ATIVIDADE HUMANA
CONTRA O TRABALHO

Texto publicado em KAOS #2, 04/1998 (boletim aperiódico e experimental do Grupo Autonomia), onde apresentava o seguinte cabeçalho:

O texto abaixo, de autoria dos companheiros do GCI - Grupo Comunista Internacionalista (*), foi-nos enviado já traduzido, com a solicitação de que o divulgássemos, após os necessários procedimentos de revisão e resumo/adaptação. O tema é da maior relevância, na atual situação de ofensiva do capital contra as condições de vida dos operários e demais trabalhadores. Aliás, cabe lembrar que a palavra "trabalho" tem origem no vocábulo latino trepalium (literalmente, três paus), que designava um instrumento de tortura utilizado para subjugar os animais rebeldes à domesticação. Sugestivamente, o termo "labor" significava sofrimento, antes de se tornar sinônimo de trabalho... (*) Por motivos óbvios, recomendamos não escrever GCI no envelope.
BP 54 St. Gilles, 3
1060 BRUXELES – BELGIQUE


"Não se trata de libertar o trabalho, mas de suprimi-lo". (Karl Marx)

I. A palavra "trabalho" é a denominação burguesa para "atividade humana".

Na sociedade capitalista, a linguagem, como qualquer esfera da vida, é determinada pelo capital. É, fundamentalmente, a linguagem da classe dominante, a linguagem burguesa, que pode ser definida como o domínio da ideologia burguesa exercendo-se na comunicação. Assim, o modo de comunicação vigente impõe-nos seus limites. Como não se trata de inventar uma linguagem que só poderia basear-se numa nova compreensão das relações humanas, vemo-nos continuamente obrigados a desmascarar e redefinir as palavras.

A palavra "trabalho" é o exemplo mais cabal e quase perfeito da falsificação das consciências humanas. O homem sempre se expressou através de sua atividade vital (o que é a vida, senão atividade?), visando à satisfação de suas necessidades. Contudo, o sistema mercantil vai reduzir e aviltar essa atividade, subjugando-a sob a forma denominada "trabalho". O capital universalizará essa forma de exploração, vinculando-a ao salário. Atualmente, essa é a única possibilidade de sobrevivência para a maioria das pessoas, a única maneira de existir do proletariado. Assim, o trabalho tornou-se a atividade central do homem.

A ideologia burguesa confunde propositalmente a essência do homem com a sua alienação, o trabalho. A palavra "trabalho", que designa uma forma muito particular de atividade humana, soa hoje aos ouvidos como um sinônimo de "atividade", visto que, para a maioria dos homens, o trabalho chegou a ser a totalidade de suas atividades. Logo, atuar significa "trabalhar" e ser ativo entende-se como ser "trabalhador". A hipocrisia e o cinismo da linguagem burguesa culminam em expressões tais como "fazer trabalhar o dinheiro", imagem de uma riqueza hermafrodita, reproduzindo-se por si própria, como se por trás do dinheiro não se encontrassem os braços, o suor e o sangue daqueles de quem é extorquida a mais-valia, fonte de enriquecimento dos capitalistas.

Portanto, a palavra trabalho denomina uma forma determinada de atividade humana, intrinsecamente ligada ao sistema mercantil. É preciso entender o trabalho como atividade humana estranha ao homem, à manifestação de sua vida e à consciência que ele tem dela. O trabalho é a escravidão assalariada, a redução do homem à lamentável condição de trabalhador.

II. "O trabalho é o ato de alienação da atividade humana prática." - (Marx - Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844)

O trabalho é a expressão alienada da atividade humana; a manifestação da vida como estranhamento e perda da vida. O caráter alienado do trabalho aparece de diferentes maneiras. Em primeiro lugar, através do objeto produzido. Este, de fato, não pertence ao proletário. Obrigado a vender a única mercadoria que lhe pertence, sua força de trabalho, e a alienar sua atividade na mercadoria que produz, o proletário constata que sua vida não lhe pertence mais. O estranhamento de si no e através do trabalho decorre, pois, da necessidade, para o proletário, de vender sua força de trabalho para produzir uma mercadoria que lhe é totalmente estranha.

O trabalhador não encontra qualquer satisfação no resultado do seu trabalho. Mesmo quando o objeto criado é de seu interesse imediato, o trabalhador não pode utilizá-lo. O absurdo de tal situação aparece, em toda a sua cruel dimensão, no seguinte exemplo. Um grupo de operários trabalha numa fábrica, cuja temperatura ambiente é superior a 35 graus. Esses operários sufocam de calor, enquanto produzem aparelhos de ar condicionado e ventiladores...

O proletário não se aliena somente no produto de sua atividade, mas em sua própria atividade. Sua atividade produtiva já não lhe pertence. De fato, o trabalho é exterior ao trabalhador, mas sendo a única atividade que lhe permite obter seus meios de sobrevivência no sistema capitalista, ele se vê obrigado a exercê-la. O trabalho é, pois, a atividade não-livre no mais alto grau. Escravidão assalariada, o trabalho só pode ser constrangido e forçado. "O caráter alienado do trabalho aparece claramente no fato de que, desde que não exista um constrangimento físico ou qualquer outro, fugimos dele como se fosse a peste." (Marx - Manuscritos)

No trabalho, o indivíduo não se afirma, se nega. Da mesma maneira que investe a sua vida no objeto, o proletário abandona sua existência à atividade de produção desse objeto. "Se o produto do trabalho é a alienação, o próprio trabalho deve ser alienação em ato... A alienação do objeto do trabalho não é mais que o resumo da alienação, o estranhamento de si, dentro da própria atividade do trabalho." (Marx - Idem)

O trabalho, atividade produtiva submetida ao capital, torna-se, para o proletário, atividade passiva, força impotente. Perda de si e do objeto, o trabalho acarreta ainda a perda do outro. O trabalho torna o homem estranho ao próprio homem, separa a vida individual da vida da espécie humana.

O que distingue o homem do animal é que o animal se identifica totalmente com a sua atividade vital. Ele "é" essa atividade. O homem faz de sua atividade o objeto de sua vontade e de sua consciência. Quando a atividade vital do homem se aliena, no sistema mercantil, o produtor é reduzido à condição de trabalhador. Ou seja, é obrigado a fazer de sua atividade consciente um simples meio de subsistência, um meio de existir, um trabalho.

A atividade vital deveria ser a livre expressão do homem; a produção pelo homem de um mundo objetivo, no qual ele poderia contemplar-se e se reconhecer. Mas essa produção de sua vida genérica ativa, uma vez subjugada ao capital e reduzida a trabalho, aliena a atividade vital do homem na produção de mercadorias. A atividade vital do homem se degrada a meio de sobrevivência. "O que é verdade, a respeito da relação do homem com o seu trabalho, o produto de seu trabalho e a si próprio, é verdade também a respeito da relação do homem com o outro homem, assim como ao trabalho e ao objeto do trabalho do outro homem." (Marx - Idem)

Sob o domínio do capital, a consciência do gênero humano, a consciência da espécie, isto é, de si e do outro, é aniquilada. Quando ocorrem, as manifestações de solidariedade proletária nada mais são do que um vestígio da consciência genérica do homem que compreende que os seus próprios interesses coincidem com os interesses da comunidade humana; consciência de um ser humano genérico, que somente pode entender a livre satisfação de suas necessidades e desejos como desfrute coletivo.

III. A abolição do trabalho encontra sua forma política na emancipação do proletariado.

Acabamos de ver que o ser humano, alienado pelo trabalho, não se pertence mais. Mas se não se pertence mais, deve pertencer a outro. Se a atividade humana tornou-se um tormento para o operário, é necessariamente em proveito de outro. Através do trabalho, o proletário não só (re)produz uma relação estranha com o seu produto, mas também a dominação dos que não produzem, dominação que se exerce sobre o produto, sobre a atividade produtiva e sobre o produtor. Nada justifica que a atividade humana seja alienada que se transforme em trabalho, a não ser o interesse da classe dominante. O proveito que tira a burguesia de sua dominação impede-lhe de ver mais além de seus próprios interesses de classe. A classe social que libertará a humanidade do trabalho só pode ser aquela que mais sofre com os seus maléficos efeitos. A emancipação universal do homem depende da emancipação do proletariado, porque esta classe concentra, na sua relação com o trabalho, toda a opressão do homem.

Ao proletariado, auto-organizado em classe e portanto em partido, cabe a tarefa histórica de libertar a humanidade do trabalho. E de solucionar, de uma vez por todas, os antagonismos entre o homem e a natureza, entre a sua atividade e o seu desfrute, entre sujeito e objeto, entre o indivíduo e a espécie humana.

IV. Abaixo o trabalho !

Agora talvez se possa ver mais claramente em porque as exigências sindicalistas e esquerdistas de "direito ao trabalho" e "garantia do emprego" são eminentemente reacionárias. Os proletários sabem que, no capitalismo, o trabalho é a sua única maneira de subsistir e que, neste sentido, não trabalhar é estar condenado à mendicância, à delinqüência ou à morte pela fome. Portanto, a exigência de emprego, feita pelo operário, é a exigência de alimentação, vestuário e outros bens necessários para ele e sua família. Mas reivindicar trabalho para todos dentro do sistema burguês é fazer crer que isto é possível; é negar o caráter catastrófico do capitalismo, sua incapacidade de abolir o desemprego que ele próprio cria.

Nós, comunistas internacionalistas, afirmamos que a reivindicação de trabalho para todos é utópica, baseados no fato de que, se o capital não criou emprego para todos e a nível mundial em tempos de prosperidade, seria tolice imaginar que possa fazê-lo em plena crise. A reivindicação é reacionária, porque corresponde a uma visão idealizada do sistema capitalista e ignora a natureza contraditória do capital, cuja ditadura é a da riqueza que cria miséria. Ideólogos do capital, os economistas e outros defensores do trabalho alheio tentam explicar que o trabalho é necessário porque "confundem" produção de mercadorias e riqueza social. É, pois, hipocrisia das mais sórdidas apresentar o trabalho como a única fonte de riqueza. O trabalho, no sentido de atividade alienada, é a perda do homem. "Eu digo que o trabalho, não só nas condições presentes, mas em geral, na medida em que seu objetivo é o simples aumento da riqueza, é prejudicial e funesto." (Marx - Manuscritos de 1844)

Em vez da exigência reacionária: "um salário justo para um dia de trabalho justo", Marx nos propõe a consigna revolucionária: "Abolição do sistema salarial". Da mesma maneira, desmascarando o oportunismo das reivindicações de "trabalho para todos", contrapomos a palavra de ordem do programa comunista: "Abaixo o trabalho!"

V. Trabalho, lazer e comunismo.

"Em todas as revoluções anteriores, o modo de produção não se alterava. Tratava-se, apenas, de uma nova divisão do trabalho. A revolução comunista, pelo contrário, é dirigida contra o modo de produção anterior, ela suprime o trabalho e a dominação de classes, suprimindo as próprias classes." (Marx - Manuscritos de 1844)

O comunismo destrói o modo de atividade específico ao sistema capitalista: o trabalho, essência da propriedade privada. Ao mesmo tempo que suprime o trabalho, suprime a organização do lazer como complemento indispensável ao trabalho alienado.

O lazer nada mais é do que o tempo que o capitalista concede ao proletário para que este reconstitua sua força de trabalho, além de ter como função aliviar a frustração acumulada durante a jornada de trabalho. O lazer não corresponde a tempo livre, uma vez que só se trata, para o capital, de que o proletário retorne ao posto de trabalho, em boas condições de saúde. O capital opõe tempo de trabalho e tempo de lazer; separa as duas atividades e, no entanto, torna-as complementares. A escola já inculca essa separação na mente do futuro trabalhador: "Vocês estão aqui para trabalhar e para brincar, mas nunca façam as duas coisas ao mesmo tempo!".

Mas a atividade humana é uma totalidade. Neste sentido, a sociedade comunista não tem nada a ver com uma sociedade de lazeres, mera idealização do pólo "positivo" do sistema capitalista. À separação trabalho/lazer, o comunismo contrapõe a atividade vital que é o desfrute, o desfrute que é a atividade vital. "A atividade e o desfrute, tanto pelo seu conteúdo quanto pela sua origem, são sociais: atividade social e desfrute social." (Marx - Manuscritos de 1844)

O comunismo suprime a oposição entre tempo de trabalho e tempo de lazer, entre produção e aprendizagem, entre o que é vivido e experimentado. Isto não é de modo algum uma antecipação idílica, uma visão rósea do futuro, mas a expressão do próprio movimento da história mundial. Longe de ser casual, este movimento é o resultado do desenvolvimento das forças produtivas, que torna mais atuais do que nunca a possibilidade e a necessidade do comunismo.

A abolição do trabalho como atividade humana alienada é um ponto essencial do programa comunista, que o proletariado cumprirá ao abolir-se com a supressão de todas classes. Às quarenta (ou mais) horas semanais de trabalho, à tortura de acordar cedo, à angustiante busca de emprego, à sorridente hipocrisia dos gestores do capital que demitem sem contemplações, às cotidianas idas e vindas (do trabalho para casa, e vice-versa) de pé e comprimido nos meios de transporte de massas, ao embrutecimento das horas "livres", aos ritmos de trabalho infernais, aos "acidentes" de trabalho, à propriedade privada, à exploração do homem pelo homem; enfim, ao capital, contraporemos a nossa força e o nosso saber na construção de uma sociedade sem trabalho, uma sociedade comunista que garanta a livre disposição do tempo enquanto desenvolvimento da atividade humana.

"Se a atividade produtiva livre é o maior prazer que conhecemos, o trabalho é a tortura a mais cruel, a mais degradante. Nada é mais terrível do que fazer, o dia todo, uma coisa que nos repugna. Quanto mais sentimentos humanos tem um proletário, tanto mais detestará o seu trabalho, porque sofre com a opressão e a inutilidade que o trabalho representa para ele."
Engels, Friedrich - A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, 1845.



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