O egoísmo
Eu
vos tenho visto a chamar-vos, uns aos outros, de egoístas.
E o dizeis
como ofensa; ou como se o egoísmo fosse o mais grave dos vossos defeitos.
Eu,
entretanto, vos digo que o egoísmo está em cada um de vós; assim como o fio para
o tecido, ou a estrela para o céu noturno. E, se não é a maior das vossas
qualidades, é a força que mais vos impulsiona para a vida.
Dependeis
do egoísmo, desde antes de vossa concepção.
Acaso, o
próprio ato em que fostes gerados não proveio do egoísmo da mulher, a querer ter
em si o homem amado? E do egoísmo do homem, ao querer possuir a mulher amada?
Desde que
concebido, o feto não retira do organismo da mãe o alimento de que necessita? E
a gestante não sente como “seu” o ser que carrega no ventre? E ambos não se
completam, nessa egoísta simbiose?
Sois os
filhos do egoísmo.
Sim, e
também os seus pais; e os seus amigos, e os seus amantes. Pois vos ouço a chamar
de vosso tudo e todos a quem amais. Assim, dizeis: “meu filho”, “meu esposo”,
“minha amada”, como se algum deles realmente vos pertencesse; e, entretanto, a
ninguém vos conformais em pertencer.
Pois cada
pessoa pertence exclusivamente a si própria e mesmo ao dar-se, o faz na
esperança de receber.
O egoísmo é um de vossos
atributos. Como a inteligência ou a habilidade; como a beleza ou o dom da fala.
E
como todos
os atributos, não é bom ou ruim em si mesmo; bom ou ruim será o uso que dele
fareis. Como a inteligência e a habilidade, a beleza e a fala, quando
consagrados ao mal, podem espalhar o sofrimento; se, ao contrário, usados para o
bem, fazem brotar a felicidade.
Aceitai o
vosso egoísmo.
E aprendei
a cultivá-lo, como fazeis aos outros atributos. A direcioná-lo, no sentido de
tornar melhor a vossa vida. Pois não é sábio aquele que usa o que possui para
causar o próprio sofrimento.
Vede:
pessoas existem, que consagram a própria vida a ajudar os outros. E não o fazem
por eles, mas por elas mesmas; porque, ao fazê-lo, sentem-se felizes. E essa é
uma forma sublime do egoísmo.
Outras
existem, que tudo querem para si: espoliam, enganam, roubam os seus irmãos. E
jamais se sentem felizes, porque algo sempre lhes falta. E essa é uma forma
doentia do egoísmo.
Assim, a
primeira forma faz nascer a felicidade, que se espalha entre os homens. E a
segunda nada traz senão a cupidez, o medo e a frustração, que disseminam o
sofrimento.
Certo é
que a felicidade não faz parte deste mundo.
Entretanto, é igualmente certo que é ela o vosso objetivo maior em cada jornada.
Mostrai-me um homem que não busque a felicidade, e eu vos mostrarei alguém que
decerto a encontrou.
Deixai,
portanto, que eu vos diga que o egoísmo, como o amor e a saudade, como a alegria
e a tristeza, como tudo que podeis sentir, nasce do desejo de serdes felizes.
E que
jamais sereis completamente felizes, enquanto existir alguém infeliz. Pois a
felicidade se envergonha de mostrar a sua face, quando confrontada ao
sofrimento; escondeis o vosso riso, entre pessoas que choram.
E isso
acontece porque caminhais juntos, ainda que esta verdade vos escape à percepção:
como pequeninas gotas formais o Mar do Infinito, enquanto julgais ocupar apenas
o vosso próprio espaço.
Só juntos,
chegareis ao fim da jornada.
Pois,
embora alguns se adiantem na caminhada, cabe-lhes retardar o passo para auxiliar
aos que se atrasam. E o fazem com alegria, por entender que assim estão
construindo a própria felicidade.
Que seja
este o vosso egoísmo.
Não deveis
abaixar a chama da vossa lâmpada, para poupar o azeite: antes trazei-a bem alta,
para que os outros possam enxergar o caminho. Assim, não tropeçareis em alguém
cuja queda possais evitar.
E não
deveis armazenar a comida que vos sobra. Se sabiamente a distribuirdes, não
conhecereis a fome dos vossos irmãos; e jamais a vossa comida vos será roubada.
Como não
deveis guardar a roupa que não vos é necessária. Ou julgareis ofendido o vosso
pudor, pelo irmão que caminha despido ao vosso lado.
Se assim
fizerdes, esgotado o azeite da vossa lâmpada outro tomará o vosso lugar. E
desfrutareis da sua luz.
Terminada
a vossa comida, outro vos há de alimentar. E não sentireis o travo amargo da
necessidade, mas o doce sabor da gratidão.
Gastas as
vossas roupas, outro vos há de vestir. E não serão apenas os trajes a
aquecer-vos, mas também o calor da amizade.
Entretanto, não deveis sentir-vos superiores ao dar; ou, decerto, vos sentireis
inferiores ao receber. E a humilhação avilta e empobrece a dádiva.
Dai,
apenas. Para serdes felizes.
Que seja
este o vosso egoísmo!