DIREITO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL
Adauto Damásio

Este artigo discute a relação entre direito e escravidão no Brasil do século XIX, tendo como referência a interpretação de Manuela Carneiro da Cunha. Ele propõe que, ao contrário do que conclui a autora citada, o Estado (e o direito) mediava a relação entre proprietários e escravos.
 

This article analyses the relation between Law and slavery in XIXth century Brazil. It discusses Manuela Carneiro da Cunha’s thesis and proposes that the relations between masters and slaves were mediated by the State and the laws.

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 Um dos trabalhos mais instigantes sobre a escravidão brasileira é o de Manuela Carneiro da Cunha, publicado originalmente nos Cadernos IFCH UNICAMP nº 4, em 1983 . Partindo da constatação de um erro historiográfico, a suposta existência do direito legal dos escravos de conseguir a alforria mediante a apresentação de seu valor, e de uma constatação histórica, a prática costumeira desse direito, Carneiro da Cunha elabora uma engenhosa interpretação para a política de concessão de alforrias no Brasil.
 A despeito da constatação da existência de tal prática, a sua inserção na legislação sempre sofreu oposição dos mesmos senhores que praticavam essa regra costumeira. Tal prática somente iria estar presente na lei positiva em 1871, com a chamada Lei do Ventre Livre.  O Estado, segundo a autora, não mediava a relação entre senhor e escravo. Tal mediação se dava por leis costumeiras, como a prática da remissão de escravos que apresentassem seu valor durante o inventário de seu falecido senhor, além da prática largamente difundida de concessão de alforrias pagas . O direito costumeiro podia contar com maior obediência do que a lei escrita. Citando Tollenare, Carneiro da Cunha lembra que "a autoridade das leis escritas variava, era sabido, na razão inversa da distância dos centros urbanos. A lei era exercida pelos poderosos 'senhores de engenho, indóceis às leis, habituados a fazerem justiça com as próprias mãos'".
 Além disso, mesmo conhecendo a legislação, os canais legais para fazer valer os seus direitos eram exíguos. "Para dar queixa, necessitava da intermediação de seu senhor. À falta deste, havia - mas segundo algumas interpretações apenas - a possibilidade de recorrer à intermediação do Promotor Público ou de 'qualquer do povo'. Supondo que ainda assim conseguissem dar queixa de seu senhor (...), que apoio poderia esperar dos juízes?" Em nota, a autora lembra que "o escravo era civilmente incapaz e seu curador nato era o próprio senhor", informação que retira de Perdigão Malheiro em A Escravidão no Brasil. Também é Perdigão Malheiro que a autora utiliza para relativizar a possibilidade de que os escravos pudessem recorrer ao Promotor Público ou a 'qualquer do povo' para fazer valer seus direitos .
 O componente estratégico do silêncio da lei era garantir o "sentimento de obediência e subordinação do escravo para com seu senhor e a dependência em que dele devia ser conservado", tratando-se portanto de uma dependência pessoal. Ao Estado competia a responsabilidade sobre os libertos e os livres. É nesse contexto que se deve entender as alforrias gratuitas ou pagas dos escravos e a possibilidade de revogação da alforria por ingratidão: a expectativa é que os ex-escravos se tornem clientes, agregados de seu ex-senhor.  Segundo Carneiro da Cunha:
"Nas cartas de alforria, mesmo naquelas que foram resultados de um resgate, nunca se deixa de insistir preliminarmente na generosidade ou na afeição do senhor pelo seu escravo e, em contrapartida, na fidelidade e nos bons serviços do cativo que o tornaram elegível para a libertação.
 Ideologicamente, portanto, a fórmula descritiva das alforrias onerosas mostra que, mesmo que se assemelhasse a uma venda e fosse regulada pelos preços de mercado, tais alforrias distinguiam de uma simples venda, pois pressupunham "a existência de laços morais entre escravos e senhores, laços que não deveriam cessar com a alforria". A autora também comenta que "tradicionalmente, a lei tratava das alforrias sob o mesmo capítulo das doações" e remete tal afirmação para Perdigão Malheiro.
 Assim, para a autora, o direito costumeiro e a lei positiva, até 1871, parecem ter talhado para si domínios distintos. A lei - a Constituição de 1824 silenciava sobre a existência dos escravos e o Código do Processo Criminal de 1831 mencionava os escravos em apenas dois artigos - era para a gentinha. O direito costumeiro era para os senhores, que estão acima da lei, e para os escravos, que estão aquém da lei. Dessa forma, a legislação era um arcabouço fictício pelo qual a sociedade não se regula. A tônica da legislação "é a inadequação de uma linguagem postiça a uma realidade que se procura esconder".  É necessário reconhecer a engenhosidade das articulações de fontes desse trabalho e a sua originalidade interpretativa, que abriu e continua abrindo novas perspectivas no estudo da escravidão no Brasil do século XIX. Porém, não podemos deixar de notar problemas em sua formulação.
 Para a formulação de sua interpretação, Carneiro da Cunha utilizou-se dos estudos então disponíveis sobre alforrias no Brasil, que detectou uma grande maioria de alforrias onerosas no total de alforrias concedidas; alforrias estas que poderiam ser revogadas por ingratidão e que exerciam papel fundamental na formação de uma população de trabalhadores libertos dependentes. Pelos resultados de nossa pesquisa sobre as liberdades concedidas em testamentos, pudemos verificar que o perfil típico dos alforriados em testamentos, em número maior do que as liberdades concedidas em cartas de alforria, é diferente dos libertados por estas mesmas cartas, especialmente no que se refere ao caráter oneroso ou gratuito das liberdades. Além disso, e principalmente, questionamos a possibilidade de revogação dessas alforrias.  Dessa forma, uma das bases de sustentação de sua argumentação pode estar equivocada.
 Por outro lado, pela leitura do livro de Perdigão Malheiro, a incapacidade civil do escravo parece ser clara, como afirma a autora, mas não é. Na abertura do capítulo 1 do livro de Perdigão Malheiro tal assertiva é tão peremptória que leva a uma ficção de direito:
"Desde de que o homem é reduzido à condição de cousa, sujeita ao poder e domínio ou propriedade de outro, é havido por morto, privado de todos os direitos, e não tem representação alguma".
 Porém, no capítulo III, Perdigão Malheiro afirma que, apesar de ser negado ao escravo figurar em juízo, já que não tinha representação alguma, uma das exceções para tal regra geral era quando a causa judicial se referia a sua liberdade.  Ora, se uma das exceções de sua incapacidade civil, ou seja, exceção ao fato de não ter representação alguma, era quando a causa judicial se referia a sua liberdade, conclui-se que nessas causas, o escravo tinha capacidade civil. Observe-se que nada estamos afirmando a respeito da prática jurídica no Brasil; estamos tentando operar apenas dentro da exposição de Perdigão Malheiro, autor que Carneiro Cunha utiliza para "provar" algumas de suas afirmações. Sendo assim, nas causas de liberdade o escravo não parecia ser considerado um "morto" pela justiça e a afirmação de sua incapacidade jurídica deve ser relativizada.
 Quanto às afirmações de que seria difícil que o escravo conseguisse fazer valer os seus direitos, pois o senhor era o seu "curador nato" e de que havia contradições nas determinações legais sobre a possibilidade de o escravo buscar a ajuda do Promotor Público ou de "qualquer do povo" também não parece ser tão claro assim. Há uma grande confusão em tais afirmações . De fato, Perdigão Malheiro afirma, no parágrafo 11 do capítulo II, que:
"O escravo não é admitido a dar queixa por si; mas por intermédio de seu senhor, ou do Promotor Público, ou de qualquer do povo (se o senhor não faz), como pessoa miserável."
 Em duas notas, anexas ao parágrafo citado, Perdigão Malheiro aponta uma aparente contradição entre um aviso de 1853 e outro de 1865, que Carneiro da Cunha interpreta como uma possível indefinição sobre a possibilidade de o escravo buscar a ajuda do Promotor Público ou de "qualquer do povo". Adiante prossegue Perdigão Malheiro falando ainda sobre os escravos:
"Quando réu ou acusado, deve-se-lhe nomear defensor ou curador pelo Juiz do processo, se o senhor não se presta a isso como seu curador nato."
 A despeito do erro de impressão na nota 73 do artigo de Carneiro da Cunha, cremos que seja dessas duas passagens de Perdigão Malheiro que a autora retira as evidências para afirmar que o senhor do escravo era seu curador nato, além de serem contraditórias as disposições sobre a possibilidade de o escravo buscar auxílio do Promotor ou de "qualquer do povo", pois não encontramos em nenhuma outra passagem do Livro I alguma disposição sobre a curadoria nata dos senhores. O leitor já notou algo estranho no início da última citação: "quando réu ou acusado..." Alguém consegue imaginar um escravo entrando com um processo na justiça "para fazer valer seus direitos" e, no mesmo processo, ser citado pela justiça como réu ou acusado? É muito pouco provável, em verdade é impossível. Com um pouco de esforço voltamos algumas páginas no livro de Perdigão Malheiro e descobrimos que o capítulo II dedica-se exclusivamente ao estudo sobre "O Escravo Ante a Lei Criminal (Penal e de Processo) e Policial". Com um pouco mais de esforço voltamos à página 46 e descobrimos que as duas disposições que citamos, e que a autora se utiliza para mostrar que o senhor era curador nato de seus escravos, estão no Código do Processo Criminal. Nada mais revelador.
 Não é no capítulo II do livro de A Escravidão no Brasil que Perdigão Malheiro aponta os meios legais para que os escravos fizessem "valer seus direitos". Em verdade, nesse ponto do texto, o autor relata "as exceções e modificações de Direito em relação aos escravos" quando estes "são processados, pronunciados e julgados, conforme os delitos e lugares, como os outros delinqüentes livres ou libertos", algo que o autor já havia prenunciado no parágrafo anterior.
 O senhor só seria o curador nato de seu escravo que praticasse algum delito ou crime e que fosse processado pela justiça como um cidadão comum e caso não se prestasse para defendê-lo, a justiça deveria lhe nomear defensor ou curador. Quanto às contradições nos dois avisos de 1853 e 1865 elas se referem, sim, à discussão sobre a quem cabia a competência de dar queixa do delito.
 Perdigão Malheiro, em verdade, escreve que são nas Ordenações Filipinas que estão presentes as disposições legais sobre as formas de um escravo "fazer valer seus direitos". Tais disposições estão no capítulo III e em seção cujo título parece ser um pouco mais sugestivo para o tema: "Ações de Liberdade e Escravidão" . É no parágrafo 132 dessa seção que o autor aponta as disposições sobre o direito do escravo em ver nomeado um curador nas ações de liberdade:
"Ainda quando o asserto escravo, ou o livre ou liberto, tenha procurador, ou curador nomeado pelo Juiz de õrfãos, deve o juiz da causa dar-lhe curador in liten, como aos menores e demais pessoas miseráveis, isto é, dignas de proteção da lei pelo seu estado ou condição. "
 A assertiva de Perdigão Malheiro baseia-se em disposições das Ordenações Filipinas (L. 1º tit. 88 e tit. 90). Na nota desse parágrafo, inclusive, Perdigão Malheiro diz: "o próprio escravo poderia constituir procurador em qualquer caso para defesa de sua liberdade (Souza Pinto, proc. civ. Bras. parágrafo 172)". Em outra nota desse mesmo parágrafo, diz que "tal é a praxe de julgar". No início da seção 4ª, Perdigão Malheiro informa inclusive que as "as questões de liberdade e escravidão são as mais frequentes, pois se referem à prejudicial do estado de alguém, ser livre ou escravo".  Ou seja, os escravos, segundo o autor, acionavam a justiça principalmente para tentar a conquista da liberdade, o que não é uma grande surpresa. Não há nenhuma contradição nas disposições sobre a curadoria dos escravos nas causas de liberdade em A Escravidão no Brasil e ele não aponta nenhuma discussão de interpretação sobre esse direito. Além disso, nesse parágrafo e em suas duas notas constam indícios de que os escravos se utilizavam da legislação para lutar por suas liberdades.
 Porém, qual o assunto tratado no trecho das Ordenações Filipinas citado por Perdigão Malheiro? O título 88 do livro primeiro das Ordenações é "Dos Juízes dos õrfãos". Esse título trata fundamentalmente dos procedimentos legais a serem tomados quando da morte de um dos pais do menor, dispondo sobre as providências do inventário, partilha de bens, nomeação obrigatória de tutores e curadores letrados, entre outras, com o objetivo de garantir a integridade dos bens dos ditos órfãos.  Não encontramos nesse título nenhuma referência a escravos.
 O título 90 denomina-se "Do curador, que he dado aos bens do absente, e à herança do defunto, a que não he achado herdeiro". Sua leitura mostra que trata-se da forma como deveria agir o "Juiz de õrfãos, ou a pessoa, que tiver carrego de prover acerca dos bens dos menores", quando os bens de um cativo ausente do reino estivessem sem administração legal, por ausência de pessoa juridicamente capacitada para tal. Uma dessas determinações era que lhe fosse nomeado curador para que, tal como determinava o título 88, o representasse em juízo e cuidasse de seus bens.  Essa era a "ponte" entre o título 88 e o 90 do livro primeiro das Ordenações: sendo, no título 88, equiparado aos menores de idade e portanto com os mesmos direitos previstos no título 90, os cativos ausentes do reino tinham direito a que lhes fossem nomeados curadores in liten para lutarem pelos seus direitos. Essa era a "brecha" na legislação.
 De fato, o direito de que fossem nomeados curadores para os escravos nas causas de liberdade parece estar suficientemente comprovado se atentarmos para as pesquisas que trabalharam com ações de liberdade no Brasil.  Porém, o aspecto mais intrigante desse direito é o fato de que ele, positivamente, não estava expresso nas Ordenações. Nelas, tal direito se referia aos portugueses cativos pelos mouros que estivessem ausentes do reino de Portugal.  Dessa forma, percebemos que Perdigão Malheiro estava apenas sintetizando, em 1866, uma forma de interpretação das Ordenações muito comum na prática judiciária brasileira, que, na ausência de um Código Civil, se apropriava de uma legislação absolutamente distante da realidade brasileira e a adequava às contendas entre escravos e senhores. Tais evidências, portanto, novamente apontam para a relativização da distinção entre direito positivo e direito costumeiro no Brasil no século XIX, ao contrário do que propõe Carneiro da Cunha.
 Juntando o que foi dito até aqui, sempre através da leitura de Perdigão Malheiro, vemos que o escravo tinha capacidade civil de acionar a justiça nas causas pertinentes a sua liberdade e tinha o direito de defesa perante a justiça quando cometia algum delito. Além disso, tinha direito a curador letrado nas causas de liberdade, além de poder até nomear procurador para defendê-los.
 Há outras disposições muito sugestivas sobre as ações de liberdade em Perdigão Malheiro, como a inexistência de prescrição: "Contra a ação de liberdade nenhuma prescrição se pode opor; a liberdade é inauferível e imprescritível", disposição que Perdigão Malheiro retira de um Alvará de 1759. Ao contrário, nas "ações de escravidão" havia restrição prescritiva que, por via de regra, era de cinco anos. Tal prazo de prescrição é retirado de uma lei de 1682, apesar do jurista Correa Telles dizer ser de 10 anos. De qualquer forma, um acórdão do Superior Tribunal de Justiça em 1862 confirma o prazo de cinco anos. Interessante notar é que se havia discussão jurídica a respeito do tema, este é um indício de que a prática jurídica considerava a prescrição nas ações de escravidão e que os libertos se utilizavam da legislação para manter suas liberdades. Outra disposição legal que também viria em proteção do escravo é sobre seu depósito. Perdigão Malheiro relata que "uma providência costuma preceder a propositura dessas ações de que tratamos; é o depósito do indivíduo em poder de pessoa idônea", cuja fundamentação o autor remete para um aviso de 1783.
 Outro detalhe interessante no artigo de Carneiro da Cunha é a sua afirmação de que as alforrias eram tratadas legalmente sob o mesmo título das doações, remetendo a "prova" para Perdigão Malheiro. Mas em Perdigão Malheiro tal afirmação não é pacífica, pelo contrário. Perdigão Malheiro a contesta nos seguintes termos:
"O que se passa quando o senhor manumite o seu escravo? - Em alguns textos se lê que - est datio libertatis; e a nossa lei parece ter isso admitido, quando trata da alforria no mesmo título das doações (na nota: Ord. L. 4º tit. 63). Mas haverá aí real e verdadeiramente uma doação? qual o seu objeto? qual o sujeito ou adquirente?
Não há objeto, nem sujeito; a menos que não se pretenda ser o próprio escravo quem adquire, apesar de escravo, a sua mesma liberdade ou escravidão; o que é irrisório, e seria admissível apenas por uma ficção quase pueril. A verdade, a realidade das coisas, à parte das ficções, é a que se lê em outros textos, onde se diz manumittere, de manû missio, de manû dare, em contraposição a manu capere. A alforria era denominada entre os romanos manumissio; e entre nós igualmente manumissão, emancipação.
"Com efeito, em semelhante ato o senhor nada mais faz do que demitir de si o domínio e poder que tinha (contra direito) sobre o escravo, restituindo-o ao seu estado natural de livre, em que todos os homens nascem (na nota: Ord. L. 4º tit. 42, Alv. de 30 de Julho de 1609).
A alforria não é portanto, em sua última, única, e verdadeira expressão mais do que a renúncia dos direitos do senhor sobre o escravo, e a conseqüente reintegração deste no gozo de sua liberdade, suspenso pelo fato de que ele foi vítima; o escravo não adquire, pois rigorosamente a liberdade, pois sempre a conservou pela natureza, embora latente (permita-me o termo) ante o arbítrio da lei positiva. "
 Notemos que, de fato, Perdigão Malheiro aponta que a alforria era tratada legalmente no mesmo título das doações, citando as Ordenações Filipinas, mas se opõe ostensivamente à idéia de que o ato de alforriar fosse apenas uma doação do senhor para seu escravo. No ato de alforriar, o senhor apenas demitia de si o domínio e o poder que tinha sobre o escravo e para comprovar Perdigão também citava as Ordenações Filipinas. A reflexão de Perdigão Malheiro seria mera discussão teórica? Procuremos analisar a questão nos próprios termos de Carneiro da Cunha.
 Ao comentar a longa discussão de Perdigão Malheiro sobre os direitos dos patronos e dos libertos, Cunha relata que o jurista insurge-se contra a aplicação desse preceito no Brasil e citando três estudos sobre as alforrias, Oliveira, Verger e Kiernan, busca a comprovação de que as preocupações de Perdigão Malheiro não eram meras discussões teóricas . Constatamos assim que o tratamento metodológico dado às duas discussões de Perdigão Malheiro, a relação entre patronos e libertos e o significado legal das alforrias foram diferentes. Na primeira, a autora optou por aceitar a insurreição de Perdigão Malheiro, buscando comprovação em estudos recentes sobre a concessão de alforrias. Na segunda, optou por silenciar a longa discussão do jurista sobre o significado legal das alforrias, não se referindo em seu texto sobre a posição contrária do autor em conceber as alforrias como fruto apenas de uma doação do senhor para seu escravo, fundamentada inclusive nas próprias Ordenações Filipinas.
 A par da análise dos "métodos" de Carneiro da Cunha em sua leitura de Perdigão Malheiro, a questão do caráter legal das alforrias foi recuperada e discutida por Chalhoub em sua pesquisa sobre as ações de liberdade no Rio de Janeiro. Nela, o autor demonstra o empenho de Perdigão Malheiro em "arrancar a escravidão do reino da natureza e lançá-lo no campo conflituoso da história. Aquilo que o autor chama de 'trabalho de reconstrução' é, na verdade, um esforço contundente de desconstrução ideológica, de desmonte da ideologia escravista" .
 A preocupação de Chalhoub, na recuperação desse trecho de Perdigão Malheiro, era entender a complexidade da situação de uma escrava libertada condicionalmente. Seu ventre era livre ou cativo? Chalhoub identifica, na reconstrução feita por Perdigão Malheiro das leis e dos debates sobre os assunto entre os romanos, um esforço no sentido de demonstrar uma certa linha de evolução nesse direito em favor das libertas condicionais. Atenta também para o fato de que Perdigão Malheiro sabia estar se movendo em um campo de conflitos e que seu "esforço de reconstrução" contava com um "pouco de boa vontade a favor da liberdade", esclarecimento feito pelo próprio jurista em seu famoso livro. Chalhoub conclui que o "tom aguerrido de Perdigão Malheiro sugere que não há resposta simples" para a questão e que "ele se esforçava, já na década de 1860, para que as decisões jurídicas reconhecessem a condição de livre tanto das escravas alforriadas condicionalmente quanto a de seus filhos" .
 Porém, a preocupação de Chalhoub, ao recuperar a historicidade de Perdigão Malheiro, não era a de reabilitá-lo como herói na luta contra a escravidão. Era principalmente demonstrar que o campo do direito era um campo de conflitos e que o resultado dessas lutas jurídicas era "imprevisível para os próprios contendores". Para isso, além de historicizar o livro de Perdigão Malheiro, analisa processos judiciais em que essas diferentes interpretações se opunham. Chalhoub analisa três processos judiciais em que os argumentos dos curadores das libertas condicionais e os advogados de seus supostos donos giram em torno da condição livre ou escrava de seus respectivos ventres. Ou seja, a questão era definir se a condição suspensiva das alforrias condicionais tornava a liberta condicional juridicamente livre ou cativa.
 Por tudo que relatamos, convém reter algo essencial: os métodos diferenciados de Carneiro da Cunha para a utilização do mesmo texto de Perdigão Malheiro, a constatação de Chalhoub sobre o trabalho de "desconstrução ideológica" empreendido por Perdigão Malheiro e as diferentes interpretações da condição legal das libertas condicionais podem ser indícios de que o fato de as alforrias serem tratadas no mesmo título das doações não deve ser tomado como uma evidência neutra de que a prática social da "doação" da liberdade fosse vivenciada pelos seus atores como simples emanação da vontade senhorial.
 Pode parecer pueril que tenhamos dado todas essas voltas em torno de Perdigão Malheiro e Chalhoub para contestar apenas uma afirmação de Carneiro da Cunha em seu artigo, sobre o tratamento legal das alforrias. É evidente que os problemas apontados no texto de Carneiro da Cunha não invalidam a idéia de que a perspectiva senhorial, ao libertar um escravo, era de que este continuasse em uma situação de dependência para com ele. Porém, ao notar tais problemas não podemos deixar de pensar em algumas conseqüências de nossas críticas.
 O caráter irrevogável das alforrias concedidas em testamentos, o entendimento do campo do direito como um campo de conflitos, conflitos estes maximizados pela ausência de um Código Civil que normatizasse a prática jurídica, as disposições sobre as proteções legais dos escravos, relatadas no texto de Perdigão Malheiro e elididas no texto de Carneiro da Cunha, além dos problemas das definições e interpretações jurídicas sobre as alforrias condicionais podem, no mínimo, problematizar a engenhosa interpretação da autora. Teria sido assim tão rígida a divisão entre o poder privado dos senhores e o Estado nas funções de controle dos trabalhadores escravos, libertos e livres, denotando uma também rígida separação entre escravidão e liberdade? Estaria o Estado totalmente ausente na mediação da relação entre senhores e escravos? Por outro lado, seriam os escravos absolutamente ignorantes no que se refere aos seus direitos, especialmente no que se referia às suas liberdades? As dificuldades para pleitear seus direitos seriam assim tão exorbitantes?
 Pelo que pudemos constatar até o momento, podemos sugerir algumas respostas para essas questões. De acordo com a formulação de Perdigão Malheiro, havia legislação que garantia aos escravos que se considerassem vítimas de "injustiças" (o termo é um pouco redundante, mas não voltaremos à discussão sobre o caráter violento da escravidão brasileira ) de recorrerem à proteção do poder público, denotando que teoricamente o Estado não estava assim tão ausente na mediação das relações entre os senhores e os escravos. Tal legislação, apropriação política das Ordenações Filipinas, foi provavelmente forjada nos embates entre senhores e escravos. Também é possível inferir que muitos escravos não deixaram de acionar a justiça para "fazer valer seus direitos".
 Porém, saindo do terreno das conjecturas e das hipóteses fundamentadas apenas na problematização interna dos argumentos de Carneiro da Cunha, continuemos a analisar comparativamente algumas contribuições específicas sobre o tema, presentes no trabalho de Chalhoub, que reforçam as nossas críticas às afirmações da autora e que apontam para a relativização de sua interpretação.
 Ao nosso ver, a contribuição mais significativa do trabalho de Chalhoub foi perceber que a chamada Lei do Ventre Livre de 1871 foi, em grande medida, "o reconhecimento legal de uma série de direitos que os escravos haviam adquirido pelo costume e a aceitação de alguns objetivos da luta dos negros", ou seja, "uma lei cujas disposições mais importantes foram 'arrancadas' pelos escravos às classes proprietárias". É claro, e o autor o ressalta, que "1871 não é passível de uma interpretação unívoca e totalizante", mas foi "de uma certa forma uma conquista dos escravos" . Além disso, a lei de 1871
"pode ter sido um golpe decisivo em alguns aspectos essenciais das representações até então dominantes sobre a alforria".
As histórias que o autor narra mostram que
"havia em torno da alforria uma forte expectativa de continuidade das relações pessoais anteriores, de renovação do papel do negro como dependente e do senhor como patrono ou protetor" .
 Mas teriam os escravos compartilhado dessa ideologia? Seria fácil, segundo o autor, apresentar a resposta em termos de uma dicotomia: atitudes rebeldes de alguns que não aceitavam a ideologia senhorial, e portanto não a introjetavam, e a atitude submissa de outros que aceitavam tal ideologia, ou simulavam sua aceitação, utilizando-se dela como estratégia no sentido de lhes viabilizar melhores condições de sobrevivência. Porém, o autor não se convence de que a atitude dos escravos possa ser interpretada nesses termos opostos e excludentes. Apesar de admitir que a política de domínio baseada na relação pessoal entre escravo e senhor e na privatização do controle social eram "marcas da escravidão que tinham na concentração de poder de alforriar exclusivamente nas mãos dos senhores um dos seus símbolos máximos", adverte que é preciso cautela, pois
"O mesmo fundamento ou significado social - a inviolabilidade da vontade senhorial - serve aos desígnios diametralmente opostos da escravidão e liberdade. O escravo "seduzido" pelos valores senhoriais se afirma e contesta o domínio dos senhores específicos em nome do dito princípio geral da inviolabilidade da vontade senhorial - a criatura, por assim dizer, ameaça devorar o criador" .
 Observe-se que Chalhoub, nesse momento do texto, reflete sobre o princípio da inviolabilidade da vontade senhorial, tendo demonstrado anteriormente que a maioria das ações de liberdade fundamentavam-se exatamente no argumento de que falecidos senhores haviam libertado os escravos em questão ou lhes haviam prometido a liberdade. Os escravos lutam pela sua liberdade a partir do pressuposto de que as "regras do jogo", inclusive as que lhe são impostas pelos seus senhores, devem ser respeitadas e se lutam por isso é porque algumas dessas regras, conjunturalmente, podem favorecer seus objetivos. E isso não significa, necessariamente, passividade. É em função desta constatação que o autor conclui que "a criatura, por assim dizer, ameaça devorar o criador".
 Com outras palavras, Carneiro da Cunha, aparentemente, também concorda com essa sugestão de Chalhoub ao escrever que "uma ideologia só o é se compartilhada por seus atores" . Assim, podemos admitir que a política de domínio baseada no controle privado da alforria não mantém, necessariamente, a sujeição entre os escravos e nem garante, também necessariamente, a produção de libertos dependentes. Enfim, a eficiência de tal política de domínio precisa ser relativizada e historicizada. A conclusão essencial de Chalhoub, sobre o significado histórico da lei de 1871, já aponta para isso por si só. Se foi de alguma forma o resultado da luta dos escravos, ela foi necessariamente fruto de um processo histórico permeado por conflitos entre senhores e escravos e não pela sua simples sujeição ou pela simples rebeldia. Também não é nem um pouco convincente propor que o Estado estivesse ausente na mediação entre senhores e escravos até 1871 e constatar sua intervenção demiúrgica, abrupta e repentina com a chamada Lei do Ventre Livre.
 Além disso, é preciso notar que o campo da luta judicial é um espaço privilegiado onde ocorrem as lutas dos escravos pela liberdade. "O direito foi uma arena decisiva na luta pelo fim da escravidão" . O comentário de Chalhoub sobre uma ação de liberdade envolvendo duas escravas iniciado em 1864, Rubina e sua filha Fortunata, é esclarecedor sobre o que ocorria em um processo judicial. O curador das negras e o juiz da segunda vara cível da Corte
"pareciam partir da idéia de que se moviam num campo aberto de possibilidades, num terreno onde interpretações conflitantes de regras gerais do direito tinham importantes significados políticos, como aparece claramente na confirmação da sentença oferecida pelo juiz da segunda.
 Então, uma das armas dos escravos para "arrancar às classes proprietárias" a lei de 1871 teria sido "as interpretações conflitantes de regras gerais do direito" que "tinham importantes significados políticos". Logo, pressupõem-se que de alguma forma os escravos perceberam o caminho da justiça como arma para as suas liberdades.
 Poder-se-ia argumentar que Chalhoub privilegia em seu estudo a década de 1860, logo após o término do tráfico externo, quando talvez condições conjunturais especiais (o final do tráfico externo por si só poderia criar uma conjuntura de enfrentamentos) pudessem ter criado condições também especiais para que os escravos contestassem tal política de domínio. Seria possível imaginar a contestação de tal política de domínio na primeira metade do século XIX? Além disso, é preciso lembrar que o trabalho de Chalhoub concentra-se na Corte do Rio de Janeiro. Também poder-se-ia objetar de forma bastante procedente: tais questionamentos à formulação de Carneiro da Cunha se aplicam a todo o imenso Brasil no século XIX? Não será mais plausível acreditar que tenha sido a excepcionalidade política da então capital do Império um fator de uma também excepcional mediação do Estado nas relações entre senhores e escravos, além de também excepcionais relações entre senhores e escravos? Afinal, é a própria Carneiro da Cunha que lembra que quanto mais longe dos centros urbanos, menor era a observância das leis.
 Como podemos imaginar que o Estado pudesse intervir nas relações entre senhores e escravos nas pequenas vilas, onde os poderosos senhores de engenho indóceis às leis eram habituados a fazer justiça com as próprias mãos? Como podemos imaginar que nessas pequenas vilas, repletas de senhores truculentos, houvesse escravos que além de terem o conhecimento de seus supostos direitos, ainda encontrassem acolhida em juízes, cuja função essencial era fazer a ligação política entre o poder central e os poderosos proprietários?  E mais, encontrando curadores letrados que se dispusessem a defendê-los em juízo? Teria sido tudo isso possível?