Conceitos Fundamentais de Poesia
Parte I - O Verso


Vamos iniciar, a partir deste artigo, uma série de quatro matérias a respeito de estrutura e conceitos fundamentais da poesia, começando pelo verso (primeira parte). Estes mesmos fundamentos, apesar de fazerem parte do currículo de Língua Portuguesa do segundo grau, muitas vezes é "pulado" ou ensinado com pouca ênfase, talvez pelo seu pouco peso em provas de vestibular. Os conceitos fundamentais, entretanto, são de grande utilidade para a melhor compreensão de obras poéticas e estilos de autores e épocas.

Nesta primeira matéria, vamos ver a definição de verso, o ritmo, as sílabas métricas (ou poéticas), crase, elisão, sinalefa, sinérese, diérese, ectlipse, aférese, síncope e apócope. Na próxima edição, veremos a acentuação tônica, cesura, enjambement (cavalgadura), pausas, classificação de poemas de acordo com o número de sílabas e acentuação e versos irregulares. No terceiro artigo, veremos as rimas, suas classificações e os versos brancos. E, finalmente, na última matéria, veremos estrofação, soneto clássico, ritmos e métricas alternados e os poemas modernos. Antes de mais nada, vejamos o que é exatamente um "verso". Para Wolfgang Kayser, o verso "faz de um grupo de unidades menores articulatórias (as sílabas) uma unidade ordenada". Segundo Evanildo Bechara, verso é "a unidade rítmica em cujos limites se acham as unidades de sentido de que se compõe o poema". Já versificação, segundo o mesmo, é "a técnica de fazer versos ou de estudar-lhes os expedientes rítmicos que se constituem". É necessário, neste ponto, diferenciar versificação e poesia. Segundo Bruneau-Heulluy, "a poesia é um dom: nasce-se poeta. A versificação é uma arte: torna-se versejador. Grandes poetas, como Vigny, foram medíocres versejadores. Hábeis versejadores, como Teodoro de Banville, não podem jamais ser chamados de poetas".

Dependendo de cada língua, há diferenças na "unidade rítmica" do verso. Nas línguas românicas (como português, italiano, espanhol etc.), essa unidade se constitui de número fixo de sílabas e acentos. Já nas línguas clássicas (como grego e latim), são unidades de tempo, longas e breves. Vamos nos prender às características pertinentes às línguas românicas, uma vez que é o caso particular que queremos estudar. Basicamente há dois tipos de verso: regular e irregular. A definição do tipo de um verso vai depender do ritmo. Segundo Celso Cunha, "o ritmo é o elemento essencial do verso, pois este caracteriza-se, em última análise, por ser o período rítmico que se agrupa em séries numa composição poética". A partir dessa definição, podemos ver o que se entende por versos regulares e irregulares. Segundo o próprio Celso Cunha, "quando tais períodos rítmicos apresentam o mesmo número de sílabas em todo o poema, a versificação se diz regular. Se não há igualdade silábica entre eles, a versificação é irregular ou livre".

Já sabemos, portanto, que o verso é regular quando apresenta uma unidade rítmica, e, irregular (ou livre), quando não a apresenta. Vejamos, agora, como se define essa "igualdade rítmica". Como dissemos anteriormente, nas línguas românicas, a unidade rítmica se constitui de número fixo de sílabas e acentos.

Comecemos pelas sílabas. Elas não são classificadas como gramaticalmente ocorre, e, sim, como "sílabas poéticas" ou sílabas métricas. A contagem de sílabas no verso, segundo Rocha Lima, se reduz aos seguintes preceitos:

a) quando a última sílaba de uma palavra terminar em vogal e a primeira da palavra seguinte começar por vogal (desde que não sejam tônicas ambas), dá-se a junção delas numa sílaba só; b) os hiatos podem transformar-se em ditongos, e os ditongos (menos freqüentemente) em hiatos.

Outro ponto importante é que o número de sílabas somente é contado até a última sílaba tônica do verso.

Analisemos, então, estes versos de Fernando Pessoa:

"Qual / quer / coi / sa em / mi / nha al / (ma)
Co / me / ça a / se a / le / grar"

Logo notamos que eles se constituem em versos de seis sílabas poéticas. O primeiro verso possui oito sílabas ao todo. A última sílaba de "coisa" e "em", entretanto, contam como uma sílaba apenas; o mesmo acontece com a última sílaba de "minha" e a primeira de "alma"; por último, não se considera a sílaba "ma", no final do primeiro verso, já que a última tônica é "al". As mesmas observações podem ser feitas para o segundo verso. Neste caso, porém, a última sílaba tônica coincide com a última sílaba métrica.

Denomina-se crase o encontro de duas vogais átonas iguais. Por exemplo, em "minha alma", houve o encontro de dois "a", tendo como resultado mi-nhal-ma. O nome elisão se dá quando, no encontro de duas vogais de naturezas diferentes, uma prevalecer sobre a outra. Por exemplo, em "coisa em", há a fusão entre o "a" e o "e", prevalecendo o último, originando coi-sem (nota: dependo da pronúncia regional, neste caso pode se formar um ditongo "ái", originando coi-sáim). Quando se forma um ditongo pela fusão de duas vogais diferentes, temos a sinalefa. No segundo verso, por exemplo, em "se alegrar", a fusão do "e" com o "a" forma o ditongo "iá", em siá-le-grar.

Vejamos, agora, os seguintes versos de Tomás Antônio Gonzaga:

"As / gló / rias / que / vêm / tar / de / já / vêm / fri / (as);
E / po / de en / fim / mu / dar- / se a / nos / sa es / tre / (la)."

No terceiro verso, acontece um fenômeno chamado sinérese, que é a transformação de um hiato em ditongo. A palavra "glórias" é, gramaticalmente, trissilábica. Neste verso, entretanto, o hiato "i-a" vira um ditongo e a palavra passa a ter duas sílabas. Ao fenômeno inverso (ou seja, a transformação de um ditongo em hiato) dá-se o nome de diérese, recurso muito menos comum que o anterior. Como neste verso de Machado de Assis, em que o ditongo "éo" de "auréola" vira um hiato:

"Pe / sa- / me es / ta / bri / lhan / te au / ré / o / la / de / nu / (me)..."

Há, ainda, a ectlipse, que, segundo a definição de Evanildo Bechara, é "a supressão da ressonância nasal de uma vogal final de vocábulo para facilitar a sinérese ou a crase com a vogal contígua". Geralmente este recurso ocorre entre a preposição "com" e os artigos definidos ("a", "as", "o", "os" etc.). Como exemplo, podemos ver este verso de Gregório de Matos, no qual ocorre a ectlipse entre "com" e "a", originando "co'a":

"que en / tran / do / co'a / ve / la / chei / (a)"

Outros recursos importantes são a aférese, a síncope e a apócope. Estes nada mais são que supressão de sons no início, meio e fim da palavra, respectivamente. Vejamos estes exemplos:

"'Sta / mos / em / ple / no / mar... / A / brin / do as / ve / (las)" (Castro Alves)
"Co / mo / c'ro / a / so / ber / ba. / Ho / mem / su / bli / (me)" (Álvares de Azevedo)
"Ar / tis / ta / cor / ta o / már / mor / de / Car / ra / (ra)" (Castro Alves).

Nos quais podemos notar a supressão de sons das palavras "Estamos", "coroa" e "mármore", respectivamente, originando "'stamos", "c'roa" e "mármor".

Na próxima edição continuaremos com o estudo do verso, como dissemos anteriormente, com enfoque à acentuação tônica, cesura, enjambement (cavalgadura), pausas, classificação de poemas de acordo com o número de sílabas e acentuação e versos irregulares.



BIBLIOGRAFIA

BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 31a ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1987.

COUTINHO, Afrânio. Machado de Assis - Obra Completa. Volume III. 3a ed., Rio de Janeiro, Companhia Aguilar Editora, 1973.

CUNHA, Celso e CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984.

DIMAS, Antônio (org.). Literatura Comentada: Gregório de Matos. São Paulo, Editora Abril, 1980.

GALHOZ, Maria Aliete (org.). Fernando Pessoa - Obra Poética. 2a ed., Rio de Janeiro, Companhia Aguilar Editora, 1965.

GONZAGA, Tomás Antonio. Marília de Dirceo. Ed. fac-similar, Rio de Janeiro, 1995.

HELLER, Bábara (org.) et alli. Literatura Comentada: Álvares de Azevedo. São Paulo, Editora Abril, 1982.

KAYSER, Wolfgang. Análise e Interpretação da Obra Literária. 6a ed., Coimbra, Arménio Amado Editor, 1976.

LAJOLO, Marisa e CAMPEDELLI, Samira (org.). Literatura Comentada: Castro Alves. São Paulo, Editora Abril, 1980.

LIMA, Rocha. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. 29a ed., Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1988.



Pedro Demasi
demasi@centroin.com.br



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