmente Ele se comportava
para com os seus discípulos, os quais O abandonaram e negaram. ‘Vão, digam
aos meus irmãos’, diz Ele. Ele não diz, ‘vão digam àqueles traidores,’
mas, ‘vão, digam aos meus irmãos e a Pedro’. E como se Ele houvesse dito,
‘Vão, digam aos meus irmãos em geral, e a Pedro em particular, que eu
ressuscitei. Oh, confortem seu coração abatido. Digam-lhe que eu estou
reconciliado com ele. Ordenem que ele não chore mais tão amargamente. Porque
apesar de ter Me negado três vezes com juras e imprecações, ainda assim Eu
morri pelos seus pecados; Eu ressuscitei novamente para sua justificação: Eu
gratuitamente perdoei tudo.’ Assim, lento para irar-Se e de grande
benignidade, foi nosso todo misericordioso Sumo Sacerdote. E você pensa que Ele
mudou Sua natureza e esqueceu-Se dos pobres pecadores, agora que foi exaltado à
direita de Deus? Não! Ele é o mesmo ontem, hoje e para sempre; e assentou-Se
ali apenas para interceder por nós’.
‘Venham,
portanto, vocês prostitutas; venham, vocês publicanos; venham, vocês
pecadores abandonados, venham e creiam em Jesus Cristo. Embora o mundo inteiro
os despreze e os expulse, ainda assim Ele não desdenhará tomá-los para Si.
Oh, que amor surpreendente, que amor condescendente! Mesmo vocês, ele não se
envergonhará de chamar Seus irmãos. Como escaparão vocês se negligenciarem
tal oferta gloriosa de salvação? O que não dariam os espíritos condenados
agora nas prisões do inferno, se Cristo lhes fosse tão graciosamente
oferecido? E por que não estamos erguendo nossos olhos em tormentos? Qualquer
pessoa entre esta grande multidão ousa dizer que não merece condenação? Por
que somos deixados, enquanto outros são tomados pela morte? O que é isto senão
um exemplo da livre graça de Deus, e um sinal da Sua boa vontade para conosco?
Deixemos que a bondade de Deus nos
guie ao arrependimento. Oh, haja alegria nos Céus, por alguns de vocês que se
arrependam!’
[1] Este é o prefácio da obra completa “Christian Leaders of the 18th Century” (Grandes Líderes Cristãos do Século 18), de J. C. Ryle, da qual foi retirada esta biografia de George Withefield.
* Traduzido por Paulo R. B. Anglada, a partir de J. C. Ryle, Christian Leaders of 18th. Century (reprint, Edinburgh and Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, 1978), 149-79. Revisado por Cláudio Vilhena e Emir Bemerguy Filho.