Ataxias Recessivas: Atualização

Prof Michel Koenig, Strasbourg
(publicado em Euro-Ataxia Newsletter Nº 21 - abril/2002)
Traduzido com a colaboração de Ana Pereira

1. Uma nova síndrome em ataxia: Apraxia Oculomotora e Ataxia (AOA)
A apraxia oculomotora é uma dificuldade ou uma inabilidade para executar o movimento lateral do olho. Em vez de mover o olho, os pacientes giram a cabeça para olhar para os lados. Também é freqüente o piscar exagerado. Quando associado com a ataxia, a ataxia oculomotora é descrita melhor como sendo o movimento lento do olho. Também é descrita como "viscosidade do globo ocular", como se ele estivesse flutuando em óleo. Um conhecimento anterior da síndrome atáxica com apraxia oculomotora é a ataxia telangiectasia (AT), mas esta condição é também associada com infecções crônicas, deficiência de imunidade e suscetibilidade à leucemia. Identificamos o gene de uma forma AOA (AOA1) e localizamos no mapa cromossômico a posição de uma segunda forma (AOA2). Estes estudos genéticos revelaram que nem todos os pacientes têm apraxia oculomotora (as vezes difícil de reconhecer em estágios avançados da doença). Conseqüentemente, as formas AOA1 e AOA2 podem esclarecer uma proporção substancial das ataxias recessivas que não a ataxia de Friedreich.
Isolamos o gene AOA1 simultaneamente a um grupo japonês (Moreira et al.; Data et al., Nat. Genet. 2001; 29:184-203) e isto nos permitiu, por sua vez, que identificássemos pacientes com AOA1. A doença parece particularmente freqüente no Japão e em Portugal, com alguns indivíduos afetados na França, Itália, Tunísia e Índia. O gene AOA1 define uma proteína nova que tanto o grupo japonês como nós concordamos em chamar aprataxina. A função da aprataxina não é conhecida, mas parece ser um mosaico de parcelas compartilhando proteínas conhecidas similares. Estas sugestões conduziram-nos a especular que a aprataxina está envolvida no reparo da ruptura de uma fita do DNA. Se isto estiver correto, pode haver uma ligação com a ataxia telangiectasia, devido a um defeito no reparo da ruptura da fita dupla do DNA.

2. Ataxia de Friedreich
A identificação em 1996 do gene defeituoso envolvido na ataxia de Friedreich tem estimulado numerosos trabalhos em direção ao entendimento do mecanismo da doença, construção de modelo de rato e projetos de possíveis terapias intervencionistas. A ataxia de Friedreich é causada por uma expansão da repetição do trinucleotídeo GAA localizada fora da região codificadora do gene. A proteína codificada pelo gene (denominada frataxina) é de tamanho normal mas é produzida em pequenas quantidades devido à mutação da expansão. Mostramos que em um modelo de rato sem nenhuma frataxina o desenvolvimento embrionário é precocemente letal. Assim, a doença em pacientes é conseqüência de haver uma pequena quantidade da proteína frataxina, e não de sua completa ausência.
Mas o que nós sabemos da frataxina e das consequências da sua quase completa ausência? A frataxina é uma proteína mitocondrial e algumas proteínas das mitocôndrias são secundariamente defeituosas nos tecidos afetados dos pacientes com ataxia de Friedreich.
Estas proteínas, também chamadas de centros de ferro-enxofre, contêm ferro e muitas delas fazem parte da cadeia mitocondrial de transporte de elétrons, envolvida na mais importante função da mitocôndria, isto é, a produção de energia (ATP) para a célula. Centros de ferro e coenzima Q10 são os transportadores imediatos de elétrons nesta cadeia. Se um elétron escapa logo dessa cadeia e encontra uma molécula de oxigênio, isto irá resultar na formação de O2 - denominado íon ou anion superóxido, o qual é um oxidante molecular muito tóxico para as células neurológicas. Sabe-se também que o ferro livre é capaz de produzir íons superóxidos pela transferência de um elétron  para o oxigênio. Hoje, parece que as proteínas de ferro-enxofre são defeituosas na ataxia de Friedreich mais por causa da produção primária de moléculas oxidantes (também chamadas de radicais livres, tal como o íon superóxido) (Chantrel-Groussard et al. Hum. Mol. Genet. 2001; 10:2061-2067) do que por causa da acumulação de ferro, como se acreditava antes.
A função da frataxina pode ser a de armazenar ferro numa forma bio-disponível para a mitocôndria (Cavadini et al. 2002 Hum. Mol. Genet. 11:217-227). Uma maneira evidente de proteger as células das moléculas oxidantes é utilizar moléculas antioxidantes. A coenzima Q10, um dos componentes da cadeia de transporte de elétrons, pode também atuar como uma membrana antioxidante. Idebenone é um similar à coenzima Q10 e ambos podem atuar como uma membrana antioxidante solúvel, isto é, acredita-se serem capazes de capturar os elétrons livres de um radical livre solúvel e trazê-los de volta à cadeia de transporte de elétrons (nas membranas da mitocôndria). Por esta e outras razões (Rustin et al. 1999; Lancet 354:477-479), idebenone foi escolhida para uma terapia experimental de um ano em dois dos principais hospitais parisienses (Hospital Necker, Prof. Arnold Munnich e Hospital de la Salpétrière, Prof. Alexis Brice).
Até agora, os efeitos benéficos mais evidentes foram verificados na cardiomiopatia, com a progressiva redução da hipertrofia (redução da espessura das paredes do coração), notada na maioria dos pacientes mas não em todos. Algumas melhoras subjetivas foram também observadas na fadiga, disartria e em movimentos delicados das mãos (escrita). Não foram notadas melhoras no andar atáxico e em neuropatia periférica. Por estes resultados preliminares, ainda não é possível aceitar ou negar algum efeito de idebenone no bloqueio ou diminuição da progressão destes dois últimos sintomas. Em outras palavras, idebenone continua em julgamento, embora deva ser dito que as evidências continuam a se acumular - um grupo independente mostrou que idebenone reduz o estresse oxidativo em pacientes de ataxia de Friedreich (Schulz et al. Neurology 2000; 55:1719-1721).
Para compreender os mecanismos da doença e obter confirmações independentes das experiências de drogas em seres humanos (um aspecto importante para a aprovação e distribuição comercial da droga), desenvolvemos modelos de ratos que imitam a doença humana - pelo menos a um nível básico. A fim de evitar a letalidade embrionária devido à completa ausência de frataxina, procuramos induzir a mutação em nossos modelos depois do desenvolvimento embrionário e restringindo a ocorrência da mutação em alguns tecidos, especialmente neurônios e músculos (inclusive coração), com uma estratégia denominada nocaute condicional (Puccio et genet nat. do al. 2001. 27.181-186).
No início, os ratos "musculares" cresceram normalmente, depois desenvolveram cardiomiopatia e morreram em aproximadamente 10 semanas. Os ratos "neuronais" tiveram mutações induzidas em muitos tecidos não-neuronais, inclusive coração, fígado e timo; começaram a perder peso desde o nascimento e morreram em aproximadamente 3 semanas. Em todos os casos, encontramos (em colaboração com o laboratório de Pierre Rustin) a deficiência mitocondrial da proteína ferro-enxofre em paralelo à ocorrência da doença nos tecidos afetados, como na doença humana. Entretanto, a acumulação e depósitos de ferro nas mitocôndrias não foram encontrados nos ratos "neuronais" (presumivelmente porque morreram demasiado cedo) e foram encontrados no coração dos ratos "musculares" somente após o início da cardiomiopatia e após a ocorrência de deficiências das proteínas de ferro-enxofre. Isto sugere-nos uma hipótese alternativa: que a ataxia de Friedreich é causada inicialmente pela produção do radicais livres, e isto por sua vez causa deficiência das proteínas de ferro-enxofre e posteriormente acumulação de ferro intra-mitocondrial (liberado dos centros defeituosos de ferro-enxofre). Se correto, este conhecimento reforça o raciocínio do uso de antioxidantes como um dos primeiro passos no tratamento dirigido na patologia da ataxia de Friedreich. Começamos a testar idebenone em nossos ratos mutantes "cardíacos" com três doses diferentes. Encontramos certamente um aumento estatisticamente significativo de sobrevivência de 10% para a dose mais elevado (90 mg/kg/dia). Estes resultados indicam que o idebenone é sem dúvida um protetor na deficiência da frataxina e presumivelmente age em uma fase inicial da patogênese. Nós planejamos agora testar idebenone em um novo modelo de rato, "neuronal exclusivo" e de progressão lenta, recentemente desenvolvido em laboratório, e testar outros compostos antioxidantes no modelo "cardíaco". Estes resultados devem ajudar a acelerar a autorização de comercializar o uso de idebenone na terapia da ataxia de Friedreich, especialmente porque idebenone obteve recentemente o "status de droga única" na Europa.

Tabela 1: Comparação das diferentes formas de AOA

 

Ataxia Telangiectasia

AOA1

AOA2

Idade de início (anos)

2-6

2-6

11-22

Atrofia cerebelar

+

+

+

Neuropatia periférica

limitada

sensorial-motora

sensorial

Serum markers:

 

 

 

Alfa-fetoproteína

alto

normal

alto

Albumina

normal

baixo *

normal

Colesterol

normal

alto *

normal

Cromossomo

11q22

9p13

9q34

* somente após 15 anos de duração da doença

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