EXPANSÃO URBANA DA CIDADE DE SÃO PAULO

E A SEGREGAÇÃO SÓCIO-ESPACIAL DURANTE O PERÍODO DE 1850 A 1992

Laerte Moreira dos Santos*

 

1. INTRODUÇÃO

1.1 O que é a segregação sócio-espacial

Os estudiosos chamam de segregação sócio-espacial o movimento de separação das classes sociais no espaço urbano.

Observemos as nossas cidades de hoje. Um simples olhar, até mesmo superficial, revela que as classes sociais ocupam lugares, regiões distintas na cidade.

No Rio de Janeiro a população de classe média para cima mora na zona sul e da classe média para baixo mora na zona norte. Essa separação era diferente no século passado. Foi no decorrer do século XX que esta segregação se firmou. Há três ou quatro décadas atrás havia muito mais famílias aristocráticas morando na Zona Norte (Tijuca, São Cristovão) do que há hoje.

"Em São Paulo cada vez mais as classes média e acima da média se concentram no quadrante sudoeste da cidade. As classes baixas ocupam outras regiões."

"A alta burguesia sempre se localizou neste quadrante desde o momento em que no século passado produziu o seu primeiro bairro exclusivo que foi o de "Campos Elíseos".

"O quadrante sudoeste de São Paulo é a região da cidade que vai desde o trecho sul da linha norte-sul do metrô até o eixo da Av. São João/Av. Francisco Matarazzo. Ali estão as avenidas 23 de maio, Washington Luiz, Santo Amaro, 9 de Julho, Ibirapuera, Rebouças, Sumaré, Bandeirantes, etc. (O que todo cidadão precisa saber sobre habitação - pág. 90)

Quanto à classe média observamos que há algumas décadas atrás ela estava. mais concentrada nas zonas leste, norte e no ABC. Hoje está mais concentrada no quadrante sudoeste.

Vejamos, por exemplo, a sua participação na zona leste. O Brás até os anos 50 se destacava pelo comércio e serviços de tal forma que atendia toda zona leste. Pois bem, a presença das classes média e média alta neste bairro era bem maior do que hoje. O alto padrão do comércio e serviços do Brás atestava esta presença.

"Ali estavam teatros, boas confeitarias e restaurantes, filias das principais lojas do centro e as matrizes de algumas das maiores lojas da cidade como as Lojas Pirani - 'A Gigante do Brás' - e a Eletroradiobrás, e ainda os maiores cinemas de São Paulo, como o Universo, o Piratininga e o Oberdan. Nesse bairro estava a maioria das cantinas italianas de são Paulo e para lá é que iam as famílias dos Jardins, de Higienópolis ou do Pacaembu, quando queriam comer boa comida italiana. Quase não havia cantinas italianas na Bela vista até o início dos anos 50. Antes da década de 40 esse bairro era conhecido pelos seus cortiços, não pelas suas cantinas. Vários dos melhores médicos de São Paulo tinham dois consultórios: um no centro da cidade e outro no Brás; neste, atendiam as famílias de classe média e média alta que moravam na zona leste" (op. cit. pág. 92)

Hoje tudo mudou: o comércio do Brás é pobre, refletindo o poder aquisitivo da população que aí vive. A classe média a partir da década de 50 se retirou para o quadrante sudoeste.

Quanto à alta burguesia sua concentração no quadrante sudoeste é mais acentuada. Desde 1870 ocupa tal quadrante. Começou ocupando o loteamento de "Campos Elíseos". Depois foi ocupando a V. Buarque/Sta Cecília e Higienópolis(1890), Av. Paulista (em 1891), Jardim América(1922); J. Europa - Alto de Pinheiros - Pacaembu e Alto da Lapa (anos 30 e 40); Sumarezinho - Cidade Jardim - Chácara flora - Morumbi (anos 50 e 60); Granja Viana (anos 70).

Quanto à classe baixa observamos que nas primeiras décadas deste século não se encontrava tão distante das classes mais abastadas. Vivia nos chamados bairros operários: Pari, Brás, Moóca, Belenzinho, Bom Retiro, etc..

Porém a partir do fim da década de 40 inicia-se todo um movimento de concentração da classe baixa nas regiões periféricas da cidade de São Paulo.

O que determina esta segregação? É o que pretendemos responder a seguir.

 

1.2 A terra urbana e a função social da propriedade

O fator determinante para explicar a segregação é o preço da terra. As melhores terras tem um preço superior às das piores. É claro que as classes de poder aquisitivo mais elevado vão ocupar as melhores terras e as classes baixas as piores.

Mas o que torna um pedaço da terra urbana melhor do que outra e portanto com uma variação nos preços?

Dois fatores são essenciais na valorização da terra urbana: em primeiro lugar a localização e em segundo lugar os serviços públicos.

A localização de um terreno urbano refere-se à sua acessibilidade a todos os demais pontos da cidade, especialmente a pontos valorizados.

É o fator principal, porque supondo que dois terrenos sejam beneficiados pelos mesmos serviços públicos nem por isso tem o mesmo preço.

Porém os serviços públicos também influenciam e bastante no preço da terra urbana.

"A diferença entre o preço do terreno dos jardins de São Paulo face aos bairros periféricos da cidade é antes de mais nada o superequipamento de um e a falta da infra-estrutura de outro." (O que é cidade - Raquel Rolnik, pág. 64).

Por conta disto entram em cena os agentes imobiliários, que se aproveitando destes fatores especulam com o preço da terra.

1.3 Como acontece a especulação imobiliária?

Uma das formas é a retenção de lotes em determinado loteamento.

"Vende-se os lotes pior localizados para em seguida gradativamente e a medida que o loteamento vai sendo ocupado, colocar-se os demais à venda. A simples ocupação de alguns já faz aumentar o preço dos demais lotes, valorizando o loteamento. É comum também deixar-se lotes estrategicamente localizados para a instalação de serviços e comércio de abastecimento diário - padarias, açougues, farmácias, etc. - ou então os conjuntos comerciais. Estes lotes obviamente terão seu preço elevado em relação aos residenciais porque visam a conquista de um mercado que se amplia e se consolida."

"Uma outra, forma de atuação da especulação imobiliária" refere-se ao loteamento de glebas, que via de regra consiste em não fazer um loteamento vizinho ao já existente, mas deixa-se uma área vazia entre dois loteamentos. Esta segunda maneira é mais difícil de ser concretizada se as glebas não fizerem parte de um monopólio de terras"(Moradia nas Cidades Brasileiras - Arlete Moysés Rodrigues pág. 21 e 22).

Na maioria das vezes as "melhorias" em determinado loteamento acontece através da luta dos moradores. Porém a vinda destes serviços públicos aumenta o preço da terra e tal fato beneficiará os especuladores.

Os trabalhadores "não puderam pagar por estes serviços, lutam para consegui-los, inclusive até perdem vários dias de trabalho remunerado, e elevam o preço da terra, que será apropriada por outros" (Op. Cit. Pág. 22).

Então fica perfeitamente claro que a localização, enquanto acessibilidade, como também os serviços públicos, são produzidos pela sociedade. São fruto de um trabalho social. Os cidadãos contribuem para esta produção seja pelo pagamento direto ou indireto de taxas e impostos, seja pela produção da cidade, seja pela sua luta que leva a conquistas de "melhorias" na sua região

Porém há uma apropriação privada deste fruto via especulação imobiliária.

"A propriedade privada da terra funciona assim como um maravilhoso canudinho através do qual os proprietários fundiários sugam o suco representado pelo valor do trabalho de toda a sociedade, despendido na produção da cidade.... Nenhum malabarismo da ideologia burguesa conseguiu até agora fazer alguém acreditar que a valorização real da terra urbana (excluídos os edifícios e eventuais melhorias) decorre do trabalho de seu proprietário, ou seja, decorre do trabalho daquele para cujo bolso vai essa mesma valorização" (O que todo cidadão precisa saber sobre Habitação - pág. 117 e 118).

E aqui entramos na questão da função social da propriedade. Para aqueles que encaram o direito de propriedade como algo absoluto, não admitindo a função social da propriedade, é oportuno lembrar que a atual Constituição Brasileira prevê até a desapropriação no caso de terras urbanas que não cumpram a sua função social.

Para concluir transcrevo um trecho da declaração do Fórum "Habitat", nome que recebeu uma conferência da ONU (insuspeita portanto) sobre assentamentos humanos, realizada em Vancouver, Canadá, em 1976:

"A terra ar por sua natureza única e pelo papel crucial que desempenha nos assentamentos humanos, não pode ser tratada como um patrimônio qualquer controlado pelos indivíduos a sujeito às ineficiências e pressões do mercado. A propriedade privada da terra é também um dos principais instrumentos de acumulação e concentração de riqueza, contribuindo portanto para a injustiça social; sem controle, ela pode tornar-se um obstáculo sério ao Planejamento a à implementação de Programas de urbanização. A justiça social, a renovação e o desenvolvimento urbanos, a habitação decente e boas condições de saúde para o povo só podem ser conseguidos se a terra for usada segundo os interesses da sociedade como um todo". (op. Cit. pág. 120)

2. Síntese histórica da expansão urbana de São Paulo e da segregação sócio-espacial

2.1 De 1850 até 1930

Até 1850 a cidade de São Paulo estava pouco expandida. Concentrava-se no chamado "triângulo". Praticamente não havia segregação: os segmentos sociais da época se concentravam nesta região.

Toda atividade política, social, cultural e religiosa se concentrava neste espaço. Três ruas formavam o "triângulo": a rua Direita de Santo Antônio (hoje Rua direita), a Rua do Rosário (mais tarde Imperatriz e hoje XV de novembro) e a Rua Direita de São Bento (hoje Rua são Bento). Havia aí o convento de São Bento e do Carmo, convento e Academia de são Francisco e Pátio do Colégio onde se localizava o Palácio do Governo, a Assembléia Provincial, o Correio e as repartições Fiscais.

O comércio também se destacava embora aparecesse com menor intensidade nas principais saídas da cidade: Rua Santo amaro, consolação, Sete de Abril, Ladeira de são João, Liberdade e Brás. O então Largo do Piques (Ladeira da memória) era ponto de reunião de mercadores e tropeiros. O largo do Bexiga (hoje Praça das Bandeiras) era o ponto de convergência de carros de boi vindos de Santo Amaro carregados de madeira e pedra para construção.

É importante lembrar que no Largo do Piques, junto ao obelisco do Piques (1814), realizavam-se uma vez por semana concorridos leilões de escravos. Este largo era um importante centro de comércio de fazendas, calçados e couros, sempre movimentado graças à presença de caipiras, vindos de Santo Amaro e Pinheiros.

No Chá e em outras áreas muito próximas ao centro ainda se caçavam perdizes, cabritos e até pobres escravos fugidos que se aquilombavam em suas barrocas.

São Paulo tinha nesta época 20 mil habitantes. Sendo que 1/3 constituídos de escravos. Casas dando diretamente para a rua. A vida pública não tinha ainda se afastado das ruas como vai acontecer em fins do século XIX em diante. É nas ruas, nos largos que se dá a vida pública. Porém somente os homens freqüentavam este espaço público. As mulheres eram obrigadas a ficar reclusas em casa. Os escravos libertos ocupavam as ruas com as suas quitandas e cangaias. Todo serviço doméstico e urbano era feito por escravos, inclusive o transporte de matérias fecais.

São Paulo ainda era iluminado por lampiões com azeite de mamona ou de peixe que apenas forneciam uma iluminação pálida deixando a cidade praticamente às escuras.

Havia muitas chácaras ao redor: Santa Efigênia, Bom Retiro, Brás, consolação, Liberdade, Cambuci, Móoca, Pari, Barra Funda, Água Branca, Higienópolis, Vila Buarque. A zona rural se misturava com a zona urbana portanto.

A taipa predominava como sistema construtivo. Sendo a cidade chamada por um viajante inglês de "Mud city" - cidade de barro.

O abastecimento de água era feito ainda pelos chafarizes. Estes viviam danificados, com água infiltrada de sujeira e quase sempre havia falta de água por causa dos encanamentos deficientes. Muitos moradores eram obrigados a comprar água em barris vendida de porta em porta pelos "aguadeiros".

A polícia, criada em 1830, era dirigida ainda contra escravos fugidos e aquilombados.

Não havia corpo de bombeiros. Os incêndios eram enfrentados pela polícia e pela população com o auxílio dos "aguadeiros".

A coleta de lixo (feita por escravos) era muito precária. Somente em 1854 a câmara colocou carroças de limpeza que depositavam o lixo na Várzea do Carmo.

Havia muitas epidemias por causa do pouco asseio da cidade principalmente varíola. Em 1858 a cidade chegou a ficar quase deserta. Havia a febre tifóide, lepra, etc.

Conclusão: São Paulo em 1850 (meados do século XIX) era uma cidade ainda muito provinciana. A zona propriamente urbana se restringia ao triângulo. Não havia praticamente segregação sócio-espacial.

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Porém de 1870 em diante a cidade passará por grandes modificações que vão lhe dar uma nova configuração. A cidade se expande. Ultrapassa o Vale do Anhangabaú. As classes sociais começam a se separar no espaço urbano. Acentua-se a segregação sócio-espacial.

Quais as causas dessa expansão, da acentuação da segregação sócio-espacial?

1- O surto cafeeiro no oeste Paulista:

- Com certeza a expansão cafeeira no chamado "Oeste Paulista" foi o principal fator, particularmente em fins do século XIX. Como se explicita esta influência?

1.1 A expansão cafeeira se dá sob o ritmo da ferrovia. A partir de fins do século XIX são implantadas as primeiras ferrovias paulistas com o objetivo de escoar a produção cafeeira do Oeste:

- The S. Paulo Railway Co. (1868) - ligava Jundiaí a Santos

- Cia Viação Paulista (1872) - ligava Sorocaba a São Paulo

- Araraquara (1901) - visava escoar o café produzido na porção central e norte do Estado de São Paulo.

- Cia Mogiana (1872) - iniciava-se na cidade de Campinas e objetivava escoar o café produzido no eixo nordeste do Estado de São Paulo.

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Estes caminhos ferroviários de penetração no interior da província convergiam todos para Santos por onde deveria se escoar a produção do café. A principal estrada de ferro era a "The S. Paulo Railway Co.", pois era a única a levar o café até Santos.

"E permaneceu por mais de oitenta anos a monopolizadora dos transportes ferroviários para a faixa marítima. Somente na década de 1930 foi que um ramal da Sorocabana veio tirar a economia paulista da dependência absoluta dos planos inclinados da Serra do mar." (Café e Ferrovias, Odilon Nogueira de Matos, pág. 93)

Então necessariamente o café para chegar até Santos tinha que ser transportado por esta estrada de ferro. Esta passa pela cidade de São Paulo (passagem obrigatória). Isto amplia a função de São Paulo como entreposto comercial. Agora a cidade de São Paulo se coloca entre o Oeste e Santos transformando-se no Centro econômico da Província polarizando as atividades comerciais ligadas à exportação do café.

Dentre estas atividades comerciais ligadas à exportação do café se destaca o seu financiamento. Este era feito pelos Bancos e pelas casas comissárias. Em 1873 São Paulo tinha apenas 4 bancos. Em 1889 passou a ter 5 bancos, além de 2 sucursais de bancos estrangeiros (ingleses).

"Tudo indica que os bancos, surgidos principalmente para fazer face às necessidades do desenvolvimento da lavoura de café, decidiram estabelecer suas matrizes na cidade de São Paulo porque esta era a Capital da Província (desde 1822). O negócio dependia, como ainda depende, em alto grau, da política econômica do governo" (Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana, p. 33).

"Criam-se laços muito estreitos entre o negócio bancário e o do café. Por outro lado, fazendeiros entrarão para o negócio bancário, tornar-se-ão fundadores e diretores de bancos" (op. cit. - pág. 33)

1.2 Outro fator, proveniente do café, foi o fato de grande parte da burguesia cafeeira se mudar para a cidade não somente para ficar mais perto dos seus negócios realizados nela, mas também porque a cidade propiciava condições de civilidade e de modernidade que a aproximava mais dos padrões e valores culturais europeus.

"A vinda dos fazendeiros explica, em parte, o aumento demográfico da cidade entre 1872 e 1886. Novos bairros residenciais se abrem para os lados da Av. Liberdade, em direção a Santo amaro. Chácaras são loteadas e novas áreas urbanizadas nos Campos Elíseos e em Higienópolis. A especulação imobiliária campeia, destacando-se o magnífico negócio feito por F. Glette, que revendeu a gleba adquirida nos Campos Elíseos com 800% de lucro! "(Paul Singer, op. cit. Pág. 36).

Para manter a burguesia cafeeira aqui os diversos governos embelezaram a cidade (novas ruas e avenidas ligando o centro aos bairros da elite como Higienópolis. Obras como o Viaduto do Chá - 1892). A sua presença favorece muito o comércio, o setor de serviços, o artesanato e mesmo certos ramos da indústria leve que se desenvolvem.

1.3 Outro fator ligado ao café foi a vinda de muitos imigrantes a partir de fins do século passado para trabalhar nas fazendas de café do "Oeste Paulista". Os contratos eram feitos na cidade na chamada "Hospedaria dos Imigrantes", no Brás. (foi construída pelo Visconde de Parnaíba, em 1888). Esta hospedaria contribuiu indiretamente para a evolução da vida comercial da área central da capital paulista.

"As cidade do interior eram ainda mal aprovisionadas, para que os plantadores ali pudessem encontrar o material, o vestuário e os produtos alimentícios de que tinham necessidade. Assim as viagens a São Paulo eram aproveitadas para, ao mesmo tempo em que se recrutava a mão e obra, comprar o que faltava. Tornaram-se fregueses regulares dos comerciantes da capital". (Monbeig, Pierre, "O crescimento da cidade de São Paulo", 1953 - citado por Fernando Furquim em trabalho mimeografado com o título "Do Capão Redondo a Campos Elíseos")

Além disso muitos imigrantes acabam ficando aqui. Outros que vão para as fazendas no "Oeste Paulista" terminam por migrar para São Paulo devido às baixas remunerações , impossibilidade de reunir um capital que permitisse comprar terras.

Graças a estes imigrantes a população passou de 28 mil habitantes em 1875 a 200 mil no limiar do século XX. Como consequência temos o reforço à expansão física da cidade, incremento do comércio e da indústria nascente que agora vai ter um grande contingente de mão-de-obra.

1.4 A expansão cafeeira no "Oeste Paulista" foi também responsável pela ampliação dos serviços públicos na capital.

"Os serviços públicos da Capital eram financiados, em grande parte pelo erário provincial, depois estadual. Ora o café fez aumentar bastante a receita provincial de São Paulo, a qual em 1836 não passa de 292 contos, alcançando 489 contos em 1851, mas saltando para 1.420 contos em 1871, para 2.506 em 1876, para 3.520 em 1881 e para 5.700 contos em 1886. Em 15 anos, de 1836 a 1851 a receita paulista aumentou de 68%; nos 15 anos de 1871 a 1886 de maior surto cafeeiro, o crescimento da receita foi de 300%." (Paul Singer, op. Cit. , pág. 39)

Isto vai favorecer a capital que vai dispor de vários serviços públicos que não poderiam ser financiados exclusivamente pelas receitas municipais (lembremo-nos que em 1887 estas receitas não passavam de 337 contos).

Vamos exemplificar: em 1872, a iluminação pública passou a ser feita por lâmpadas a gás, em vez de querosene. O serviço telefônico se iniciou em 1884. O calçamento de ruas foi providenciado, expropriaram-se terrenos e velhos caminhos de acesso à cidade foram alargados, facilitando-se a circulação no interior da cidade. No ano de 1877 surge, com capitais particulares, a "Companhia Cantareira de Água e Esgoto", que dotou São Paulo do melhor serviço de águas e esgotos dos Brasil, na época. Esta é substituída em 1903 pela ERA - "Repartição de Águas e Esgotos", sob a administração da prefeitura. O serviço de bombeiros é de 1888.

O serviço de bondes (bondes puxados a burro) é de 1872. Mas tarde, em 1901, substitui-se os bondes puxados por burro por elétricos.

Outro serviço púbico, importante para a industrialização, e que pode também ser considerado como resultado indireto do surto cafeeiro, foi o da energia elétrica.

2. Outro fator que colaborou para a expansão de São Paulo e para a segregação sócio-espacial foi a industrialização. Esta se destaca no início do século XX. Apesar de não ser propriamente um subproduto da expansão cafeeira ela se deve às conseqüências indiretas do surto cafeeiro. Graças a ele foram constituídos mercados de fatores (de capital e de trabalho), foi construído um amplo sistema de transporte (ferroviário) e se formaram aglomerações urbanas, que fornecem mão de obra e mercado interno para a indústria.

3. Outros fatores responsáveis pela expansão urbana e de modo particular para a segregação sócio-espacial foram:

3.1 Intensificação da especulação imobiliária: com a falência da Casa Bancária de Mauá em 1875, a burguesia paulistana passou a optar pela especulação imobiliária em detrimento de outros tipos de investimento. A compra de terras se intensifica. É dessa época o surgimento de uma nova modalidade de ocupação do espaço urbano: o LOTEAMENTO. Isto reforça a segregação sócio-espacial. O preço da terra vai aumentar como nunca.

3.2 Lei de Terras: esta lei (de 1850) cujo projeto foi elaborado pelo fazendeiro e Senador vitalício do Império Nicolau Vergueiro, atendia aos interesses dos fazendeiros já que ela visou garantir mão-de-obra para as fazendas. Esta lei definia que todas as terras devolutas eram propriedade do Estado e que sua ocupação se sujeitaria à compra e venda. Isto foi condição para o assalariamento, impedindo o acesso á terra ("de 1822 a 1850 a terra era livre e o trabalhador cativo. A partir de 1850 a terra se torna cativa e o trabalhador livre").

Esta lei teve repercussões na zona urbana. A terra que era bastante barata agora se torna cada vez mais cara. É claro que as piores terras vão ficar com os trabalhadores enquanto a elite vai ocupar as melhores.

3.3 Bondes elétricos: foram introduzidos pela Light em 1901. De 1901 a 1912 o acréscimo na extensão das linhas de bondes elétricos da Light foi de 188.700 metros, com um média anual de ampliação de 15.725 metros.

"Pode-se imaginar a valorização acrescida aos terrenos nas áreas servidas pelos bondes, pois os preços das terras nas extremidades da cidade já tinham triplicado no início do século, refletindo a expansão incontida que caracterizou o período." (História e Energia - a chegada da Light/revista- Departamento de patrimônio Histórico - Eletropaulo - 1986 - SP)

O envolvimento da Light com a especulação imobiliária fica evidenciado quando se sabe que ela costumava recusar pedidos que iriam beneficiar a população operária. Mas sempre estendia suas linhas de bondes para regiões que seriam ocupadas pela classe dominante especialmente para os Jardins, loteados pela "City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited". As ligações da Cia City com a Light são evidentes. Parte dos Conselheiros da Light faziam parte também do Comitê Administrativo da City. Assim, os loteamentos da City a partir de 1915 seriam beneficiados por serviços de infra-estrutura, especialmente os serviços de bondes e iluminação.

"A Light era uma empresa oligopolista moderna e não podia fechar os olhos ao mercado imobiliário. Numa carta de Mr. Walmsley a Alexander Mackenzie (1º presidente da Light) em 1909, se lê: "Acho que a propriedade de Pinheiros será valorizada nos próximos anos e a Cia poderia fazer os investimentos e alugar para o Clube de Golfe. Tenho certeza que o retorno do investimento será bom quanto necessário." (op. Cit.)

Tal fato evidencia o interesse especulador da Light: num primeiro momento, a Light implantava pequenos trechos de linhas, provocando uma demanda por imóveis e a conseqüente valorização da área. Em seguida, completava a linha. Os terrenos adquiridos por ela valorizavam-se.

"Sabe-se que a Light possuía terrenos em vários pontos da cidade: Avenida Celso Garcia, Rua Augusta, Av. São João, Rua Major Sertório, Rua Lavapés, Av. Independência. R. Barão de Campinas, Alameda Glette, Rua Barão de Limeira, Rua Imigrantes, Rua Helvetia, Rua José de Alencar, Rua Alfândega, além de áreas desapropriadas às margens dos rios Tietê e Pinheiros. Pode-se considerar que até mesmo a compra do Teatro São José, efetuada pela Light em 1919 para sua futura sede reflete a participação da Companhia nos negócios imobiliários, a medida que a região da Rua Xavier de Toledo, do viaduto do Chá e da Rua Formosa passaria posteriormente a representar o novo ponto nevrálgico da cidade." (op. Cit.)

Assim podemos concluir que tanto os bondes como os imóveis da Light se tornaram instrumento de especulação imobiliária. A Light foi responsável por uma ocupação e expansão da cidade que levou em conta os interesses privados e não o interesse público.

O aumento do preço da terra urbana decorrente desta ação dificulta o acesso às terras mais centrais por parte dos trabalhadores.

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Como a cidade se apresenta fisicamente tendo em conta todos estes fatores responsáveis pela sua expansão e pela segregação sócio-espacial?

O antigo triângulo perdeu sua função residencial e concentrou as atividades de comércio, administrativas, religiosas e de lazer. Se tornou a Av. Paulista de hoje. Ali estavam os bancos, lojas, café, restaurantes, hotéis, teatros e cine-teatros ao lado das antigas igrejas (Igreja do Colégio, Sé, São Gonçalo, São Francisco, Santo Antônio, Misericórdia, Rosário, São Bento, Boa Morte, Carmo).

Os velhos sobrados do "triângulo" onde residiam os grandes comerciantes e fazendeiros de café até 1880-1890 se deterioraram ou foram transformados em casas comerciais ou cederam lugar a novas construções. A elite paulista aos poucos foi ocupando o quadrante sudoeste da cidade. Primeiro desceu do centro (Triângulo) em direção ao norte até a Estação da Luz. Ocupou a Rua Mauá (na época Rua da Estação) e outra ruas de Santa Efigênia como Rua Alegre (atual Brigadeiro Tobias), Rua Timbiras, Aurora, Florêncio de Abreu, etc. onde se instalou com suas residências construídas de acordo com um modelo de arquitetura européia. E continuou a sua caminhada rumo ao quadrante sudoeste. Passou ainda por "Campos Elíseos", o primeiro bairro feito exclusivamente para a elite cafeeira e que resultou de um loteamento feito pelos especuladores imobiliários Frederico Glette e Victor Nothmann (1880).

Mantendo o seu deslocamento chega à região de Higienópolis, V. Buarque, Santa Cecília. Aí Martinho Burchard no final da década de 1880 abriu o bairro de Higienópolis (foi o segundo bairro aristocrático de São Paulo).

Mas a caminhada da elite continua. Chega na atual Avenida Paulista. Porém a progressão cafeeira se interrompera. Agora as novas fortunas saem da indústria e do comércio quase todo em mãos de estrangeiros: a Av. Paulista (de 1891) será o bairro residencial dos milionários desta nova fase da economia paulista.

Após 1910 outros bairros da burguesia surgiram: os chamados jardins: Jardim América, Jardim Paulista, Jardim Europa (este surgido mais recentemente).

Ao mesmo tempo começaram a surgir os bairros operários e industriais: formaram-se nas terras mais baixas das várzeas dos rios Tietê e Tamanduatei. Esta ocupação foi possível porque o custo da terra era inferior ao de outras regiões. Além do mais interessava às indústrias se estabelecerem perto das ferrovias. Surgiram então os seguintes bairros: Pari, Brás, Moóca, Ipiranga, Vila Prudente, Belenzinho, Bom Retiro, Barra funda, Água Branca, Lapa.

Todos estes bairros, da elite e dos operários, surgiram de loteamentos feitos em antigas chácaras.

"Com a proclamação da república quase todos os donos de chácaras da Santa Efigênia, Bom Retiro, Brás, consolação, Liberdade e Cambuci mandaram abrir ruas, avenidas, alamedas e largos em suas terras. Não só desses bairros, podia se dizer. Mas também do Higienópolis, Av. Paulista, Moóca, Pari, Ipiranga, Barra funda e Água Branca, onde enormes áreas descampadas foram recebendo arruamento e loteação. "A chácara do General José Arouche de Toledo Rendon tinha sua sede em um casarão da rua de Santa Isabel e se estendia primitivamente da Rua da Alegria (Sebastião Pereira) até o beco do Mata fome (Rua Araújo). Mais tarde pertenceu a Rego Freitas e em 1894 foi vendida a um sindicato de capitalistas abrindo-se então em suas terras as Ruas Bento Freitas, Rego Freitas, Amaral Gurgel, Cesário Mota, vila Nova, Marques de Itu, General Jardim, Major Sertório e Santa Isabel - todo o bairro de Vila Buarque, afinal de contas.' (Ernani Silva Bruno, "História e Tradições da Cidade de São Paulo" - vol. III - pág. 1027)

"A enorme chácara das Palmeiras - que ainda em 1872 tinha casa grande, senzalas, armazéns, cocheiras, plantações de chá e mandioca e vastos capinzais - transformou-se nas ruas da Imaculada conceição, Baronesa de Itu, Martim Francisco, Barão de Tatui, Angélica, Alameda Barros e outras. Dona Maria Angélica de Sousa Queiroz Barros foi dona também de muitos terrenos na zona da Avenida Angélica, uma parte dos quais pertenceu à antiga chácara das Palmeiras. Parte da Rua das Palmeiras, porém resultou do retalhamento da chácara Mauá, de Francisco de Aguiar Barros e do alemão Frederico Glette. Essa chácara Mauá - que antes se chamara Campo Redondo e depois, em 18687, Charpe - tinha sua sede em um enorme prédio colonial, acaçapado, que mais tarde serviria de residência episcopal e de colégio. Ali se caçavam pombos e se pescavam bagres em uma lagoa. Glette e seu patrício Nothmann pegaram essas terras da chácara Mauá e fizeram delas o bairro dos Campos Elíseos, entre 1882e 1890, com a Alameda Barão de Piracicaba, o Largo Princesa \Isabel e as Ruas General Osório, dos Protestantes, do Triunfo, dos Andradas, dos Gusmões, Duque de caxias, Helvétia, Glette, Nothmann e outras."

"A chácara que pertenceu ao comendador Luis Antonio de Sousa Barros foi loteada para que se abrissem parte da Av. São João, o largo e a travessa do Paissandú, a Rua do Seminário e a Praça do Correio. A que pertenceu ao brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar contribuiu para a formação da ladeira e do Largo da Santa Efigênia, Rua da conceição e parte da que conservou o seu nome."

"O ex-sitio do Carvalho, que pertencera ao Barão de Iguape (pai de Dna Veridiana prado) e que ia da estrada de Jundiaí até o Tietê, nas proximidades da Casa Verde, contribuiu para a formação em parte dos bairros da Barra Funda e do Bom Retiro. A chácara do conselheiro Antonio prado se transformou na Praça Marechal Deodoro, Ruas Brigadeiro Galvão, Barra Funda e Vitorino Carmilo. (op. Cit., pág. 1028-9)

"A avenida Brigadeiro Luis Antonio foi aberta em terras da chácara do Barão de Limeira. E o bairro da Casa Verde em um sítio que até 1830 pertenceu ao Marechal Toledo Rendon Arouche e que de 1882 a 1897 foi propriedade de John Maxwell Rudge." (op. Cit.)

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A cidade se expande. Mas nesta mesma medida a segregação se acentua. As classes sociais estão separadas no espaço urbano.

2.2 Início da década de 40: o padrão periférico de crescimento da cidade

Já vimos que nas primeiras décadas deste século a segregação se evidencia na cidade. Porém as classes sociais não se encontravam tão distantes umas das outras como vai acontecer no momento em que a cidade começa a ter como modelo de expansão o crescimento pela periferia (o chamado "padrão periférico de crescimento").

Vamos retomar o período que vai do início do século até 1940. A elite morava em casas próprias nos seus bairros exclusivos (Campos Elíseos, Higienópolis, Avenida Paulista, Jardins). Os trabalhadores nos chamados bairros operários. Porém moravam em casas alugadas, geralmente cortiços. Isto porque devido á especulação imobiliária e aos baixos salários não tinham condições de alugar uma casa decente e unifamiliar.

Por isso o cortiço vai ser o tipo de habitação popular dominante até a década de 50.

As autoridades já no fim do século passado se preocupavam com este tipo de habitação. Era vista como foco de epidemias.

Propuseram como solução a construção de casas unifamiliares: as chamadas "Vilas operárias'. Estas deveriam ser construídas pelos industriais e alugadas aos seus operários. Cabia ao governo dar incentivos.

Mas este modelo de habitação operária fracassou. Algumas Vilas operárias foram efetivamente construídas mas os seu número ficava abaixo das necessidades. Além dito somente os operários especializados tinham condições de pagar o aluguel pelo fato de terem rendimentos mais elevados.

Um outro fator que revela o fracasso foi a oposição dos anarquistas a este tipo de habitação. Os anarquistas, que lideravam o movimento operário nas primeiras décadas deste século, viam as Vilas Operárias como uma verdadeira prisão. Com elas os industriais controlavam os trabalhadores, impediam as greves, rebaixavam os salários.

Fracassando a proposta das "Vilas Operárias" uma outra alternativa seria periferizar os trabalhadores. Fazer com que os trabalhadores morassem nas regiões até então consideradas rurais.

Porém isto era inviável nestas primeiras décadas do século XX devido a estes fatores:

1. Ao capital interessava que os trabalhadores morassem no centro e em cortiços porque:

- morando em cortiços mantinha-se a unidade familiar e isto favorecia a exploração por parte dos industriais.

- O aluguel doe cortiços era um empreendimento na época que dava muito lucro. Lembremo-nos de um grande empreendedor neste negócio no Rio de Janeiro: o conde D'Eu, chamado de "conde cortiço".

- O padrão de exploração do trabalho nas indústrias exigia que os trabalhadores morassem perto das fábricas pois isto facilitava a extensão da jornada de trabalho (14 a 16 horas de trabalho) e o rebaixamento salarial. Se porventura os trabalhadores morassem na periferia a jornada de trabalho teria que ser reduzida e o salário aumentado para cobrir os custos do transporte.

2. O bonde era o transporte da época. Ele se contrapunha à periferização dos trabalhadores. Este tipo de transporte só é viável através de um trajeto que passe por áreas muito adensadas além de exigir trajetos fixos e diretos ao lado de um grande investimento em trilhos e tração elétrica. Além disso, a Light (concessionária de época) nunca se interessou em estender linhas que se mostrassem pouco rendosas.

Esta situação somente será modificada a partir dos anos 40 quando a cidade começa a se expandir pela periferia, ou seja, início do padrão periférico de crescimento.

Tal expansão pode ser explicada pelos fatores abaixo:

a) O avanço da industrialização que ao se expandir cria novos e diversificados núcleos.

b) A partir de 1930 afluem para São Paulo muitos migrantes (um dos motivos: legislação de trabalho aplicável somente às áreas urbanas). São Paulo passa então a ter 1 milhão de habitantes.

c) O transporte por ônibus começa a se intensificar. O ônibus torna possível aos trabalhadores morarem na periferia.

d) A expansão dos ônibus reflete a opção pelo transporte rodoviário. Foi esta a opção feita pela prefeitura a partir de 1938 com o prefeito Prestes Maia (1938-1945).

Este plano propunha a abertura e o alargamento de uma série de avenidas e radiais que partiam do centro em direção aos bairros, procurando pois criar uma cidade baseada no transporte rodoviário. Por isto houve a desapropriação de inúmeras construções, demolições renovando e ampliando a zona comercial, incentivando a verticalização. A consequência é uma acentuada elevação nos preços dos terrenos nas áreas da cidade atingidas por esta "cirurgia urbana" incentivando a especulação imobiliária. É claro que isto favorece a expulsão da população de baixa renda para a periferia.

e) A intensa abertura de lotes em bairros periféricos a preços razoáveis a partir dos anos 40 também foi um fator para a expansão da periferia.

f) A Lei do Inquilinato. Esta lei foi decretada em 1942. Congelou por dois anos todos os aluguéis. Mas findo este período ela foi prorrogada sucessivamente até 1964.

Esta lei desestimulou muitos proprietários a alugarem casas no centro. Alguns começaram a comprar terras na periferia e depois de loteá-las, vendê-las. Isto era mais negócio. Outros continuaram a alugar as casas. Porém como não podiam elevar os aluguéis, adotaram a tática de obrigar os inquilinos a se retirarem. Para realizarem seu intento usaram até de violência: destelhamento das casas, danificação dos fogões e dos canos das instalações de água e esgotos. Retirando-se os inquilinos, poderiam alugar as suas casas a um preço bastante superior ao valor congelado. Esta foi uma época de muitos despejos com várias batalhas judiciais entre proprietários e inquilinos com um governo populista se colocando como árbitro.

Tudo isto reforçou o déficit habitacional no centro, obrigando a grande massa trabalhadora, com baixo poder aquisitivo, a ir morar na periferia. Contribui também para este deslocamento o aumento da população trabalhadora devido ao intenso fluxo migratório para a cidade de S. Paulo.

É interessante destacar que esta Lei do Inquilinato não se deveu propriamente a uma preocupação pelos trabalhadores. Fazia parte de uma estratégia do Governo populista de Getúlio Vargas para incrementar a industrialização. Com o congelamento de aluguéis, o investimento neste setor deixa de ser interessante e se libera recursos para a aplicação na indústria. Além do mais tal congelamento ajuda a impulsionar a industrialização na medida em que, possibilitando uma redução do valor da força de trabalho, favorece a acumulação capitalista.

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A conclusão que se impõe é: São Paulo deixa de ser uma cidade concentrada e onde os trabalhadores viviam no centro e perto das elites, pagando aluguel em cortiços e casas de cômodos, para se transformar numa cidade dispersa e segregada, na qual os trabalhadores vivem em casas próprias autoconstruídas nos loteamentos periféricos, sem infra-estrutura adequada e sem serviços básicos.

2.3 A expansão urbana e segregação: fins da década de 40 até 1964

O período compreendido entre o fim da década de 40 e 1964 marcou a consolidação do padrão periférico de crescimento.

A solução habitacional se apoiou no trinômio loteamento periférico/casa própria/autoconstrução - que em São Paulo representou a principal opção de moradia para os setores populares até os anos 70.

E a iniciativa privada entrou com tudo no negócio de loteamentos periféricos de tal forma que podemos afirmar que a periferia é um subproduto da especulação imobiliária. Levando em conta a aspiração popular por uma casa os loteadores traçaram uma estratégia que lhes possibilitou grandes lucros. Fazendo loteamentos em áreas rurais, podiam vender os lotes a um preço acessível aos trabalhadores já que não tinham infra-estrutura e serviços básicos. Mas propositadamente deixavam terrenos ociosos dentro do loteamento ou entre ele e a região já urbanizada. O simples fato de trabalhadores comprarem um lote já valorizava estes terrenos ociosos e na medida em que os serviços e infra-estrutura urbana chegassem a este loteamento (mormente a custa da mobilização dos moradores) estes terrenos se valorizavam mais ainda.

Além do mais esta ocupação foi feita de modo caótico. Loteamentos foram feitos em áreas de alto risco com possibilidade de desabamento. Muitos destes loteamentos não respeitaram as normas de construção impostas pelo código de construção dando origem aos chamados loteamentos clandestinos, já que tais loteamentos, pelo desrespeito às normas, não foram registrados no setor de fiscalização de obras. E portanto, para o cadastro municipal são considerados inexistentes.

Isto gerou problemas para os compradores de lotes a partir da década de 70.

A conseqüência arquitetônico-urbanística desta forma de urbanização é um desperdício muito grande de espaço, fazendo de São Paulo um tapete de retalhos extremamente caótico, que se perde em cidades periféricas cada vez mais distantes. Além disso encarecem-se tanto os custos do transporte como os de instalação de infra-estrutura urbana.

Mas esta forma de expansão urbana só se tornou possível porque o poder público - populista - da época (fins da década de 40 até 64) fechou os olhos às irregularidades. Deixou de exercer sua função de fiscalização e controle sobre a expansão urbana.

Já no início dos anos 50 já se previa que o poder público jamais poderia a curto e médio prazo servir estes loteamentos de serviços e equipamentos coletivos necessários à vida urbana.

Por que então o poder público deixou as coisas acontecerem?

Fazia parte de sua estratégia para atenuar o problema do déficit habitacional no período pós-segunda guerra.

Lembremo-nos do que dizia o governador Ademar de Barros em 1947 à população pobre: "podem construir suas casas sem planta que a prefeitura fecha os olhos".

Então, graças à expansão do padrão periférico, o Estado populista deixa de investir na construção de casas populares. Afinal, o objetivo primeiro do poder público populista era a viabilização do processo de acumulação capitalista. Era para aí que os investimentos eram dirigidos.

Mas pelas próprias características do populismo que se apoia no voto da massa trabalhadora, as necessidades desse setor não podem ser totalmente desprezadas. Além do mais esta massa, através dos movimentos populares (que emergem nesta época) como as SABs (Sociedade de amigos de Bairro) começam a pressionar a prefeitura. Esta pressão era expressão da consciência de que os serviços e equipamentos urbanos eram um direito do munícipe e um dever do Estado. Esta consciência foi fruto também do próprio discurso populista que atribuía a si o dever de atender a população pobre da cidade com equipamentos e serviços urbanos.

Então algumas coisas foram feitas no sentido de atender em parte aos reclamos deste setor popular. Criaram-se os IAPS (Institutos de Aposentadoria e Previdência) em 1938 e durante o período Dutra (1946-50) a ação destes institutos foi intensificada. É criada também em 1946 a fundação da Casa Popular (FCP) - primeiro órgão a nível nacional com o objetivo de equacionar o problema habitacional.

Porém tudo isto foi apenas um paliativo. Ficou aquém da demanda e das necessidades sociais.

O que vingou realmente foi a política do "laissez-faire" urbano.

2.4 Expansão periférica e segregação: de 1964 a 1992

O golpe de 64 representou o fim do "pacto populista de classes" e o surgimento de um poder autoritário, que ao controlar e reprimir as organizações populares, transformou a Metrópole em um espaço mais do que nunca a serviço da acumulação de capital e dos estratos mais ricos da população. São Paulo torna-se uma cidade segregada pois as políticas públicas se direcionaram para uma transformação que trouxe maiores benefícios para os segmentos de médio e alto poder aquisitivo, ao mesmo tempo que o padrão periférico de crescimento se intensificava. A população pobre que morava na periferia continuava desprovida de serviços básicos. As favelas, até então quantitativamente insignificantes em São Paulo, passaram a crescer assustadoramente.

Explicitemos mais o projeto urbano da ditadura militar.

"O conceito-chave deste projeto é o da integração nacional: completar a ocupação e unificação do país sob uma territorialidade capitalista. Para a efetivação disto, grandes projetos de ligação rodoviária (Transamazônica; Santarém-Cuiabá; Transpantaneira; Porto Velho-Manaus) tiveram o objetivo de penetrar no centro e chegar às fronteiras do país. Ao mesmo tempo polos econômicos foram criados (como a exploração do minério de Carajás ou o polo petroquímico baiano de Camaçari e o complexo siderúrgico de Vitória". Além disso houve grandes investimentos em infra-estrutura (hidrelétricas, pontes, portos, que são os setores de emprego formal que mais cresceram no período de 60-80)."

"Esse investimento se deu basicamente através da centralização de recursos em nível federal e da internacionalização da economia (por meio da associação com capital estrangeiro ou do endividamento externo). O modelo se completou com a concentração de renda: mantendo-se baixos os níveis salariais, não dividindo o bolo". (Revista "Teoria e Debate", nº 9, 1990 - artigo de Herminia Maricato)

A consequência foi a produção de uma rede urbana diversificada.

No interior de cada cidade acentuou-se o padrão periférico de crescimento. A presença da periferia na cidade representou a contradição da urbanização modernizadora do Regime Militar.

Para compreender melhor tal política urbana do regime militar é necessário destacar que ela acabou com a autonomia dos municípios. Toda possibilidade de intervenção municipal na cidade dependia de recursos repassados pelo governo federal. Ao mesmo tempo se estruturou todo um sistema centralizado e tecnocrático de trato com o urbano.

Os recursos federais vinham principalmente do Banco Nacional da Habitação (BNH). Este fazia parte do Sistema financeiro de Habitação e do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo que conseguiu um considerável volume de recursos através da poupança voluntária (cadernetas de poupança) e compulsória (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço).

Porém o BNH não podia agir diretamente. Por lei sua ação teria que ser intermediada pelos agentes financeiros (sociedades de crédito imobiliário e bancos privados). Tal fato resultou na drenagem de boa parte dos rendimentos dos sistema separa os agentes financeiros. Por outro lado, o modo de captar recursos, mesmo no caso dos financiamentos com prazos mais longos e com taxas de juros inferiores às do mercado privado, dificultava a entrada de parcela da população de mais baixa renda (de zero a cinco salários mínimos mensais).

Desta forma o BNH se tornou o financiador da promoção imobiliária que construía para a classe média e alta.

Além disto os municípios e Estados se tornaram os clientes do Banco, obtendo financiamentos para a produção de infra-estrutura urbana, sobretudo as áreas de saneamento e sistema viário.

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Quais foram as conseqüências desta política? Encareceu a terra urbana ao incentivar a especulação imobiliária.

Enfim, acentuou as iniquidades sociais. O número de favelados aumentou assustadoramente neste período. Foram os recursos desta política habitacional que pagaram as empreiteiras construtoras dos grandes projetos, que financiaram a infra-estrutura.

"No nível do discurso, a política urbana passava pela retórica do planejamento urbano, que seria capaz de levar a cabo o projeto de integração modernizadora, dando conta de enfrentar a contradição representada pela ilegalidade que esta produzia. O conceito chave desse planejamento no período autoritário é de 'desenvolvimento integrado', que constituiu palavra de ordem para o planejamento municipal. Foi nessa época que se produziram os 'Planos diretores de Desenvolvimentos Integrado', obrigatórios para a obtenção de recursos federais para investimentos urbanos, cada vez mais inacessíveis para as administrações locais, na medida em que se processava a centralização política e financeira do país." (Revista "Teoria e Debate", nº 9, 1990, artigo de Herminia Maricato).

Este Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado propunha a ordenação do espaço urbano. Porém estabeleceu uma legislação de zoneamento descolada das potencialidades do meio físico e altamente restritiva, abrindo novas perspectivas para especulação imobiliária.

"Esta Lei de zoneamento (de 1972) (válida ainda hoje) divide a cidade em zonas e define os usos permitidos em cada uma e o quanto se pode construir nos lotes. No entanto, ela estabelece o volume de construção em cada zona sem considerar a capacidade de infra-estrutura e as condições do solo. A conseqüência é, por exemplo, a ocupação indiferenciada de várzeas e áreas sujeitas à erosão."

"Outro problema provocada pela Lei de zoneamento em vigor é o encarecimento do solo urbano. Enquanto em 83% da cidade o zoneamento permite construir pouco mais de uma vez a área do terreno em penas 10% da superfície de S. Paulo a área construída pode atingir quatro vezes a área do terreno. É claro que estes terrenos com o privilégio de um coeficiente mais alto tenham o seu peço aumentado. Isto acaba por encarecer o peço da habitação. Exemplos destes terrenos encontramos na região sudoeste da cidade (Jardins, Morumbi e Ibirapuera).

As empresas imobiliárias por isso concentram os seus investimentos nestes 10% de área mais valorizada. Conseqüência disto: infra-estrutura sobrecarregada, obrigando o poder público a refazê-la constantemente"

"Por outro lado há áreas em São Paulo cuja infra-estrutura não é totalmente utilizada ou esmo áreas vazias. São mais de 144 milhões de metros quadrados situados em áreas com infra-estrutura para suportar pelo menos 7,5 milhões de pessoas. No entanto, apesar de todo este espaço ocioso ou com infra-estrutura subtilizada, a grande massa dos trabalhadores é obrigada a morar nos bairros mais distantes" ("Projeto de Plano diretor para a cidade de São Paulo" - gestão Luiza Erundina).

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O padrão periférico de crescimento se expandiu até o final dos anos 70. A partir daí o "milagre brasileiro" da ditadura militar entra em crise. O projeto do governo militar começa a ser questionado e tem início a transição democrática.

Quais as conseqüências desta crise para as cidades?

Esgotou-se o padrão periférico de crescimento. As causas deste esgotamento são estas:

1. Diminuição da oferta de lotes populares devido á diminuição do loteamentos clandestinos. Legislações surgidas dificultaram o aparecimento destes.

2. A crise (com recessão, desemprego, diminuição do poder aquisitivo da população) dificulta a compra de lotes por parte dos mais pobres.

3. O colapso do sistema financeiro da Habitação que baseado no princípio de correção monetária, entrou em colapso com a recessão e alta inflacionária. Seus recursos diminuíram (com saques de poupança e FGTS), os agentes financeiros começaram a quebrar. Os municípios, Estados e mutuários pressionam para a renegociação da dívida. Tudo isto inviabilizou a continuidade do sistema aumentando a procura por outras formas de habitação popular como favelas e cortiços.

Se o padrão periférico de crescimento era baseado no trinômio: loteamento/casa própria/autoconstrução, hoje notamos que a maioria dos trabalhadores pobres não têm condições de comprar um lote na periferia e nem de autoconstruir a sua casa.

A consequência foi o aumento da procura por outras formas de habitação popular como favelas e cortiços.

No caso das favelas elas tem aumentado desde o Censo de 1980 . No início dos anos 90 havia 1600 favelas com 1,5 milhão de pessoas (mais de 10% da população paulistana na casa de 11,3 milhões de pessoas)

Quanto aos cortiços temos também no início da década de 90, 4 milhões de pessoas encortiçadas (30% da população). Nesta época havia perto de 90 mil cortiços.

Se compararmos a década passada (80) com a de 90 vamos notar que o número de encortiçados aumentou 76,4%. ("Folha de São Paulo, 20/10/91 - artigo baseado em dados fornecidos pela prefeitura de S. Paulo - Gestão Luiza Erundina).

Se juntarmos às favelas e cortiços os loteamentos irregulares, teremos 61,4% da população (7 milhões) sem habitação decente neste início de década. Ou seja "São Paulo cai para a rabeira do 4º mundo" ("Folha de São Paulo", artigo já citado).

O padrão periférico de crescimento se esgotou também na medida em que muitos trabalhadores que moravam na periferia se mudaram para regiões mais centrais. Esta tendência constatada desde a década de 80 se acentuou na década de 90.

Por que os trabalhadores estão indo para as regiões centrais inclusive regiões tradicionalmente de classe média? (através de pesquisas de 1990 constata-se que a região que teve o maior aumento populacional foi o chamado anel interno, formado pelos bairros da Aclimação, Barra Funda, Belenzinho, Bom Retiro, Brás, Cambuci, Jardim América, Jardim paulista, Móoca, Pari, Perdizes, Pinheiros e Vila Mariana).

Tal fato é motivado por uma série de fatores: elevação do preço da terra, a precariedade e o crescente custo dos transportes e a legislação mais rigorosa quanto ao parcelamento do solo. Tendo em conta que a recessão econômica vinha acontecendo desde a década de 80, gerando desemprego e rebaixamento salarial, é claro que os trabalhadores não teriam condições de comprar um lote na periferia e de suportar os altos custos do transporte.

Então vão para as regiões centrais morando na sua maioria em cortiços. O aluguel destes é mais barato. Apesar da sua péssima qualidade habitacional há a vantagem da boa infra-estrutura da região, do transporte abundante, da proximidade do emprego.

Isto tudo nos leva a uma outra conclusão. Está acontecendo uma diminuição da segregação sócio-espacial. O número de pobres que moram em regiões de classe média, regiões mais centrais da cidade, está aumentando. Porém esta diminuição que poderia ser um fator positivo é perversa pois é fruto do achatamento nos níveis de remuneração.

Podemos chamá-la de "diminuição perversa da segregação sócio-espacial".

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*Laerte Moreira dos Santos - professor da Centro Federal de Educação Tecnológica de São Paulo

- atualmente leciona a disciplina "Filosofia" (2º ano)

Observação: Este trabalho foi feito no ano de 1992