A Trindade Divina

 

No princípio era apenas Num (Caos), o oceano primordial, onde se ocultava Aton, escondido num botão de lotús.

Inesperadamente ele apareceu sobre Num, resplandecente na forma de Rá e criou dois filhos divinos: Shu, deus do Ar, e Tefnut , deusa da Umidade.

Deste casal nasceram Geb, deus da Terra, e Nut, deusa do Céu, que por sua vez deram à luz dois filhos, Osíris e Seth, e duas filhas, Ísis e Néftis.

E assim deu-se a criação do mundo, conforme ouvimos nos antigos relatos de Heliópolis. A lenda assim prossegue:

Osíris, Ísis e Hórus

Osíris era o rei dos habitantes do Nilo, muito poderoso e muito bom. Induziu os seus súditos a viver em paz, a não destruir-se mutuamente e a abandonar a vida nômade. Ensinou-lhes a trabalhar a terra, a cultivar as parreiras e a obter delas o vinho, a cultivar a cevada e dela extrair a cerveja. Ensinou-lhes, também, como forjar os metais e fabricar armas para defender-se das feras. Convenceu-os, por fim, a viver em comunidade e fundar cidades. Antes disso os homens tinham sido canibais selvagens.

Ísis, sua esposa-irmã, curava as doenças, expulsava os espíritos malignos com magias; fundou a família, ensinou aos homens fazer o pão e às mulheres todas as artes femininas, a tecelagem e o bordado.

Fundaram assim a civilização e seus feitos e bondade eram ilimitados. O Egito se viu na Idade do Ouro.

Ainda assim Osíris não se sentia satisfeito. Queria mais, queria levar sua missão benéfica a todos os povos do mundo. Um dia ele falou para sua esposa o seu desejo, e partiu, confiando a Ísis a regência do Egito.

Seth, seu irmão maligno, sentia uma grande inveja da virtude e da fama de Osíris e tramava contra seu irmão, querendo usurpar seu trono.

Um certo dia Osíris regressou com êxito de sua viagem, em companhia de Toth (o deus das ciências) e Anubis (o deus dos mortos). Seth oferece, então, um grande banquete em homenagem ao irmão. Tal festa foi planejada maliciosamente, pois Seth sentia uma grande inveja da virtude e da fama de Osíris, e tramava contra ele, querendo usurpar seu trono. Eis que a oportunidade pela qual esperava havia aparecido. Mediu secretamente o corpo do bondoso irmão e mandou confeccionar para ele um precioso sacórfago com as suas medidas.

Todos os convidados bebiam e se divertiam, quando Set mostrou a todos o lindo sarcófago, ricamente adornado e realçado com gemas. A admiração foi geral. Todos elogiavam a preciosidade da peça e queriam possuí-la. Seth zombeteiramente ofereceu o ataúde àquele que entrasse nele e o ocupasse exatamente com seu corpo. Foi organizada uma fila, e para todos os que tentavam, o sarcófago resultava grande demais, pois a peça tinha sido confeccionada em amplas medidas.

Finalmente chegou a vez do rei. Osíris, que era de grande estatura, entrou no sarcófago e seu corpo ajustou-se perfeitamente. Seth, com a ajuda de mais setenta e dois conspiradores, rapidamente fecha a tampa do ataúde e lacrou-a com chumbo, atirando-o ao rio Nilo, pelo qual desceu ao mar.

Ísis, dominada pela dor, cortou os cabelos, vestiu-se de luto e procurou-o em vão, subindo e descendo o rio Nilo. Mas o caixão havia sido levado pela correnteza até a costa da Fenícia, onde, em Biblos, foi lançado à margem. Uma tamargueira cresceu imediatamente à sua volta, envolvendo o precioso objeto em seu tronco, e o perfume era tão maravilhoso, que o rei e a rainha locais, Melcart e Astarté, descobrindo sua beleza, mandaram cortar a árvore, e com ela fizeram o pilar central de seu palácio.

Enquanto isso, a desesperada Ísis continuava vagando pelo mundo, quando ficou sabendo por intermédio de algumas crianças, nos arredores de Tânis, que o sarcófago havia alcançado o mar, devido à correnteza daquele braço do Nilo.

Osiris

Assim Ísis finalmente chegou à Biblos, onde tomou conhecimento da árvore maravilhosa. Sentou-se ao lado de uma fonte, de luto, com véu e trajada humildemente. Não falou com ninguém até que dela se aproximaram umas criadas do palácio real. Trançando seus cabelos, Ísis exalou propositalmente um perfume tão forte sobre elas, que Astarté, quando viu e cheirou as tranças, mandou-a buscar. Chegando ao palácio, ela foi recebida e admitida como ama de seu filho.

A grande deusa dava ao bebê o dedo, em vez do seio, para ele sugar, e à noite colocava-o no fogo para queimar toda a sua parte mortal. Transformava-se, então, numa andorinha, e voava em torno do pilar, chilrando seus lamentos.

Uma noite, a mãe do menino acordou e resolveu verificar se a criança estava dormindo bem. Ao abrir a porta do quarto, deparou com a cena aterradora: o berço da criança estava rodeado de chamas e, aos pés da cama, sete escorpiões montavam guarda ameaçadoramente. Gritou perplexa. O rei e os guardas socorreram-na, enquanto Ísis com um simples sinal apagava as chamas.

A deusa então revelou-se e repreendeu a rainha. Grata pela hospitalidade, tinha decidido fazer o príncipe imortal e por esta razão todas as noites imergia-o nas chamas purificadoras. Mas infelizmente agora o encanto já não fazia mais efeito.

Com isso a rainha Astarté ficou profundamente entristecida, mas o rei estava orgulhoso de haver hospedado uma deusa e prometeu a Ísis qualquer coisa que pedisse. Ela, obviamente, pediu ao rei a grande coluna de seu palácio, de onde tirou o ataúde.

Retomou o caminho de volta, escoltada por dois filhos do rei, mas não resistiu por muito tempo, e, ordenando que a caravana fizesse uma parada, abriu o sarcófago. Quando viu o rosto do marido, os seus gritos de dor encheram o ar. Um lamento tão grande, que um dos filhos do rei ficou louco. E, quando Ísis inclinou-se chorando sobre o rosto do marido, o segundo filho fitou-a, ignorante e curioso. A deusa percebeu e lançou-lhe um olhar tão forte que o mocinho caiu morto.

Tendo ficado sozinha, Ísis tentou de tudo, empregou encantamentos e fórmulas mágicas para trazer o esposo à vida. Transformou-se em falcão e, agitando sobre ele suas asas para restituir-lhe o sopro da vida, milagrosamente ficou fecundada.

Chegando aos braços abençoados do delta do Nilo, Ísis tratou de esconder o ataúde num lugar solitário perto de Buto, entre os emaranhados pântanos do Delta que o protegiam contra os perigos.

Seth, uma certa noite, estava caçando porcos-do-mato à luz da lua cheia, e por acaso encontrou o sarcófago. Ficou furioso e despedaçou o corpo em quatorze pedaços, que espalhou por todo o Egito.

A infeliz Ísis, com o novo suplício, recomeçou a dolorosa busca dos restos fúnebres do esposo, desta vez ajudada pela esposa-irmã de Seth, a deusa Néftis e seu filho, Anúbis.

Juntou-se às três desoladas divindades mais uma: Toth, o deus-lua, e assim encontraram todas as partes do deus, com exceção do membro genital, que havia sido devorado por um ossirinco (espécie de esturjão do Nilo).

Nos locais em que os restos foram encontrados, surgiram capelas, e mais tarde templos nos quais se realizavam peregrinações chamadas "Da procura de Osíris".

Recomposto o corpo, Ísis chamou para junto de si a irmã Néftis, Toth e Anúbis e, com a ciência herdada de Osíris, todos envidaram esforços para restituir a vida ao deus. Anúbis embalsamou o corpo, e surgiu assim a primeira múmia, que foi enfaixada e recoberta de talismãs. Nas paredes do sepulcro, em Abidos, foram gravadas as fórmulas mágicas rituais. Junto ao sarcófago foi colocada uma estátua totalmente semelhante ao defunto. Esses ritos, a partir de então, seriam realizados nos sepultamentos dos reis.

Assim Osíris ressucitou, mas não pôde reinar mais sobre esta terra, e tornou-se o rei do "Lugar que fica além do Horizonte Ocidental". Osíris é agora o soberano dos mortos, sentado majestosamente no mundo subterrâneo, no Salão das Duas Verdades, assistido por quarenta e dois acessores, um para cada distrito do Egito, e ali ele julga a alma dos mortos.

Realizado o rito do sepultamento, Ísis voltou a se esconder nos pantanais para proteger-se, e principalmente ao filho que esperava, das vinganças de Seth. Quando Hórus nasceu, a mãe guarneceu-o com todo amor, invocou sobre ele a ajuda de todos os deuses e depois lhe ensinou magia e educou-o em memória do pai. Assim Hórus cresceu e ficou poderoso. Como o dia nascente, seu olho direito era o sol, o esquerdo a lua, e ele próprio era um grande falcão que cortava os céus. Quando ficou maior, Osíris voltou à terra para fazer dele um soldado.

Então Hórus reuniu todos os fiéis do rei traído e partiu à procura de Seth para vingar a morte do pai. A ferrenha batalha durou três dias e três noites; Seth e seus fiéis transformaram-se nos mais terríveis e estranhos animais para fugir à derrota. Hórus mutilou Seth, mas este transformou-se num grande porco preto e devorou o olho esquerdo de Hórus. Assim a lua parou de iluminar a humanidade, que ficou atônita. No fim, Seth estava prestes a sucumbir, quando Ísis interveio suplicando ao filho que desse fim ao massacre, afinal, Seth era seu irmão e marido de sua irmão Néftis. Num ímpeto de ódio, Hórus decepou a cabeça da mãe. Thot curou-a, colocando no lugar da sua, uma cabeça de vaca. A batalha recomeçou e durava indefinidamente, sem vencedores nem vencidos. Toth intrometeu-se autoritariamente e curou Seth. Ordenou também que fosse restituído o olho de Hórus, e a lua voltou a brilhar. Vieram então os deuses e levaram a questão ao julgamento de Toth. Foi um processo que durou oitenta anos, ao fim do qual decidiu-se que Hórus seria o senhor do Baixo Egito e Seth Do Alto Egito.

E tudo isso se passou 13.500 anos antes de Menés, o primeiro faraó do Egito...

 


Fontes:
* O Egito dos Faraós - Frederico Mella
**Egyptian Myths and Legends - Donald A. Mackenzie
*** Egyptian Myths - George Hart